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Ação, Tempo e Conhecimento: A Escola Austríaca de Economia

Capítulo 7 – A TEORIA AUSTRÍACA DOS CICLOS ECONÔMICOS

 

I.  Introdução

 

Uma das opiniões mais difundidas entre economistas e leigos é a de que a Grande Depressão do final dos anos 20 e início dos anos 30 do século passado teria sido provocada por “gastos de menos e poupança demais”.  Esse consenso equivocado, endossado pelos governos desde aquele tempo, ainda é prevalecente entre a maioria dos economistas.  Levou, por exemplo, os governos de muitos países a adotarem políticas de expansão dos gastos públicos em resposta à crise que se manifestou fortemente em 2008 nos Estados Unidos e que se alastrou pelo mundo.  Como veremos neste capítulo, essa prática é equivalente a algo como lançar gasolina em uma fogueira.

 

Na verdade, embora esse diagnóstico tivesse prevalecido sobre os demais — o que se deve ao extraordinário poder de persuasão de Lord Keynes e ao argumento “técnico” que sua terapia de aumentar os gastos públicos representou — e sempre representará — para políticos de todos os matizes —, há outra teoria, da mesma época — para não mencionarmos uma terceira, formulada por Milton Friedman nos anos 1950  —, desenvolvida por Hayek, com base na tradição de Carl Menger, na escola sueca de Knut Wicksell e, principalmente, no abrangente tratado de teoria monetária publicado por Mises, em 1912.  É uma teoria muito mais adequada, mas, infelizmente, desconhecida — podemos nos arriscar a dizer — por 999 em cada 1000 economistas.

 

Para Hayek e os economistas austríacos, a Grande Depressão não fora provocada por “gastos de menos e poupança demais”, mas exatamente pelo oposto, isto é, “gastos demais e poupança de menos”.

 

Serão loucos — ou incompetentes — os economistas, a ponto de dois dos mais famosos de sua época sustentarem cada um que aquilo que o outro apontava como causa era na verdade efeito e o que o colega apontava como efeito é que seria a verdadeira causa? Bem, há economistas loucos e há economistas incompetentes, mas não se pode dizer nem uma coisa nem outra tanto de Hayek como de Keynes, por mais que discordemos do último.

 

A questão crucial está nas considerações de natureza temporal subjacentes a cada teoria: Keynes, naTeoria Geral, olhou o curto prazo, os primeiros anos da década de 1930, em que de fato o setor privado gastava pouco, ao passo que Hayek, quando falava em sobreinvestimentos, estava se reportando aos imensos gastos realizados pelos governos nos anos 1920, especialmente após o fim da Primeira Guerra Mundial, comparando-os a um excesso de comida que, fatalmente, haveriam de provocar a indigestão da Grande Depressão. 

 

Poucas frases foram tão infelizes e provocaram efeitos tão devastadores como a de Keynes, uma verdadeira condenação à vida das formigas e exaltação à das cigarras, segundo a qual “no longo prazo, todos estaremos mortos”… Para compreender por que, voltemos na máquina do tempo que é a História do Pensamento Econômico.

 

No início dos anos trinta, Hayek foi convidado pelo próprio Keynes para proferir uma série de três conferências na London School of Economics.  O material daquelas palestras, então publicado sob o título dePrices and Production, representa sua primeira tentativa de elaborar uma teoria dos ciclos econômicos, combinando a análise das relações entre moeda e taxa de juros de Knut Wicksell com a teoria do capital de Böhm-Bawerk, e com a tradição iniciada em 1912 por Mises, no capítulo 19 de sua Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel.  As palestras de Hayek foram pontuadas por triângulos, de uma espécie que sua platéia jamais tinha visto anteriormente.  Com efeito, aquilo era desconhecido para John Hicks, Nicolas Kaldor e Joan Robinson e outros acadêmicos de renome, ou seja, simplesmente, para alguns dos economistas acadêmicos mais famosos da época, que, não conseguiram compreender a novidade apresentada por aquele colega recém chegado da Áustria.

 

Este capítulo tem os objetivos de explicar o que Hayek pretendia representar com seus triângulos e apresentar de maneira conceitual a alternativa dos economistas austríacos às teorias dos ciclos econômicos dos modelos econômicos convencionais.

 

Essa teoria procura explicar de que maneira os distúrbios monetários provocam ausências de coordenação intertemporal nas atividades econômicas (os booms artificiais), como essas faltas de coordenação, ao serem descobertas, provocam recessões (os busts) e que ajustamentos elas desencadeiam no sentido da reestruturação da economia.

 

Trata-se, como já mencionamos, de uma tentativa de conciliar elementos wicksellianos e böhm-bawerkianos, tal como já o fizera Mises em seu tratado de 1912.  Além disso, Hayek enriqueceu-a com as influências de David Ricardo e John Stuart Mill, bem como, é claro, com seus próprios insights.  O resultado é uma integração magistral das teorias dos preços, da moeda, do capital e do processo de mercado.  Os diversos elementos da teoria hayekiana — que são isolados a seguir para facilitar a compreensão e a análise do leitor — estão conectados por uma forte complementaridade, a tal ponto de não podermos rejeitar qualquer um deles sem que a teoria como um todo fique comprometida.

 

II.  Os elementos da teoria

 

(1º.) o processo de mercado

 

Embora, para efeitos de exposição, Hayek tenha partido de uma situação que se abstrai da existência de recursos ociosos, sua teoria dos ciclos é essencialmente austríaca, na medida em que trata os mercados como processos dinâmicos de descoberta e de coordenação.  Como observou Fritz Machlup, a tese fundamental da teoria é que os ciclos são causados por fatores monetários, mas são constituídos por fatores reais.  Esses últimos nada mais são do que o desenrolar do próprio processo de mercado em resposta a um choque descoordenador.   Neste processo, os sinais emitidos pelos preços funcionam como elementos coordenadores: quando a manipulação monetária cria uma sinalização falsificada de preços, está plantada a semente da ausência de coordenação econômica.

