Os recentes debates ocorridos na Espanha sobre o controle a que o governo quer submeter os institutos encarregados de preparar e publicar informações econômicas ou sociais, como o Instituto Nacional de Estatística ou o Centro de Pesquisas Sociológicas, devem reabrir o debate que Rothbard abriu há muitos anos atrás sobre o papel que as estatísticas desempenham no funcionamento dos Estados modernos.
Em seu artigo Estatísticas: o calcanhar de Aquiles do governo, Rothbard nos informa que sem estatísticas um Estado moderno não tem as informações necessárias nem a legitimidade para agir e alerta para a necessidade de não se dar importância excessiva a esse tipo de dado, concebido fundamentalmente para se poder intervir na vida social ou econômica. A princípio, as estatísticas, contra as quais a priori não há objeção, parecem ser dados benéficos e inofensivos sobre as múltiplas dimensões da vida social, que nos informam objetivamente e que dão origem a inúmeras manchetes e são objeto de debate tanto na mídia e na vida social. Além disso, elas servem para encerrar discussões e refutar contundentemente argumentos expressos de forma literária.
Proibir estatísticas
O conhecimento estatístico parece ser de natureza mais elevada do que aquele expresso de forma não numérica ou formal. Aí reside a chave da sua importância e a razão pela qual o Estado tenta controlar a sua produção e posterior publicação, daí também a pertinência de as questionar do ponto de vista que inspira estas linhas.
Em um colóquio anos atrás, um dos palestrantes afirmou que o governador de Hong Kong nos tempos em que era colônia britânica havia proibido seu governo de produzir estatísticas em seu território. Não sei se essa decisão foi finalmente tomada ou não, pois não encontrei fontes para comprová-la, mas mesmo que não tenha ocorrido, a ideia do governador é muito sugestiva e os resultados de sua gestão parecem ter corroborado que era uma ideia muito boa.
Hong Kong
O governador libertou-se primeiramente dos conflitos e reivindicações sociais que costumam derivar da publicação deste tipo de dados. Os habitantes do território não sabiam se ganhavam mais ou menos que seus vizinhos ou se a renda de seu bairro era melhor ou menos distribuída que a de outro vizinho. Também não sabiam se os homens ganhavam mais ou menos do que as mulheres, os jovens do que os velhos ou os imigrantes do que os nativos. Eles também não sabiam o tamanho médio de suas casas ou sua expectativa de vida relativa, entre muitas outras coisas que não sabiam.
E ainda assim nada demais aconteceu, pois o país prosperou, tornando-se um dos países mais ricos e economicamente livres do mundo. Nosso governador entendeu que, justamente por ignorar todos esses dados, diminuiu o número de possíveis queixas que poderiam ocorrer entre seus habitantes, enquanto boa parte das demandas por intervenção pública foram eliminadas para supostamente nivelar os resultados.
Aliás, se pensarmos bem, qual é o principal interesse da classe dominante em saber de todas essas desigualdades relativas, senão buscar legitimidade para intervir e consequentemente adquirir mais poder político com a desculpa de tentar equilibrar os indicadores para que pareçam ser iguais (porque o que você quer equalizar são os dados estatísticos, não as causas que os originam). À falta de legitimidade da intervenção em caso de desconhecimento acresce a falta de capacidade administrativa para operar sem a informação relevante para poder atuar.
Instrumento de intervenção
Os aparatos administrativos modernos requerem uma quantidade infinita de dados para poderem operar, os quais obtêm por meio de seus órgãos ou mesmo com a colaboração ativa dos administrados. Eles precisam de censos e cadastros atualizados e dados sobre a renda da população que obtêm com a colaboração de empresas e cidadãos. Eles precisam de números agregados de desemprego e taxas de inflação ou desigualdade, como o famoso índice de Gini, tão frequentemente citado em todos os tipos de debates políticos ou acadêmicos.
Também não desdenha de sua utilidade para desenvolver todos os tipos de indicadores de consumo para tributá-lo, morbidade para a gestão de seus sistemas de saúde ou mortalidade para seus sistemas públicos de pensões. Claro, eles também gostam de classificar por idade, sexo e às vezes até raça para quebrar todos os tipos de diferenças entre humanos que possam ser usadas para fins políticos.
Posto isto, não se pode negar que as estatísticas são muito úteis numa economia de mercado para poder calcular prêmios de seguros ou realizar estudos de mercado. Também, claro, na ciência, indústria ou engenharia, porque sem ela muitos cálculos não poderiam ser realizados e muitos desenvolvimentos atuais não teriam ocorrido. Este texto não é de forma alguma uma crítica à estatística como ciência ou disciplina de estudo, mas aos usos que dela se fazem, de forma semelhante às críticas que os austríacos fazem ao uso do formalismo em certos campos das ciências política e economia.
