Adentremos agora na arena do debate epistemológico e verifiquemos por que a Escola Austríaca prevalece diante das demais escolas.
A epistemologia é o ramo da filosofia que estuda o conhecimento e seus problemas. Ela estuda, por exemplo, quais seriam os limites do saber, o que é verdade, como validar um conhecimento e coisas semelhantes. Assim, antes de apresentarmos as conclusões econômicas da Escola Austríaca, é preciso que mostremos como ela chegou a essas conclusões.
Dado que a Economia é uma ciência, ela possui um objeto e um método de estudar esse objeto. Descobrir o método adequado para estudar um objeto é fundamental para o sucesso de uma ciência. Da mesma forma que não se toma sopa com garfo, também não se deve utilizar qualquer abordagem diante de um fenômeno específico. O método deve respeitar a natureza do objeto.
Segundo a Escola Austríaca, o objeto da ciência econômica são as ações humanas, no sentido que Mises deu a esse termo, ou seja, são os comportamentos propositados dos indivíduos. Uma vez que o objeto da Economia são as ações humanas, seu método não pode ser empírico, porque ações humanas não são observadas na realidade, como já dissemos. Nós observamos apenas movimentos corporais no espaço e no tempo, mas nunca escolhas, preferências, desejos, lucros, danos, prejuízos etc. Quando observamos um indivíduo correndo na praia, os nossos cinco sentidos nos mostram somente um cenário. Pela visão, vislumbramos o mar e o corredor se exercitando sob o sol; pela audição, ouvimos o barulho do ambiente e os passos do homem na areia; pelo olfato, sentimos a maresia; e pelo tato sentimos a temperatura e a umidade do ambiente e o afago do vento vindo do oceano.[1] Por nenhum desses sentidos captamos o propósito, o valor, o custo e o lucro da ação executada pelo indivíduo correndo na areia. Nós não captamos, por essa observação, o fato de que ele está agindo. Esse fato é antes pressuposto por nós, a partir da nossa própria experiência interna de o que é uma ação.
Pelo fato de ações não poderem ser observadas na realidade por meio dos cinco sentidos, mas apenas pressupostas na consciência, a ciência econômica não pode ser uma ciência experimental, devendo portanto rejeitar o empirismo. Segundo o empirismo, somente o conhecimento obtido por meio dos cinco sentidos, por meio da experiência, é que seria válido. Se eu não posso verificar experimentalmente uma afirmação, logo ela não serve como hipótese científica. Porém, embora o empirismo faça sentido nas ciências naturais, ele não pode se aplicar da mesma forma na teoria econômica.
Em primeiro lugar, não seria possível fazer experimentos controlados no campo das ciências sociais, porque jamais poderíamos isolar as variáveis, se é que as conheceríamos todas, e muito menos repetir a experiência em outro momento sob as mesmas condições.
Em segundo lugar, mesmo que quiséssemos testar empiricamente as teses da Economia, nós já iríamos começar os experimentos pressupondo essas mesmas teses, de maneira que não iríamos provar nada, mas apenas observá-las na realidade. Por exemplo, não faz sentido verificar na realidade se a menor distância entre dois pontos é uma linha reta, porque todo o experimento já partiria desse pressuposto, visto que o ser humano não conseguiria nem sequer conceber uma possibilidade diferente dessa. Além disso, caso o experimento verificasse que a menor distância entre dois pontos não fosse uma linha reta, todos diriam que o experimento foi feito de maneira errada.
Da mesma forma, como iríamos testar na realidade a ideia de que toda ação possui um propósito? Você consegue imaginar uma ação não propositada? O próprio conceito de ação humana pressupõe o de propósito. Movimentos corporais involuntários não se enquadram nesse conceito.
Isso acontece porque a ação é uma categoria mental, algo que já está incrustado no pano de fundo da mente. Assim como não conseguiríamos fazer um experimento sem pressupor o espaço, ou imaginar dois mais dois não dando quatro, também não conseguiríamos conceber uma ação humana sem as suas categorias essenciais, de propósito, valor, custos etc. Como o empirista verificaria a existência do espaço? Como ele verificaria, além disso, a existência do tempo? Ora, tanto o espaço quanto o tempo já estão pressupostos em toda experiência que é realizada. Na verdade, nem sequer ter uma experiência seria possível se esses conceitos já não estivessem instalados na nossa consciência. O fato de o espaço ser um conceito a priori, como o conceito de ação, é que torna a Geometria, que estuda as relações no espaço, uma ciência a priori. Por que assim também não seria com a praxeologia, donde tira a ciência econômica suas primeiras conclusões?
Para utilizar uma analogia ousada, porém bastante ilustrativa, podemos dizer que nossa mente é como um sistema operacional de leitura da realidade. Toda a nossa realidade é construída com base nesse sistema, no qual já estão instalados determinados programas que tornam essa realidade possível. Tais programas são as categorias a priori do entendimento e da sensibilidade, tais como o espaço, o tempo, a causalidade e a ação.