 

Como qualquer análise austríaca, a teoria dos ciclos econômicos considera os mercados como processos — e não como estados estáticos de equilíbrio  —, que tendem a convergir para o equilíbrio, mas que não o alcançam, porque a multiplicidade de fatores que determina a ação humana ao longo do tempo e sob condições de incerteza genuína não o permite.

 

 (2º.) a doutrina da poupança forçada

 

Quando ocorre uma expansão na oferta de moeda, verifica-se uma inchação na oferta de fundos para empréstimos, que introduz uma cunha entre poupança e investimento.  A concepção de poupança forçadade Hayek refere-se a uma situação ex-post: os consumidores descobrem que devem consumir menos do que haviam planejado para cada nível de renda e a poupança forçada ou artificial é igual à diferença entre a poupança observada e a poupança planejada, que corresponde à expansão do crédito.  Em outras palavras, a moeda nova fantasia-se de poupança, ao reduzir artificialmente a taxa de juros abaixo de seu nível natural(aquele que equilibra a oferta de empréstimos com a demanda de empréstimos), fazendo com que a trajetória de investimentos torne-se inconsistente com o montante de poupança real e com as preferências intertemporais de consumo e desencadeando um processo de ausência de coordenação intertemporal.   Apoupança forçada pode ser visualizada no gráfico abaixo como a distância DM, em que r representa a taxa de juros, S a poupança, I o investimento, Sp a poupança planejada , Ip o investimento planejado, r a taxa de juros natural e r’  a taxa de juros de mercado.

 

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(3º.) a estrutura mengeriana de produção (ou estrutura de capital)

 

Os bens de capital, na concepção originária de Menger e desenvolvida posteriormente por Böhm-Bawerk, são heterogêneos e relacionam-se uns com os outros mediante diversos graus de complementaridade e substituibilidade, ao longo dos diversos estágios que caracterizam a estrutura de produção, que vão desde os bens de primeira ordem (de consumo final) até os bens de ordens mais elevadas.  Tanto estes como os primeiros são complementares em termos intertemporais: taxas de juros artificialmente baixas provocam uma ausência de coordenação intertemporal, que se manifesta inicialmente na forma de sobre-investimentos em bens de capital (isto é, em bens de ordens mais elevadas).  Na linguagem dos economistas austríacos, a estrutura de produção torna-se mais indireta (roundabout), isto é, aumenta o número de estágios que a compõem.  Mas, com o decorrer do tempo e a conseqüente escassez dos bens de capital (complementares) de ordens mais inferiores, a falta de coordenação intertemporal acabará sendo percebida e esse fato desencadeará tentativas de retornar à estrutura de produção inicial (menos roundabout).

 

A estrutura de produção pode ser representada por uma série de retângulos em que, da direita para a esquerda, caminhamos dos bens de ordens menos elevadas (de consumo) para os de ordens mais elevadas (de capital).  O eixo horizontal mede o tempo envolvido na estrutura de produção — contado da esquerda para a direita — e a altura de cada retângulo reflete o valor de produção (preço vezes quantidade) em cada diferente estágio de produção.

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A figura que liga os pontos A, B e C corresponde a um triângulo retângulo e é conhecida comotriângulo de Hayek , que é uma forma simplificada de representação da estrutura de produção.

 

(4º.) a taxa de juros promove a coordenação intertemporal

 

A função principal da taxa de juros na concepção austríaca é a de servir como elemento de coordenação entre as trajetórias de consumo e investimento (e, obviamente, de poupança).   O tempo de produção (ou período de produção, na linguagem de Böhm-Bawerk), é uma variável endógena, na medida em que determinará a existência ou não de coordenação entre as decisões de produção e de consumo.  E a taxa de juros é justamente a variável que, incorporando o tempo, afeta ambas as decisões.

 

Assim, quando a taxa de juros estiver em seu nível natural, isto é, quando for determinada exclusivamente pelas preferências intertemporais e pela demanda de investimentos, haverá coordenação entre as trajetórias de consumo e de investimento; quando não estiver, não existirá essa coordenação, o que significa que existirão desequilíbrios entre a demanda e a oferta ao longo da estrutura de produção.

 

(5º.) o efeito Ricardo

 

Em sua formulação original, o efeito Ricardo dizia respeito à substituição de mão de obra (fator de produção de curto prazo) por capital (fator de produção de longo prazo), como decorrência de uma redução na taxa de juros.  No contexto da teoria hayekiana dos ciclos, entretanto, a substituição não de dá entre “homem” e “máquina”, mas sim entre bens de capital de ordens menos elevadas e de ordens mais elevadas: na fase inicial do ciclo, a taxa de juros artificialmente baixa estimula os investimentos em bens de capital de ordens mais elevadas.   Com a conseqüente disputa por bens de capital de ordens mais baixas (complementares), os preços destes últimos tendem a aumentar o que provoca um crescimento na demanda por crédito (desperation borrowing) e o subsequente aumento da taxa de juros, encorajando, por sua vez, a liquidação dos projetos de produção iniciados na primeira fase, mas ainda não terminados.  Voltaremos aoefeito Ricardo com maiores pormenores no próximo capítulo.

 

 (6º) a quarta proposição fundamental de John Stuart Mill

 

Com seu conhecido aforismo “demanda de mercadorias não é demanda de trabalho”, Mill procurava ressaltar o perigo da incorporação de demandas derivadas em economia política.  As teorias macroeconômicas modernas, em que as demandas pelo produto final e pelos fatores de produção movem-se sempre no mesmo sentido, parecem não dar importância à advertência de Mill.   Mas a formulação austríacareconhece que as duas demandas podem mover-se em sentidos opostos e essa atenção para com a quarta proposição daquele economista inglês do século XIX (de quem Hayek era um admirador) é uma das diferenças mais significativas entre a teoria dos ciclos austríaca e as suas rivais.

 

Se o consumo presente está caindo, isto não significa necessariamente que a demanda de trabalho e de outros fatores também esteja caindo; pode significar que a propensão a poupar esteja aumentando, o que poderá fazer surgir a expectativa de que o consumo futuro poderá subir, o que, por sua vez, poderá levar ao crescimento da produção de bens de consumo futuros e, assim, aumentar a demanda de trabalho no presente.   Para Hayek, em um dado período, os gastos de consumo e de investimento podem e, sob condições de pleno emprego (ou de nível natural de emprego), devem mover-se em sentidos contrários.

