A crise da dívida soberana na Europa e a contenda nos Estados Unidos sobre o teto da dívida do governo federal têm um significado que transcende a política atual. Esses acontecimentos denotam o fim de uma era. A crise financeira da atualidade assinala o fim da época do estado intervencionista de bem-estar social. Segundo sua própria natureza, este sistema é insustentável porque depende de um endividamento perpétuo do setor público. O fim do estado intervencionista de bem-estar social está marcado pela falência financeira do estado.
O problema
A destruição da ordem liberal do século XIX, em conjunto com o abandono do padrão-ouro na Primeira Guerra Mundial, produziu um período de caos econômico, de desintegração social, de pobreza e radicalização política que, por sua vez, foi causal para a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na era pós-guerra, foi estabelecida uma nova ordem sob a liderança dos Estados Unidos ao lado do império Soviético. Com o colapso do império comunista e o declínio relativo dos Estados Unidos, põe-se à prova mais uma vez a ordem econômica e a boa governança.
Cada época precisa reformular a reposta para a questão: o que é necessário para se aproximar de uma boa sociedade? As mudanças tecnológicas mudam a economia e a sociedade, e cada era está se confrontando novamente com provocações específicas.
Com a revolução industrial surgiu o problema das consequências negativas da divisão do trabalho. A divisão do trabalho implica especialização crescente, aumentando fortemente a interdependência socioeconômica. Os ganhos de produtividade trazidos pela especialização permitem um nível de vida cada vez melhor. Sem os ganhos de produtividade e, assim, sem um alto nível de especialização e uma rede extensa de divisão de trabalho (que por sua vez implica mercados, preços e moeda), a sociedade cai na pobreza.
Esse era o problema fundamental da época industrial e de todas as variações do socialismo — da social-democracia até o nacional-socialismo —, os quais representavam a resposta do século passado ao desafio de que, embora produza altos níveis de riqueza, a economia industrial deixa o indivíduo sempre em posição precária.
O sistema que resultou desse processo cruel de seleção foi o estado intervencionista de bem-estar social. Neste sentido, Francis Fukuyama elogiou o fim da história em 1992, refletindo as consequências da queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética.
Bancarrota do intervencionismo
Fukuyama identificou a democracia liberal do Ocidente como a forma final do governo humano. Porém, diferentemente da tese de Fukuyama, o que realmente se estabeleceu foi o “welfare-warfare-state” (estado assistencialista e belicista) nos Estados Unidos, o “social-liberalismo” na Europa, o populismo na América Latina e o “capitalismo de estado” na China, na Rússia e em várias outras partes do mundo. Na realidade de hoje não há nem neoliberalismo nem um sistema capitalista laissez-faire. O que se chama “democracia liberal” é o estado intervencionista de bem-estar social, caracterizado por uma imensa presença do estado na economia.
O capitalismo de hoje não é um capitalismo liberal; o que realmente existe é um capitalismo burocrático que está sob forte controle e regulamentação dos governos dos estados nacionais. A característica fundamental deste sistema é um intervencionismo caótico e desordenado — com uma legitimidade precária baseada no sistema redistributivo do estado de bem-estar social e da democracia das massas. O que existe é um sistema altamente precário, um sistema que está sempre em perigo de colapso. Cada crise provoca mais intervenções, produz mais burocracia e mais regulação, mais gastos do setor público e uma carga tributária cada vez maior.
Intervencionismo e burocratização são formas de atuar em uma “organização”. A ideia de tratar a sociedade como organização tem sua origem no positivismo de Auguste Comte (1798-1857). O grande dilema dos nossos dias é que a política atua como se a sociedade fosse uma organização e como se fosse possível “governá-la” por comando em um sistema hierárquico.
Enquanto o intervencionismo recebe aceitação popular, ele está confrontado com o problema de que a política econômica intervencionista pontual provoca confusão e bloqueio, o que resulta, finalmente, em uma carga excessiva de dívidas fiscais e, por fim, numa paralisia da atividade econômica e no declínio da produtividade. O intervencionismo moderno em sua atuação irritante e caótica destrói os fundamentos da produtividade e da coesão social. A hiperatividade governamental nervosa produz uma economia que sofre de insuficiente formação de capital e move-se de uma crise à outra. O que Ludwig von Mises diagnosticou nos anos 20 do século passado é hoje uma realidade inquestionável: o sistema econômico de intervencionismo é insustentável porque inerentemente cada intervenção provoca uma nova intervenção, e assim vai produzindo cada vez mais desordem e calamidades fiscais.
Boa governança
Um programa de boa governança acentua a necessidade de colocar as atividades governamentais e especificamente a política econômica no contexto do sistema inteiro, e assim implica a necessidade de um modelo normativo.