Então, por considerar que toda a teoria econômica é erigida sobre um fundamento absoluto independente da experiência e até condicionador dela, a Escola Austríaca se enquadra como uma escola apriorista e racionalista, em oposição ao empirismo em voga.
Expliquemos agora quais são esses pressupostos absolutos que sustentam o corpo teórico da Escola Austríaca. O primeiro é o conceito de ação, como já foi explicado. Esse conceito não pode ser provado nem refutado, pois pertence ao pano de fundo da própria discussão, uma vez que argumentar ou discutir é realizar uma ação. Além dessa premissa, a ciência econômica, para ficar completa, necessita de mais dois postulados, os quais não são absolutamente necessários como o conceito de ação mas podem se dizer também inquestionáveis, de tão claros e evidentes. O primeiro postulado é o da desutilidade do trabalho, que também pode ser formulado como “lazer é um bem de consumo”.[2] Isso quer dizer que os homens em geral preferem o lazer ao trabalho. O segundo postulado é o da diversidade de recursos, segundo o qual os recursos humanos e naturais são diversos e desigualmente distribuídos na Terra.[3] É daí que surge a necessidade da divisão do trabalho, para que produzamos mais e melhor. Segundo Rothbard[4], utilizando-se o conceito de ação humana mais esses dois postulados, pode-se erigir com segurança todo o edifício da ciência econômica, sem a necessidade de nenhum experimento, apenas pelo emprego de deduções lógicas, como se verá mais adiante.
Conclui-se, assim, que o método legítimo da ciência econômica é o método lógico-dedutivo.[5]
As escolas de pensamento econômico que esposam algum tipo de empirismo acusam a Escola Austríaca de ser anticientífica por não utilizar os métodos geralmente empregados nas ciências naturais, que nos últimos anos têm avançado tão magnificamente. Após o século XIX, começou a dominar entre os intelectuais o pensamento de que algo só é científico se for quantificável ou verificável. Assim, uma vez que a praxeologia não é nem quantificável nem verificável, ela então seria mera tautologia ou dogma ideológico.
Existe, contudo, uma diferença fundamental entre os objetos das ciências naturais e o objeto da Economia. Sucede que os objetos físico-naturais estão submetidos à lei da causalidade, ao passo que o homem, objeto das ciências sociais, é um ser autodeterminável. Os acontecimentos físicos são causais; já os acontecimentos humanos são teleológicos (intencionais). Uma pedra não escolhe que vai cair, nem um rio escolhe que dará no oceano. Mas um homem escolhe o que vai fazer, seja a escolha consciente, seja inconsciente. O reconhecimento da necessidade de dois métodos para dois objetos essencialmente distintos é chamado de dualismo metodológico, o qual abordaremos novamente no capítulo a seguir.
Dado isso, fica claro que quem assume uma postura equivocada diante da realidade são os empiristas, que buscam estudar objetos teleológicos com base numa abordagem causal.
Além disso, a tese de que toda afirmação deve poder ser testada é, ela própria, uma afirmação que não pode ser testada, o que a enreda numa autocontradição. O próprio empirismo teria de recorrer a conhecimentos a priori para ter alguma base.
É impossível fazer qualquer afirmação sem pressupor muitas outras afirmações, de modo que o apriorismo é simplesmente inescapável. O que nos cabe fazer é descobrir quais dessas afirmações se encontram no primeiro piso, isto é, quais delas constituem a fundação absoluta de todo o conhecimento humano, e a partir delas erigir um conhecimento absolutamente fundamentado. Tais afirmações seriam aquelas que não podem ser provadas sem petição de princípio (ou seja, sem serem admitidas como verdadeiras logo de começo) nem ser refutadas sem que se caia em uma contradição.[6] O conceito de ação humana é um conhecimento desse tipo, pois qualquer tentativa de prová-lo tem de pressupô-lo (uma vez que demonstrar algo é uma ação) e toda tentativa de refutá-lo também (uma vez que refutar também é uma ação). Com isso obtemos um fundamento seguro e absoluto para a nossa ciência.
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Notas
[1] O paladar evidentemente não é relevante aqui.
[2] Rothbard, “Em defesa do apriorismo extremo”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/em-defesa-do-apriorismo-extremo/>.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Mises, Ação Humana, p. 62; Mises, O Fundamento Último da Ciência Econômica: Um ensaio sobre o método, p. 73; Hoppe, A Ciência Econômica e o Método Austríaco, p. 22; Rothbard, Homem, Economia e Estado: Um Tratado sobre os Princípios Econômicos, pp. 1-2.
[6] Karl Otto-Apel, “The Problem of Philosophical Fundamental-Grounding in Light of a Transcendental Pragmatic of Language”. Disponível em: < https://r.jordan.im/download/religion/apel1975.pdf>.