 

Na verdade, este deslocamento de recursos entre bens de ordens inferiores (“consumo”) e bens de ordens superiores (“investimento”) e entre os diversos estágios da estrutura de produção é que leva à coordenação intertemporal ou à sua ausência: coordenação, quando o deslocamento é provocado por alterações nas preferências temporais e falta de coordenação, quando é causado por manipulações monetárias.

 

(7º) a teoria hayekiana do conhecimento

 

            A manipulação monetária, promovida pela expansão inicial do crédito sem lastro em poupança genuína, ilude os participantes dos mercados, fazendo com que eles se comportem de modo diferente do que imaginavam; isto é possível porque o conhecimento sempre é limitado.   Para Hayek, há dois tipos de conhecimento: o científico e o dos participantes dos mercados.  Pode-se esperar que os participantes dos mercados — dado o seu conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar — sejam induzidos pelos preços de mercado a comportar-se “como se” eles possuíssem o conhecimento científico, isto é, como se compreendessem a estrutura do sistema econômico; mas não se pode esperar que eles interpretem instantaneamente como tais as distorções de preços provocadas pela manipulação monetária, com base em um conhecimento “científico” da estrutura da economia.

 

Com estes sete elementos básicos — que, como vimos, são indissociáveis — Hayek construiu sua teoria das flutuações cíclicas.  Uma forma de sintetizá-la e, ao mesmo tempo, de visualizá-la, é representá-la diagramaticamente, na forma dos triângulos de Hayek (que os adaptou dos gráficos de investimento de Stanley Jevons) e dos vetores de oferta e de demanda “agregadas”, como o fez o economista Mark Skousen (The Structure of Production, NYU Press, NewYork, 1990).

 

 

III.  Os triângulos de Hayek e os vetores de oferta e demanda “agregadas”

 

Este instrumental parte do princípio de que a estrutura de produção da economia tem duas dimensões — valor e tempo — e de que podemos usar triângulos retângulos para representá-las.  Como vimos anteriormente, cada triângulo é uma representação aproximada da estrutura de produção da economia com seus diferentes estágios e dos bens que são gerados em cada um dos estágios.  Nesta metáfora de Hayek, cada bem de consumo gera todos os seus serviços em um único período, o que é um expediente metodológico para escapar ao problema dos bens de consumo duráveis, uma vez que seu objetivo é analisar a distribuição temporal dos bens de capital.  Os bens intermediários fluem nos sucessivos estágios de produção e seu valor em cada ponto da cadeia é uma função do tempo, f (t).   Seu valor total é, portanto, igual à integral dessa função mensurada em um período genérico s, igual ao tamanho da estrutura de produção adotada.   Em outras palavras, se a injeção de capital e, portanto, a produção é iniciada no período de tempo h, então o valor dos produtos intermediários será:

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Para Hayek, a questão crucial para a teoria dos ciclos é a correspondência mútua entre os planos dos poupadores e investidores e os planos dos consumidores e produtores.  O triângulo ilustra um trade-offreconhecido por Menger e enfatizado por Böhm-Bawerk: em um dado instante e na ausência de ociosidade de recursos, os investimentos crescem às expensas do consumo.  Os investimentos, que exigem uma alocação de recursos que despenda mais tempo aumentam a dimensão temporal do triângulo, isto é, tornam o processo de produção, na linguagem de Hayek, mais capitalista ou indireto (roundabout).  Para que os investimentos aumentem, o consumo deve cair, inicialmente tanto em termos nominais como reais.   Uma vez que a reestruturação do capital esteja completada, aumentará o nível correspondente de consumo real, mas o nível de consumo nominal ficará abaixo de seu valor inicial, porque a nova estrutura de produção, para ser mantida, exigirá gastos maiores em bens de ordens superiores que anteriormente. 

A taxa à qual surgem os bens de consumo final, isto é, a produção de bens de consumo final, é uma função crescente do intervalo de tempo, f (h + s).  Portanto, o modelo é expresso inteiramente em termos de fluxos (pois seu objetivo não é ressaltar o atributo de durabilidade dos bens, mas sim sua distribuição temporal).

 

No gráfico seguinte, o cateto AB representa a dimensão temporal, mensurada pelo número de estágios, admitindo-se que o número de estágios varia diretamente com o tempo da estrutura de produção.   O cateto BC representa a produção de bens de consumo, isto é, f (h + s).  A hipotenusa AC, a função de produção, f (t) e a área, a integral mencionada.  Os diversos estágios de produção em que se subdivide o cateto AB consistem de bens de capital circulante, medidos em termos de valor.

 

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Sempre que ocorrer uma recomposição do produto provocada por uma mudança nas preferências intertemporais, mudará a forma do triângulo.   O ponto central é que se essas preferências mudarem em decorrência de uma variação na propensão a poupar, não haverá qualquer expansão cíclica, mas se elas se alterarem em resposta aos falsos sinais provocados pela política monetária, o ciclo será desencadeado.

 

O processo mediante o qual uma variação na oferta de moeda pode desencadear um ciclo econômico pode ser explicado de forma didática a partir dos conceitos de vetores de oferta e de demanda “agregadas”.  Imaginemos uma estrutura de produção bastante simples, com apenas quatro setores, a saber, o da matéria prima (bem de 4ª ordem), manufaturado (bem de 3ª ordem), atacado (bem de 2ª ordem) e varejo (bem de 1ª ordem).

 

O equivalente na metodologia austríaca ao equilíbrio macroeconômico convencional entre a oferta e a demanda agregada é a coincidência entre os vetores VOA e VDA.  De fato, supondo, para facilitar o raciocínio, uma economia uniformemente circular, podemos verificar que a condição para a ocorrência de equilíbrio no modelo de Hayek é que os dois vetores não apenas sejam paralelos, mas coincidam.  Se, em um ponto qualquer da cadeia produtiva, isto é, em um determinado estágio de produção, houver um excesso de demanda sobre a oferta, os produtores nesse estágio terão lucros excedentes em relação aos produtores de outros estágios, o que, se existir mobilidade de recursos, fará com que estes sejam atraídos para o referido estágio, que se revela mais lucrativo.  Assim, com o tempo, sua lucratividade cairá até que se iguale à dos demais estágios.  Mutatis mutandi, se ocorrer um excesso de oferta em um determinado segmento da estrutura de produção, os recursos sairão desse estágio em busca de outros mais lucrativos, o que fará aumentar a lucratividade no primeiro estágio.