O tema da “boa governança” e, mais geralmente, a pergunta sobre a “boa sociedade” e a “ordem econômico-social”, a cada época se apresenta novamente. Para se manter no tempo, cada sociedade precisa resolver o conflito entre as vontades e cobiças dos indivíduos e as vantagens de viver juntos. Trata-se de inventar e reinventar novamente o modus vivendi social. Desta forma, estabelece-se o problema essencial da ordem socioeconômica, e para a sua solução é necessário levar em consideração não somente a natureza espontânea que se manifesta na expressão da natureza crua do ser humano, mas também o ideal humano como uma meta essencial e como ponto de orientação. Ordem — na tradição europeia desde os gregos antigos — significa a busca de uma ordem que seja adequada para o homem como animal político e, assim, para o ser humano como indivíduo que gosta e necessita da sociedade.
A ideia original da ordem, como já foi formulada na antiga filosofia, reside no fato de que, em relação ao mundo social, o espírito investigativo do homem não busca somente o conhecimento sobre a realidade, mas também sistemas ideais ou normativos. Neste sentido, a busca está orientada para uma ordem conforme a natureza humana.
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) insistiu na diferença entre cosmos e taxis, onde “cosmos” representa a ordem natural ao passo que “taxis” representa o sistema produzido pela intervenção humana. Semelhantemente, Tomás de Aquino (1225-1274) separa a lei natural da lei positiva, e o economista francês François Quesnay (1694-1774), autor de “Tableaux economique“, aplica a diferença entre a ordre positif e a ordre naturel em sua obra fundadora da fisiocracia. Adam Smith (1723-1790) usa quase a mesma dicotomia para identificar a ordem natural como a ordem comercial e a caracteriza como o resultado natural do laissez-faire sob a regência da mão invisível. Carl Menger (1840-1921), o fundador da escola austríaca, formulou a lei das instituições como resultado da ação humana sem plano e sem intenção, e Friedrich Hayek (1899-1992), da mesma escola, desenvolveu a teoria econômica constitucional, ao passo que Walter Eucken (1891-1950) elaborou a ordo-teoriaeconômica moderna como programa do ordo-liberalismo, o qual preparou a base teórica para estabelecer o sistema da “economia social de mercado” na Alemanha ocidental do pós-guerra.
Constitucionalismo econômico
No campo da política econômica, estamos hoje em um uma situação similar à política estatal de antes da introdução do estado de direito, o qual substituiu o sistema de privilégios particulares e a intervenção ad hoc dos princípios constitucionais. Como a luta pelo constitucionalismo jurídico, a luta pelo constitucionalismo econômico de hoje está confrontada com fortes preconceitos e descrença. O mesmo era o caso apenas alguns séculos atrás quando ainda parecia impossível existir a subordinação de poderes políticos na constituição ou haver uma separação entre estado e religião. Não obstante, o que é aceito quase sem discussão no campo jurídico, falta ainda completamente na esfera econômica. Aqui ainda não existe a separação entre economia e estado. Ao contrário, durante o século XX, o intervencionismo político na economia aumentou implacavelmente.
Para obter “boa governança” não é suficiente tornar o governo mais eficiente, transparente, participativo e livre de corrupção, como é o projeto dos grandes promotores deste conceito, como o Banco Mundial. Para obter uma “ordem econômica” onde espontaneamente surja “boa governança”, é necessário ter como pré-condição uma separação entre estado e economia. Neste caminho, o primeiro passo estaria na desestatização do dinheiro, ou, mais precisamente, a sua desnacionalização.
O estado intervencionista de bem-estar social é incapaz de produzir “boa governança”. Este sistema não pode ser qualificado como ordem. O estado intervencionista do bem-estar social é inerentemente expansivo e, com o seu crescimento, produz cada vez mais desordem. Para avançar no caminho de estabelecer um sistema de ordem, é necessário minimizar a esfera política.
O implacável crescimento do estado é possível em decorrência do acesso dos governos ao crédito ilimitado, pois, no sistema vigente, é o próprio estado quem tem soberania sobre a moeda. O projeto de minimização da atuação do governo não pode ser realizado enquanto os governos continuarem mantendo sua supremacia sobre a criação de moeda.
Nos Estados Unidos já existe o formidável movimento político para abolir o banco central americano, um movimento que, por sua vez, incentivou fortemente o interesse em teorias que tratam deste assunto, como é o caso da escola austríaca da economia. Ao longo das últimas décadas, a discussão monetária se concentrou no tema de como salvaguardar a independência dos bancos centrais das intervenções políticas. Entretanto, mais fundamental é o tema de como é possível livrar a moeda da supremacia do estado.
[Publicado originalmente no Ordem Livre]