Reinaldo Azevedo fez um texto absolutamente provocante, instigante e politicamente incorretíssimo sobre o problema com a legalização das drogas. Recomendo fortemente que você o leia na íntegra aqui.
Leu? Então vamos lá.
De acordo com o blogueiro, são ingênuos aqueles que creem que a legalização das drogas fará despencar a criminalidade. Se o comércio de drogas passar a ser um negócio legítimo, como a venda de bebidas, os traficantes de hoje não passarão a, como ele próprio diz em tom jocoso, tocar oboé ou dedicar-se à mecânica de automóveis, ao origami ou ao crochê.
Como ele corretamente diz,
Se a política de segurança pública do Brasil continuar a mesma; se os bandidos continuarem fora da cadeia; se o crime continuar a compensar, a mão-de-obra do tráfico, queridinhos, vai deixar de assombrar só os morros e vai descer para assombrar o asfalto, como acontece esporadicamente, diga-se.
Sua conclusão, politicamente incorreta porém verdadeira, é que, tudo o mais constante – isto é, uma polícia corrupta, um judiciário leniente, a impunidade avassaladora, e as cadeias superlotadas -, a atual proibição das drogas afeta quase que em sua totalidade apenas os mais pobres, ao passo que sua legalização afetaria principalmente a classe média e os ricos.
Transcrevo essa sua conclusão:
Se tudo continuar, em suma, como está, a ilegalidade das drogas não deixa de ser um fator de segurança para uma parte da sociedade ao menos. A razão é simples: se o bandido continua solto e não pode ganhar dinheiro vendendo maconha ou cocaína, ele vai meter um trabuco na sua cara para lhe tomar o carro, a carteira, o relógio, o tênis. À legalização das drogas corresponderia o aumento brutal de todos os outros crimes.
Muito bem.
Como rebater isso? Poderíamos falar que o estado não tem o direito moral nem legal de determinar o que um indivíduo pode ou não jogar em seu corpo, e que quem defende tal proibição é um totalitário que está atentando contra o livre-arbítrio, o direito mais essencial do homem. Poderíamos também dizer que foi o estado, com essa sua estúpida proibição, que criou o mercado negro das drogas e seus preços altos, o que gerou as condições perfeitas para o enriquecimento sem paralelos da bandidagem, o que por sua vez lhe permitiu adquirir todo o seu vasto poder de fogo.
Porém, ainda assim, não estaríamos atacando a realidade. E a realidade é que a proibição é um fato e todo o mal que ela podia fazer, já foi feito. Estamos vivendo as conseqüências da proibição. Não dá mais pra chorar e lamentar o que poderia ter sido feito no passado. Tampouco a situação pode ser revertida apenas na base da canetada. A questão então passa a ser: como lidar com isso? Ou ainda melhor: como reverter isso da forma menos dolorosa possível?
Reinaldo está certo ao dizer que a legalização faria com que a bandidagem trocasse sua área de atuação, passando a explorar, via taxação ou concessão, outros mercados, como aliás já vem fazendo no Rio de Janeiro com os serviços de transporte alternativo (vans), distribuição de botijões de gás e mototáxi. E, principalmente, ele está certo ao dizer que, na ausência desses “empregos”, a bandidagem simplesmente passaria a assaltar no semáforo em maior volume.
Notícias recentes, aliás, mostram que isso já está acontecendo. Como noticiou a Folha de S. Paulo,
As facções do tráfico nas favelas do Rio perderam nos últimos anos parte da clientela de classe média, e seus lucros dependem cada vez mais das próprias comunidades, o que provoca maior disputa por territórios entre elas.
“O morro dos Macacos nunca foi ponto importante de vendas. Mas a redução do lucro aumenta a necessidade de buscar novas áreas”, diz Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Violência Urbana da UFRJ.
Ele se refere ao caso de oito dias atrás, quando um helicóptero policial foi derrubado durante invasão do CV (Comando Vermelho), que tentou tomar a favela de Vila Isabel (zona norte) dos rivais da ADA (Amigos dos Amigos).
No Carnaval de 2008, faltou consumidor na “boca” da Mangueira (zona norte). Para se capitalizar, traficantes roubaram um caminhão de cerveja e avisaram os donos das biroscas da redondeza de que só podiam vender as deles quando acabassem as do “patrão”.