IV.  As cinco “fases” dos ciclos econômicos
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O vetor de oferta “agregada” pode ser considerado um vetor porque possui os atributos de módulo (comprimento), direção e sentido.  Reflete o fato de que a produção move-se desde o estágio de matérias primas até o de consumo final, isto é, da esquerda para a direita, ao longo da cadeia produtiva.  Todas as empresas transformam inputs em outputs, de baixo para cima, em direção ao consumo final.  Conforme a produção se move de um estágio para o subseqüente, a receita agregada aumenta de acordo com a lucratividade de cada estágio.  Assim, o vetor de oferta agregada (VOA) tem a seguinte forma:

 

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            A direção e o módulo de VOA são determinados pela lucratividade de cada estágio, pela tecnologia e, de um modo geral, por todos os fatores que costumam influenciar a oferta.

 

Já o vetor de demanda agregada (VDA) move-se da direita para a esquerda e de cima para baixo, porque neste caso estamos percorrendo a cadeia produtiva desde o estágio produtor de bens de primeira ordem até o estágio de ordem mais elevada (no nosso exemplo, o da matéria prima).  Reflete o fato de que o varejista compra do atacadista, este compra da manufatura e o responsável por esta compra a matéria prima.  Uma das grandes contribuições dos economistas austríacos, desde Menger, foi demonstrar que os preços dos produtos finais é que determinam o valor dos bens utilizados para produzi-los, isto é, de que são os preços que determinam os custos.

 

O vetor de demanda agregada, a seguir representado, é influenciado, basicamente, pelas preferências intertemporais.

 

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Devemos observar que a variável que mantém os dois vetores em equilíbrio é a taxa de juros que, na concepção austríaca, é o principal “regulador” da economia, uma vez que é esta variável que possibilita aos produtores determinar as quantidades de recursos destinadas aos diversos mercados intertemporais, ao mesmo tempo em que possibilita aos consumidores saber que frações de seus fundos disponíveis serão encaminhadas para poupança e para investimento.  Sem taxas de juros livremente determinadas pelo mercado de loanable funds, o mercado não pode encontrar estabilidade.

 

O conceito de “equilíbrio macroeconômico” austríaco pode, dessa forma, ser representado graficamente pela coincidência entre os vetores VOA e VDA, como no gráfico seguinte.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   15.jpg

Podemos agora, de posse deste aparato, verificar um pouco mais didaticamente como uma variação na oferta de moeda — admitamos que seja uma expansão monetária — afeta a estrutura de produção.  A dinâmica dos ciclos obedece a cinco “fases” distintas, em que se sucedem os efeitos provocados pelos sete elementos centrais da teoria hayekiana que definimos anteriormente.

 

Suponhamos uma economia uniformemente circular, em que os vetores VOA e VDA sejam coincidentes e admitamos que nessa economia ocorra uma expansão na oferta de moeda.  Sabemos que nestas condições e na ausência de inflação e de expectativas de inflação, o primeiro efeito do crescimento na oferta monetária será reduzir a taxa de juros de mercado, fazendo com que ela fique menor do que a taxanatural e criando, assim, uma diferença no mercado de loanable funds entre a poupança planejada e o investimento planejado, diferença que corresponde, como vimos, à poupança forçada.  Ocorre que, no primeiro  momento, os agentes econômicos não percebem que o crescimento no investimento planejado não é lastreado em poupança genuína, mas apenas em um excesso de oferta de moeda.

 

Assim, a queda na taxa de juros dos empréstimos vai afetar o valor presente dos diferentes projetos de investimentos de maneiras desiguais.  Sendo, para exemplificar, y a renda futura de um ativo de capital, V o valor presente, r a taxa de juros e n o número de anos, temos:

 

V = [y / 1+r] + [y / (1+r)2] + [y / (1+r)3] + ……..  + [y / (1+r)n]

 

Vemos, então, claramente que variações na taxa de juros afetam bem mais fortemente as rendas futuras do que as mais próximas do presente, uma vez que, quanto maior n, maior o aumento em V provocado por uma queda em r.  Isto deflagra a primeira fase do ciclo.

 

1ª fase: boom nas indústrias de bens de capital sob inflação

 

            A queda na taxa de juros faz com que o triângulo de Hayek se altere de ABC para A’BC’, tornando, pelo aumento do valor presente dos projetos de longo prazo, a estrutura de produção mais indireta (roundabout).

 

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Observemos que a passagem de A para A’ corresponde a um alargamento da estrutura de produção, que ocorre devido à incorporação de mais estágios e que o movimento de C para C’ refere-se à queda no valor dos bens de consumo (ou, pelo menos, a um crescimento neste último menor do que o verificado no valor dos bens de capital localizados nos estágios iniciais da cadeia produtiva).

 

As alturas menores do triângulo A’BC’ em relação ao triângulo original ABC mostram, primeiro, que a demanda pelo produto cai nos estágios finais de produção, seja em termos absolutos como no gráfico, seja em termos relativos; segundo, que a intensidade da queda diminui, na medida em que os estágios mais afastados do consumo passam a ser considerados (isto é, quando nos movemos de B para A’); terceiro, que os bens de ordens mais elevadas experimentam um crescimento de demanda e quarto, que novos estágios mais afastados do consumo são criados (aqueles situados entre A e A’).  A nova inclinação da hipotenusa — agora menor do que a inicial — reflete a queda da taxa de juros, gerada pela agora menor preferência intertemporal.   Como vimos no capítulo anterior, a taxa mais baixa de juros altera as margens de lucro nos diversos estágios de produção de forma diferenciada: em cada estágio, os preços dos fatores alteram-se em relação aos preços dos produtos e o efeito cumulativo desses ajustamentos de preços relativos torna-se maior nos estágios iniciais da produção.  Isto é que faz com que os recursos se desloquem dos estágios finais para os iniciais.