Utilitário
Embora a origem da estatística tenha muito a ver com o desempenho dos Estados, como o próprio nome indica, ela se desenvolveu por conta própria e pode ser considerada uma disciplina autônoma, válida para usos privados ou públicos. Ela ainda retém certos resquícios do estatismo, como o uso frequente do nacionalismo metodológico em seus estudos; ou seja, o locus de análise é geralmente aquele do Estado-nação típico ou de uma de suas unidades administrativas.
Assim, o mais comum é encontrar estudos como a taxa de acidentes de carro para homens e mulheres na Espanha em 2021 ou o consumo de álcool entre a população espanhola. Não há nada de errado com esses estudos, mas pode ser que o fator determinante não seja ser espanhol, mas sim ser homem ou jovem, respectivamente, e esse deve ser o fator explicativo que seria melhor explicado com a análise qualitativa das razões para essas taxas, mas sem limitá-las a um Estado específico.
Estatismo subjacente
Mas quem encomenda ou usa essas estatísticas são os Estados e eles as fazem à sua imagem e semelhança, com o problema de que nem todos os grupos sociais são homogêneos a esse respeito e a taxa pode fornecer muito pouca informação sobre uma situação específica. A sociedade é muitas vezes identificada com um Estado específico e o problema é que ambos não precisam necessariamente coincidir. Mas o fato é que essas estatísticas contribuem para criar consciência de identidade entre os dois e reforçam o imaginário estatal, dando-lhe algo semelhante a uma identidade ontológica. Assim, dizemos que a Espanha cresce ou diminui ou é mais igual ou desigual que a França ou Portugal, por exemplo, quando na verdade essas metáforas não são úteis para a vida cotidiana.
E também, como vimos, elas reforçam o poder dos Estados. Em primeiro lugar, porque reforçam a sua imagem de competência, de terem informação precisa, atualizada e, sobretudo, objetiva sobre diversos fenômenos sociais e econômicos. Um dos principais atributos do poder político derivado contemporâneo e fonte de poder, ao mesmo tempo, é sua pretensão de objetividade e de que seus dados e estimativas são verdadeiros, enquanto aqueles oferecidos por institutos e organizações privadas são tendenciosos e, portanto, menos confiáveis.
O Estado constitui-se, assim, como um ente neutro e desinteressado que busca oferecer a melhor informação possível. Uma vez estabelecido este princípio de suposta objetividade, compreendem-se os esforços que os governos realizam para tentar controlar a direção dos órgãos encarregados de realizar os cálculos estatísticos ou pilotar o desenho dos diferentes indicadores, mudando as fórmulas se necessário, como estamos vendo no caso do IPC ou nas taxas de desemprego na Espanha. Uma vez conquistada a reputação de seriedade e objetividade, o resto vem fácil.
Contos de opressão e queixa
Em segundo lugar, porque as estatísticas podem gerar queixas entre grupos, pois qualquer diferença estatística entre grupos bem explicada pode levar a uma história de queixas e opressões históricas, com ou sem razão. Se compararmos grupos, sejam eles quais forem, é muito provável que apresentem diferenças que às vezes podem ser substanciais, pois é quase impossível que dois grupos escolhidos ao acaso ofereçam os mesmos resultados.
Gordos e magros, altos ou baixos, loiros ou pardos, analisados estatisticamente, oferecerão resultados díspares em um ou vários indicadores. Se a diferença é substancial ou não, dependerá do observador, pois não é fácil definir a priori quando uma diferença é relevante ou não. Mas se esses grupos partem, a priori, ou a posteriori após a obtenção dos dados, de um discurso teórico que explica essa diferença como algum tipo de opressão ou discriminação, eles facilmente se tornarão motivo de queixas.
Uma vez estabelecida a queixa e documentada estatisticamente, resta apenas que o Estado se voluntarie para nivelar ou equilibrar a situação causadora do problema, de forma que os índices sejam adaptados à situação correta. Qual é este? Aquele determinado a cada momento pelos governantes de plantão. Porque a questão de determinar qual deve ser a situação correta, por exemplo, o grau de desigualdade salarial aceitável ou o nível de distribuição de renda percentual, e não há tabela ou critério que indique qual deve ser o número correto. Isso será determinado pelo governante. Mas, nesse processo, o governo literalmente se torna dono de nossas receitas ou de nossas empresas, para poder distribuí-las à vontade.
Fonte de legitimação
Ou seja, nossa renda é nossa até o valor que o governo determinar pertinente (facilmente observado em impostos progressivos como o imposto de renda de pessoa física). O que se determina como pertinente depende da vontade de quem elabora e faz cumprir as leis tributárias e como é facilmente verificável ao longo da história, esses parâmetros foram substancialmente modificados de acordo com a ideologia ou os interesses da classe dominante, mas justificando-se sempre em algum tipo de disfunção social medida pelas estatísticas. Isso se revela, então, tanto como o calcanhar de Aquiles quanto como uma de suas principais fontes de legitimidade. É bom, então, levar isso em consideração antes de aceitá-las acriticamente.
Artigo original aqui