Três fenômenos explicam o fato de parte da classe média do Rio ter deixado de “subir o morro” para obter drogas: o aumento da violência, com incursões policiais mais frequentes e traficantes mais truculentos; o aumento do uso de drogas sintéticas, como o ecstasy; e o tráfico operado pela própria classe média, com opção de pedir por telefone a entrega da droga.
Ou seja: o fenômeno previsto por Reinaldo não só é possível como, pior, já é um fato que não pode ser ignorado.
De acordo com reportagem da última edição da Revista VEJA, um quilo de cocaína custa R$ 15.000. Já o quilo da maconha pode sair por R$ 1.000, dependendo da cidade, da distância do local de produção e, por que não?, da época do ano.
Uma pesquisa americana, ainda em 2002, afirma que uma libra (0,45 kg) de maconha que custa 3.000 dólares nos EUA passaria a custar meros 3 dólares caso a droga fosse legalizada. Isso quer dizer que o lucro (mais os custos do mercado negro, uma vez que esse mercado é ilegal) corresponde a 2.997 dólares, ou 99,9% do total.
Portanto, é muito difícil argumentar contra o fato de que a legalização das drogas, e a consequente perda da lucratividade possibilitada pelo mercado negro, levaria os criminosos a buscar outras áreas de atuação.
Pode-se argumentar, entretanto, que, pelo fato de a fonte ter secado – e com isso eles terem agora menos dinheiro -, os traficantes teriam seu poderio bélico reduzido. Afinal, não há mágica: sem grana, não há como pra repor o estoque de mísseis antiaéreos.
Porém seria ingenuidade imaginar que a bandidagem não possui um vasto estoque de armamento pesado, para ser utilizado justamente em contingências desse tipo. O máximo que poderíamos dizer é que, talvez, no longo prazo, os criminosos poderiam perder boa parte do seu poderio bélico. Mas isso demoraria muito – e precisamos de uma solução mais efetiva, que não dependa apenas de suposições.
Por último, é possível apenas supor que tal estado calamitoso ocorreria somente nas grandes cidades, pois são estas que possuem uma mais bem organizada e mais violenta rede de tráfico, estando as pequenas cidades relativamente livres desse futuro problema. Mas, novamente, isso seria apenas supor, algo não muito seguro.
As Soluções
Com esse cenário em mente, e buscando uma solução mais voltada para as grandes cidades, que é onde o atual problema da violência relacionada ao tráfico aparece mais explicitamente, parece-me haver apenas quatro soluções:
1) Mantém-se tudo exatamente como está. A classe média e a classe alta procuram sobreviver como podem, e os pobres e os policiais continuam morrendo como baratas sob um spray de inseticida. Os barões do tráfico continuam se enriquecendo e comprando apoio político (alguém em sã consciência acha que isso não ocorre?), e o sistema de terror continua se perpetuando. No máximo, podemos torcer para que a bandidagem fique mais boazinha e humana. Alguém se arrisca?
Ou
2) As drogas continuam nominalmente proibidas, porém o estado passa a fazer “corpo mole” para o tráfico, liberando-o na prática e desviando o efetivo policial para combater crimes reais, como assaltos, sequestros e a investigação de homicídios.
Nesse cenário, embora tudo continuasse legalmente proibido, não haveria repressão ao plantio, cultivo, distribuição e consumo. O que ocorreria? Uma das probabilidades é que as organizações criminosas já estabelecidas, poderosas e ricas, iriam impedir o surgimento de novos produtores. Como elas operam um empreendimento à margem da lei, os novos produtores que seriam atacados não poderiam recorrer aos tribunais para fazer valer seus “direitos”. Tal arranjo faria com que as contendas fossem resolvidas na base da violência, fazendo uso da lei do mais forte, frequentemente matando inocentes nesse fogo cruzado.
Para piorar as coisas, a notícia de que o ‘Brasil não mais está repreendendo o tráfico’ se espalharia pelo globo, o que faria com que o país se tornasse o destino dos traficantes de todo o mundo. Uma vez aqui, as batalhas pelos pontos de plantio, distribuição e venda seriam ainda mais sangrentas, pois envolveriam quadrilhas e armamentos de todo o mundo – não sejamos ingênuos a ponto de imaginar que o Polícia Federal estancaria o tráfico de armas. O número de inocentes mortos no fogo cruzado seria muito maior.