 

Seria fundamental, para que a passagem do triângulo ABC para A’BC’ fosse consistente com a complementação do processo de reestruturação de capital, que a queda da taxa de juros tivesse sido provocada não por uma pura expansão monetária, mas por um crescimento na propensão a poupar, pois somente assim os novos investimentos estariam sendo lastreados em poupança real.  Como, entretanto, isto não ocorreu, podemos afirmar que o novo triângulo A’B C’ é inconsistente com o processo de reestruturação do capital, porque haverá falta de coordenação nos planos dos agentes econômicos, provocada pelapoupança forçada.  Ao invés de crescimento econômico, surgirá então um ciclo econômico.

 

2ª fase: efeitos-renda

             A partir de certo momento, em decorrência da maior utilização de recursos nos estágios que haviam se tornado mais lucrativos na fase anterior, as rendas dos fatores de produção utilizados naqueles estágios tenderão a subir, o que dará origem a uma expansão do consumo.  Em outras palavras, conforme o tempo passa, a renda gerada pelo boom de investimentos vai sendo gasta na forma de mais consumo, já que, como não ocorreu nenhum incremento na propensão a poupar, a relação consumo/poupança crescerá.

 

Ocorrerá, então, um desequilíbrio entre os vetores de oferta e demanda agregadas, tal como no gráfico seguinte.

 

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            De fato, com o crescimento da relação consumo/poupança, os dois vetores necessariamente passarão a mover-se em direções diferentes, o que rompe a condição necessária para a ocorrência de equilíbrio macroeconômico.  Se o crescimento da renda fosse suficiente para comprar o agora maior volume de bens e serviços que estão sendo produzidos, ocorreria inflação, porém sem desequilíbrios entre produção e consumo, tal como sustentavam os monetaristas.  A propósito desses, vale lembrar sua ênfase no fato de que a velocidade de circulação da moeda deveria crescer durante os booms e cair durante as recessões.  Mas isso não reflete a realidade das atividades econômicas; para uma compreensão mais adequada dos fenômenos do mundo real é mais interessante desagregarmos a velocidade de acordo com os diferentes estágios de produção.  Durante um boom, a velocidade de circulação da moeda inicialmente cresce nos estágios mais afastados do consumo final; mais tarde, ela passa a crescer em todos os estágios até que, finalmente, no ponto de pico do boom, ela torna-se mais elevada nos estágios próximos ao consumo final do que nos mais afastados.  A ênfase, portanto, não deve ser macroeconômica, mas sim microeconômica.

 

No modelo austríaco, ocorrerão simultaneamente inflação com desequilíbrios entre produção e consumo (VOA e VDA), porque a manipulação monetária sem o correspondente crescimento da propensão a poupar introduziu necessariamente divergências entre as preferências intertemporais individuais (expressas pelas proporções em que as rendas nominais são poupadas, investidas ou consumidas) e a estrutura temporal de produção.

 

3ª fase: o aperto de crédito

 

O crescimento dos gastos em bens de consumo que agora se verifica de maneira cada vez mais forte termina criando um “cabo-de-guerra” entre os setores produtores desses bens e as indústrias, ainda em expansão, de bens de capital.   Esta disputa tem o efeito de aumentar tanto os preços dos bens de capital quanto a taxa de juros e, como as rendas são maiores nos estágios de bens de capital do que nos de bens de consumo (pois a expansão dos primeiros iniciou-se antes que a dos segundos), ocorrerá uma escassez de capital nas indústrias cuja expansão somente agora se inicia.

 

Trata-se de uma competição por loanable funds que está sendo travada em todos os estágios da estrutura de produção.  É bastante provável que tanto as taxas de juros de curto prazo como as de longo prazo aumentem, mas é de se esperar que, em termos relativos, o crescimento das taxas de juros de curto prazo seja maior, criando uma curva de rendimentos (yield curve) temporariamente invertida, isto é, decrescente, como no gráfico seguinte:

 

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O aperto de crédito, portanto, aumenta as taxas de juros para níveis superiores aos seus níveis de equilíbrio de longo prazo e é provocado pelo efeito Ricardo à la Hayek.  O boom inicial termina porque uma de suas conseqüências é o aumento dos preços dos bens de capital relativamente aos salários, o que faz com que as empresas procurem substituir os métodos de produção poupadores de trabalho pelos métodos mais intensivos neste fator de produção.  Observemos que esses últimos são mais característicos dos estágios produtores de bens de consumo, enquanto os métodos de produção intensivos em capital são mais característicos dos estágios mais afastados do consumo final.   O efeito da disputa pelo crédito é o de deslocar o triângulo de Hayek de A’BC’ para, digamos, A”B C”.  Isto ocorre porque a “volta” de A’BC’ para o triângulo original ABC, que seria, em um contexto estático, a posição de equilíbrio final, é um fenômeno impossível diante das hipóteses de incerteza genuína e de tempo dinâmico que caracterizam a metodologia austríaca.

 

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4ª.  fase:  recessão

 

            Nesta etapa, o boom inicial transforma-se em bust, ou seja, a expansão transforma-se em retração.  Projetos são abandonados, ordens de compra são canceladas, trabalhadores são demitidos, a estrutura de capital torna-se mais wide (utilização maior de máquinas e equipamentos velhos) e, portanto, menos deep(cancelamento de compras de máquinas e equipamentos novos), aumentam os estoques, caem as rendas e os preços nas indústrias de ordens mais elevadas.

 

Estes fatos desagradáveis ocorrem porque, simplesmente, nenhuma expansão artificial (isto é, não lastreada em poupança genuína) do crédito pode decretar o crescimento da oferta real de bens; o que ela pode fazer é provocar um rearranjo da estrutura de produção, pelas inumeráveis alterações de preços relativos que desencadeia.  São essas alterações que desviam os investimentos e a produção de suas trajetórias anteriores à expansão artificial do crédito.  Como resposta, ocorre um “boom” inicial, mas que, por carecer de bases sólidas, não pode representar uma situação de real prosperidade, mas apenas a de uma prosperidade ilusória e efêmera.  Tudo se passa como se alguém começasse a construir um enorme edifício e, já com a obra em pleno andamento, viesse a descobrir, tarde demais, que os fundos de que dispunha não eram suficientes para levar o projeto até o fim.  Moeda não é poupança!  O máximo que uma expansão monetária pode conseguir é fantasiar-se de poupança durante algum tempo, durante o qual conseguirá iludir os agentes econômicos.

 

É muito importante atentarmos para o fato de que, contrariamente do sugerido pelos diversos modelos macroeconômicos existentes, a recessão ou depressão não é apenas um caso de desemprego generalizado crescente, mas de desemprego que ocorre principalmente nos estágios de bens de ordens mais elevadas e nos mercados que se relacionam com esses estágios.  Para visualizar melhor este aspecto fundamental da, “teoria macroeconômica” austríaca, voltemos à nossa estrutura de produção simplificada, composta apenas pelos estágios de matérias primas, manufaturados, atacado e varejo.  Podemos resumir os efeitos que ocorrem ao longo desta cadeia produtiva, durante a quarta fase do ciclo, da seguinte forma: (1º.) as quedas maiores de preços, produção e emprego normalmente têm lugar no estágio produtor de bens de 4ª ordem (matérias primas); (2º.) no estágio de manufaturados, também ocorrem quedas de preços e produção, mas em intensidade menor; (3º.) as quedas observadas no setor de bens de 2ª ordem (atacado) são ainda menos intensas e (4º.) no estágio de bens de consumo final, o efeito é o menos intenso, podendo até, no caso de expansões monetárias substanciais, continuar a ocorrer aumento de preços e de produção.  A figura seguinte ilustra essas alterações relativas de preços, produção e emprego, provocadas pelas mudanças nos diversos determinantes da oferta e da demanda ao longo da estrutura de produção.

 

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Os efeitos que se processam ao longo da estrutura de produção durante os períodos de expansão são simétricos, isto é, preços, produção e emprego de fatores de produção experimentam aumentos crescentes à medida que nos movemos da esquerda para a direita, desde o estágio de matérias primas até o de varejo, tal como na figura seguinte:

21.jpg

 


5ª fase: retomada e estabilidade

 

A etapa final é atingida quando os preços das indústrias de bens de capital param de cair e essas indústrias entram em colapso, ao mesmo tempo em que o consumo diminui em resposta às quedas nas rendas setoriais.  Isto vai ocorrer até que os dois vetores, VOA e VDA, novamente voltem a coincidir, embora em uma posição certamente diferente de sua posição de equilíbrio anterior ao início do ciclo.  Não há nenhuma razão que faça com que o ciclo se repita, a menos que o governo volte a expandir a oferta monetária.  Vemos, assim, que o boom induzido pela inflação não resulta em um jogo de soma zero, uma vez que tanto os níveis como a própria estrutura da atividade econômica serão diferentes dos prevalecentes antes do início da inflação.

 

Em conclusão, o ciclo é provocado pela expansão artificial do crédito, que gera um boom inicial nos negócios que não pode ser mantido, devido à não uniformidade que ele provoca entre os vetores de oferta e de demanda agregadas.   O que a inflação, entendida como a expansão da moeda sem lastro em poupança real, consegue é tão somente provocar distúrbios na atividade econômica.

 

A abordagem essencialmente microeconômica da Escola Austríaca permite analisar a economia de uma forma bem mais realista do que a análise agregada utilizada pelos modelos macroeconômicos.  Com efeito, não se trata simplesmente de pensar em termos de expansões ou recessões generalizadas, nem de aumentos ou quedas generalizadas no nível geral de preços ou no nível de emprego, mas de observar que a inflação provoca distúrbios alocativos em toda a estrutura de produção da economia, porque ela altera os preços e as rendas relativas entre os diferentes estágios de produção.

 

V.  A não neutralidade da moeda

 

Vimos como a metodologia austríaca, ao analisar a atividade econômica levando em consideração a dimensão temporal embutida na estrutura de produção, demonstra que os efeitos de uma inflação monetária não podem ser uniformes.  Este resultado contrasta com os da Teoria Quantitativa da Moeda, sintetizada pela conhecida equação M V = P y, em que M representa o estoque de moeda, V sua velocidade de circulação, P o nível geral de preços e y o produto real (PIB).  A tese monetarista é a de que, admitindo-se uma razoável estabilidade na velocidade (que é, na versão de Milton Friedman, determinada pelos parâmetros dos mercados financeiros) e também que o produto real esteja perto de seu nível “natural” (situação em que o nível de preços observado e o esperado coincidem), então, no longo prazo, a moeda é neutra, significando que uma variação em sua oferta provocará uma variação no mesmo sentido e na mesma proporção no nível geral de preços, de modo que, em termos reais, tanto a produção como o nível de emprego permanecerão os mesmos.  De acordo com o princípio da neutralidade da moeda, então, a estrutura de produção sofreria alterações uniformes ao longo de toda a cadeia produtiva: por exemplo, um crescimento de, digamos, x% na oferta de moeda faria com que, no longo prazo, todos os preços subissem também em x%, o que deslocaria a estrutura de produção para cima em x% em todos os seus diferentes estágios, tal como no gráfico que se segue.

 

 22.jpg

 

Em termos diagramáticos, podemos visualizar a neutralidade da moeda como a reta OM no gráfico seguinte, em que estão representados, no eixo vertical,  o estoque monetário original, isto é, M0 , anterior à expansão monetária, e, no eixo horizontal, a nova magnitude do estoque de moeda, M1 .  A bissetriz OA, evidentemente, representa a igualdade entre os dois estoques e é utilizada como um referencial.  Se a expansão na oferta monetária for neutra, então ela vai corresponder simplesmente a uma rotação no sentido dos ponteiros do relógio da linha OA.