Essa segunda solução está imediatamente descartada, pois é a pior. Não faz sentido fazer vista grossa a um mercado e, ao mesmo tempo, mantê-lo na ilegalidade, privando-o do uso dos mecanismos legais de justiça. Se isso acontece, os agentes farão eles próprios a sua lei, e eles próprios serão o juiz, o júri e o carrasco.
Ou
3) As drogas são legalizadas. Surgem empresas voltadas para o mercado do plantio, cultivo, colheita, distribuição e venda. As drogas passam ser vendidas como cigarros e bebidas. O que aconteceria?
Não vamos discutir aqui se isso aumentaria ou não o número de viciados e qual a implicação disso para o seio familiar. Tal assunto já foi abordado aqui. Vamos nos centrar apenas na questão da violência.
É muito provável que o cenário imediato seja aquele descrito por Reinaldo: o aumento da criminalidade. Como lidar com isso?
No mundo das ilusões, poderíamos dizer que esse surto poderia ser contido com mais policiamento e maior preparo policial. Mas ambos custam caro, demandam tempo e, na maioria das vezes, ficam só na promessa. Na melhor das hipóteses, é certo dizer que não se trata de uma política exequível no curto prazo. Ou seja: não seria muito prudente contar com essa hipótese.
Uma política mais plausível e bem mais exequível seria facilitar o comércio legal de armas para todos os civis. Nem estou indo ao extremo de falar em lojas vendendo metralhadoras, fuzis, bazucas e mísseis antiaéreos. Revólveres e pistolas já seriam o suficiente. A ideia é que uma população armada colocaria um freio no surto de violência. Afinal, um bandido, ao saber que a pessoa dentro daquele carro, daquele apartamento ou daquela casa está armada, não vai se sentir mais compelido a iniciar um ataque. No mínimo, ele vai pensar algumas vezes mais.
Sim, estou perfeitamente ciente das objeções mais comuns a tal política. Elas versam sobre o perigo de civis destreinados carregarem armas de fogo, o aumento dos homicídios decorrentes de discussões no trânsito, brigas de bar, adultérios, brigas de vizinhos, de torcedores, etc.
Pode-se contra-argumentar que o problema de brigas violentas em estabelecimentos comerciais seria virtualmente nulo, uma vez que cada estabelecimento pode determinar sua política de aceitação de armas. Mas isso é o de menos.
O grande problema é que ainda assim haveria espaço para atos de violência da bandidagem. Desesperados por dinheiro, e ainda em posse de um fortíssimo poder bélico, é bem possível que os meliantes, tão logo fosse aprovada a ‘lei do armamento’, partissem com tudo para o ataque de veículos e apartamentos, uma vez que a probabilidade de seus ocupantes estarem armados ainda seria virtualmente nula (afinal, ainda não houve tempo de toda a população se armar). Os bandidos teriam muito pouco a perder com esses ataques e muito a ganhar com o sucesso deles.
Ou seja: tal medida poderia, de início, incitar a violência, ao invés de reprimi-la. E pior: a violência poderia ser de carga muito mais alta e irrefreável do que a normal, pelos motivos descritos acima.
O que nos leva à única opção que realmente tem chances de dar certo, a um custo mínimo de vidas:
4) A liberação das drogas e a desestatização das ruas e da segurança.
De início parece algo surreal e impraticável. Mas peço ao gentil leitor que separe cinco minutos do seu tempo e leia a primeira seção deste artigo. Aquilo que de início parece fictício repentinamente se torna incrivelmente lógico e sensato.
Ruas geridas privadamente – seja por empresas visando o lucro ou por cooperativas de moradores – e com sua própria agência de segurança, dificilmente permitiriam qualquer tipo de crime em sua propriedade. Afinal, onde você tem mais chances de ser assaltado hoje: nas ruas estatais ou dentro de um shopping privado? Mais ainda: nas ruas estatais ou nas ruas de um condomínio privado? Dá pra imaginar uma rua privada permitindo que meliantes ajam livremente nela, da mesma forma que o estado hoje permite que eles atuem nas ruas que ele administra? É até possível, mas muito improvável.
“Ah, mas os bandidos, por ainda estarem fortemente armados, poderiam atacar essas ruas e suas agências de segurança privada, tomando inclusive o lugar delas!”
Sim, isso sem dúvida pode acontecer, não sejamos ingênuos quanto a isso.