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Mas ocorre que a expansão do crédito não ocorre uniformemente, como se um helicóptero despejasse moeda sobre todos os setores da economia por igual.  Como vimos no capítulo anterior, ela se dá inicialmente em um (ou em alguns) ponto da cadeia produtiva e, por isso, ela não pode ser neutra.  Imaginemos, para simplificar, uma economia com apenas dois estágios, A e B, e sejam MA e MB, respectivamente, as quantidades de moeda de posse de A e B.  Imaginemos uma expansão monetária que aumente o estoque de moeda, tal como no exemplo anterior, de M0 para M1 e que toda a moeda nova, sob a forma de crédito, caia desproporcionalmente em mãos do setor A.  Isto pode ser representado em um diagrama que mostre separadamente os aumentos das quantidades de moeda em mãos de cada um dos dois setores.  Inicialmente, o estágio B não é afetado pela expansão monetária, fato representado graficamente por M’B, que coincide com a bissetriz utilizada como linha de referência.  O estágio A, por sua vez, experimenta uma expansão monetária indicada por M’A.  Mas, na medida em que este estágio começa a gastar a nova moeda, ela vai se transferindo para o setor B, até que, finalmente, as expansões monetárias verificadas nos dois estágios sejam iguais, o que é indicado pela linha M”A » M”B, revelando, assim, a não-neutralidade da expansão monetária, que se manifesta como uma distorção temporária no mercado intertemporal.

 

24.jpg

Em suma, de acordo com a metodologia austríaca, o postulado da neutralidade da moeda é falho, porque não reconhece que os fatores monetários afetam não apenas o volume da produção, mas também a sua direção.  Assim, uma teoria que pretenda explicar os ciclos econômicos sem levar em conta que a produção de bens de capital flutua bem mais do que a de bens de consumo, não pode ser inteiramente satisfatória.  A macroeconomia, por enfatizar agregados, como nível de preços e PIB, ignora os mecanismos precisos de transmissão que a inflação provoca na economia, prendendo-se apenas aos seus efeitos finais.

 

VI.  Os triângulos de Hayek e a curva de Phillips

            

É interessante observarmos a semelhança entre os triângulos hayekianos e a curva de Phillips, que Friedman, Phelps e outros ajudaram a popularizar nos anos 60 e 70.  No entanto, devemos frisar que a análise monetarista, seguindo a tendência da macroeconomia convencional, concentra-se apenas no mercado de trabalho, isto é, nas divergências entre salários esperados e salários observados, até que, no “longo prazo” — definido como o período em que essas divergências desaparecem, ou seja, em que não mais existirem erros de expectativas — o trade-off proposto pela curva de Phillips entre inflação e desemprego deixa de existir.  Comparemos graficamente os dois modelos.  Os triângulos de Hayek estão representados à esquerda e curva de Phillips no lado direito do gráfico seguinte.

 

25.jpg

 

Observando a curva de Phillips, vemos que, partindo do ponto R, em que a economia está operando na taxa de desemprego “natural” (U n), quando o governo, para reduzir o desemprego, expande a oferta monetária, ele consegue temporariamente o seu objetivo, reduzindo o desemprego do nível natural para U’.  Caminhamos do ponto R para o ponto S, o que significa que a taxa de inflação, medida no eixo das ordenadas, aumentou de p1 para p2.   Este aumento da inflação, no entanto, não é percebido imediatamente pelos trabalhadores, o que faz com que, no curto prazo, a curva de Phillips inicial, definida como o lugar geométrico das combinações de taxa de inflação e taxa de desemprego em que as expectativas de inflação sejam p* = p1, permaneça fixa.  Isto continuará a ocorrer, de acordo com Friedman, enquanto os trabalhadores não perceberem que o salário real que eles acham que estão ganhando é menor do que o salário real que estão efetivamente ganhando.  Mas, a partir do momento em que eles perceberem que suas expectativas estão incorretas, começarão a ajustar suas horas de trabalho oferecidas à nova situação, o que deslocará a curva de oferta de trabalho e a curva de oferta agregada para a esquerda, levando a curva de Phillips para cima e para a direita, até em que, finalmente, a expectativa de inflação, já ajustada para cima, atinge p*2, que é igual à inflação observada, isto é, p2.  Caminhamos, agora, então, do ponto S para o ponto T.

 

Assim, no curto prazo, em que as expectativas de preços estão incorretas, caminhamos de R para S (menor desemprego, isto é, um boom); no longo prazo, com a correção das expectativas, iríamos de S para T (o desemprego voltaria ao seu nível natural), com o deslocamento da curva de Phillips de curto prazo para cima e para a direita.  Para os monetaristas, portanto, no longo prazo, definido como a ausência de erros de expectativas, não existiria nenhum trade off entre inflação e desemprego, de vez que a curva de Phillipsrelevante no longo prazo é a reta que passa por todos os pontos tais como R e T, em que as expectativas não apresentam erros e a economia opera no seu nível natural ou normal de produção.

 

Estes movimentos friedmanianos de R para S e daí para T podem ser comparados com os movimentoshayekianos de A para A’ e, daí, com a descoberta da ausência de coordenação que a expansão monetária provoca, de volta para A (admitindo, para simplificar, que a reversão do triângulo de A’BC’ para ABC possa ser completada).

 

Como vemos, a análise de Hayek é mais rica: ela transcende o mercado de trabalho para concentrar-se em toda a estrutura de produção.   O ponto S, para Friedman, representa uma taxa de desemprego temporariamente abaixo da natural, o que é insustentável; o ponto A’ do segundo triângulo, para Hayek, representa uma profundidade de capital temporariamente elevada — o que também é insustentável  —, mantida por uma taxa de juros de empréstimos artificialmente menor do que a taxa de juros natural, no sentido wickselliano.

 

Comparando a teoria austríaca com as diversas escolas macroeconômicas que, digamos, rivalizam com ela, a saber, a keynesiana, a monetarista e a de expectativas racionais, podemos detectar algumas afinidades, especialmente em relação à última e, um pouco menos, em relação ao monetarismo; no que se refere ao keynesianismo, obviamente, não há semelhanças, a não ser, se podemos chamar isso de semelhança, as críticas que os keynesianos sempre fizeram ao postulado da neutralidade da moeda.  O que destaca, contudo, a Escola Austríaca das demais e que dificulta sobremaneira as comparações — apesar dos importantes esforços de Garrison e Skousen nesse sentido — é sua teoria do capital, que lhe permite analisar, com vantagens evidentes sobre os modelos macroeconômicos conhecidos, os movimentos auto reversivos intertemporais inerentes ao processo de mercado.  A macroeconomia, a rigor, negligencia inteiramente a teoria do capital, o que, obviamente, tende a enfraquecer sua capacidade de análise.

 

 

VII.  Conclusões

 

Nos anos recentes, especialmente devido à crise que se manifestou em 2008 na economia norte-americana e que se alastrou pelo mundo inteiro, tem ocorrido um renovado interesse em torno do tema das flutuações cíclicas, o que não ocorria desde os anos 30.  É nossa convicção que todos os economistas, qualquer que seja a escola em que se enquadrem, têm muito que aprender com isso.   Em particular, osinsights da Escola Austríaca parecem ser muito importantes para que os fenômenos do mundo real — como oboom dos anos 80, o bust do início dos anos 90 nos países asiáticos e a crise mundial de 2008 e 2009 — sejam devidamente compreendidos.

 

Seria uma grande ingenuidade pretender que toda a verdade a respeito dos ciclos econômicos tenha sido revelada por Hayek, ao analisar com seus triângulos o boom dos anos 20 e a depressão do início dos anos 30.  Aliás, uma atitude dessas negaria até o falsificacionismo metodológico, uma das características mais importantes da ciência econômica na concepção dos economistas austríacos.  Mas, por outro lado, seria também um enorme erro argumentar que a teoria hayekiana dos ciclos não tem aplicabilidade ao mundo atual.

 

Apenas a título de instigação, podemos tentar captar a mensagem de Hayek, generalizá-la e aplicá-la a contextos diferentes daqueles que o inspiraram nas conferências da London School of Economics: o tempo de produção inerente aos estágios da estrutura agregada de produção, ao ser alterado artificialmente pela intervenção governamental sobre a taxa de juros, é o elemento crucial.   A taxa de juros tem três componentes: um fator de desconto, um prêmio inflacionário e um prêmio de risco.  Os triângulos de Hayek dos anos 30 baseavam-se no primeiro componente.  A crise mundial de 2008 e 2009, ao que parece, foi deflagrada pelo terceiro.  É evidente que os três podem ser afetados pelas políticas governamentais, desencadeando processos de quebra de coordenação semelhantes aos analisados pelo modelo austríaco.

 

No Brasil, em particular, o impressionante grau de intervencionismo da economia afetou profundamente o prêmio inflacionário e o prêmio de risco.  O primeiro deles foi objeto de extensas pesquisas por parte da comunidade acadêmica, especialmente a partir dos anos 60, quando os economistas passaram a preocupar-se mais fortemente com a formação de expectativas.   Os monetaristas dos anos 50 e 60 e os novos clássicos a partir dos anos 70 são exemplos dessa preocupação.

 

Mas o prêmio de risco tem carecido de maior atenção e parece ser um campo bastante promissor de estudos, especialmente depois da crise de 2008 e 2009.  A economia política do déficit público apresenta diversos custos sociais adicionais, gerados pelo financiamento do déficit via dívida pública.  Tais custos são, entre outros, a ausência de coordenação econômica, a desestabilização de preços, a externalização dos riscos e a tendência ao crescimento dos déficits e das dívidas dos governos.

 

Isto, sem dúvida, abre caminho para tentativas de extensão da análise de Hayek, uma vez que, ao externalizar os riscos, desestabilizar a economia e promover a quebra de coordenação, o déficit público afeta claramente a estrutura de produção.   De fato, o processo de mercado aloca o risco entre os participantes de acordo com o desejo de cada um de manter uma posição com maior ou menor risco.   As políticas de financiar os déficits com dívida podem criar uma discrepância entre risco desejado e risco efetivamente tomado: os riscos dos tomadores de títulos públicos são transferidos para os detentores de títulos privados.   Em razão de o fator tempo ser crítico nas posições de risco, essas políticas, como sugere Garrison, podem produzir relações de causa e efeito que se manifestem sob a forma de ciclos econômicos.

 

De fato, a externalização do risco pode gerar uma expansão cíclica, ao sinalizar no sentido de um alargamento da estrutura de produção (boom).  Posteriormente, este falso sinal será visto como tal e surgirá uma ausência de coordenação, que se manifestará de modo semelhante ao caso dos triângulos que analisamos (bust).   A manutenção do déficit — e de seu financiamento via títulos — perpetua a situação.

 

Parece também evidente a aplicabilidade da Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos ao caso da crise mundial de 2008 e 2009.   Como se sabe, desde a segunda metade dos anos 90 e especialmente nos primeiros anos da primeira década deste século, o governo americano para incentivar o crédito, praticou uma política de taxas de juros muito baixas que, em alguns casos, em termos reais, eram até negativas.  Encorajou a proliferação de empréstimos hipotecários e estabeleceu, inclusive, um sistema de seguro de crédito para garantir aos bancos o recebimento dos débitos de clientes inadimplentes.  O resultado de curto prazo foi um fantástico boom, seguido — conforme a Teoria Austríaca poderia prever — por uma forte recessão, manifestada inicialmente nos setores de bens de capital, exatamente aqueles mais beneficiados pelo boom inicial, no caso, a indústria de construção civil.  Fenômenos semelhantes ocorreram, com alguma defasagem, na Europa e na Ásia.  Quando a crise estourou, para enfrentar a recessão, os governos adotaram políticas de forte expansão dos gastos públicos de inspiração keynesiana, ao mesmo tempo em que reduziram mais ainda as taxas de juros básicas.

 

Os resultados, também como a Teoria Austríaca poderia perfeitamente prever, foram pífios.  Já nos anos 30, Hayek dizia que Keynes, na Teoria Geral, estava errado.  E o erro repetiu-se mais de setenta anos depois…

 

A teoria austríaca funciona e o mínimo que se deveria esperar é que, por merecimento, voltasse a ser estudada pelo establishment dos meios acadêmicos.

 

 

Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.
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