Mas há alguns pontos a serem considerados:
a) Um ataque desse tipo pode acontecer hoje, com muito mais facilidade, contra um condomínio qualquer, estando as drogas legalizadas ou não. Já em uma rua privada, cuja(s) agência(s) de segurança(s) poderia(m) contar inclusive com armamento de uso exclusivo da polícia, essa hipótese seria bem menor.
b) Ainda assim, caso os traficantes executem um ataque audaz a alguma dessas instalações, seria insensato imaginar que as agências de seguranças das ruas vizinhas não fariam absolutamente nada para impedir isso. Será que elas gostariam de ter bandidos controlando uma agência vizinha à sua? Será que elas ficariam sentadas e impassíveis, apenas vendo o show? Muito duvidoso.
c) Não seria desarrazoado acreditar que os próprios traficantes iriam pensar na situação acima, e com isso desistir de seus ataques. Afinal, como não há uma agência centralizada a ser tomada, e sim inúmeras agências dispersas, o empreendimento torna-se inviável. Como qualquer estrategista amador sabe, em uma operação de guerra, como uma invasão seguida de tomada de poder, é primordial que o invasor assuma o controle de pontos estratégicos. Como fazer isso em uma cidade recheada de agências de segurança independentes? Qual o ponto estratégico? Não há.
E, por fim, vale relembrar que a legalização das drogas tende a, no longo prazo, decrescer o poder bélico da bandidagem, o que impossibilitaria ainda mais a hipótese acima.
“Tá, mas e as comunidades mais pobres? Elas também terão ruas privadas? Como vão pagar por elas? Se não tiverem, vão ficar à mercê dos traficantes?”
Comecemos pela última pergunta. Se isso ocorrer, é muito provável que os traficantes tomem conta dela e façam exatamente aquilo que já estão fazendo hoje: extorsão. Portanto, sob essa hipótese, as coisas ficariam exatamente como estão, com uma diferença: com as receitas em queda, o poderio bélico seria decrescente, possibilitando inclusive uma futura tomada dessas regiões pelas agências de segurança privada. Não sei, são apenas hipóteses.
Da mesma forma, não seria insensato imaginar que os moradores dos bairros ricos financiariam de bom grado os serviços de agências privadas nesses bairros pobres, pois é do direto interesse deles impedir que os bandidos se refugiem e se procriem nessas áreas. Essa seria a solução ideal, e é de fato difícil imaginar a continuidade da criminalidade nesse cenário.
Enfim, há soluções, e todas elas dificilmente seriam piores que o atual arranjo.
A Realidade
Mas, O.K., sejamos realistas. Sabemos que há mais chances de o sol tremer de frio do que essa quarta solução ser adotada. O que é uma pena, pois a propriedade privada é realmente a única solução para qualquer conflito que venha a surgir.
Por exemplo, diz-se que se apenas o Brasil liberar as drogas, os traficantes do todo o mundo viriam pra cá, trazendo degradação e mudando completamente o cenário de nossas cidades. Isso teoricamente é verdade, mas fica a pergunta: como isso poderia ocorrer em um cenário de ruas privadas? Como esses traficantes iriam trazer suas degradações para esses ambientes? Se os donos das ruas determinassem que eles não poderiam ali entrar, seria impossível tal depravação ocorrer. Por outro lado, nada impede que outros bairros privados os recebessem de bom grado para suas festinhas, o que criaria uma clara delimitação de zonas de atuação – algo muito diferente do que ocorre hoje, onde famílias sabem que o traficante está logo ali na esquina de sua casa e das escolas.
Apenas esse arranjo de propriedade privada absoluta poderia eliminar pacificamente os problemas relacionados às drogas. Mais ainda: os custos seriam muito menores do que aqueles desperdiçados na inútil guerra às drogas que se trava hoje em dia, principalmente em termos de vidas humanas. É lamentável que as chances de sua implementação sejam nulas, sendo a resistência muito mais por uma questão ideológica.
Conclusão
Sim, a única solução para o problema das drogas é a princípio radical, mas também é a única que pode ser implementada sem grandes perdas de vidas. A proibição das drogas foi uma intervenção estatal que desvirtuou toda a sociedade, criando e enriquecendo toda uma classe de indivíduos violentos. Corrigir os efeitos dessa intervenção profunda e prolongada não é e nem poderia ser uma tarefa fácil e simples.
Se alguém tiver alguma outra solução que não seja a costumeira e comprovadamente fracassada “melhorar o policiamento” (ou “apertar o cerco” e variáveis afins), gostaria muito de ouvi-la.