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A Tragédia do Euro

11. O caminho para o colapso

Quando a crise financeira eclodiu, os governos reagiram com a típica receita keynesiana: aumento dos gastos e dos déficits.  Com o desenrolar dos eventos, a União Monetária Europeia foi levada ao limiar de sua desintegração.  Vamos situar o início de nossa história alguns meses após o colapso do Lehman Brothers, quando os efeitos da crise sobre os déficits dos governos começaram a afetar as classificações de risco dos países.No princípio, a Grécia era o centro das atenções.  Em janeiro de 2009, no mesmo dia em que o governo grego cedeu à pressão de agricultores grevistas, prometendo a eles subsídios adicionais de €500 milhões, a agência de classificação de risco S&P reduziu o rating da Grécia para A—.  A partir daí, os problemas se agravaram e se espalharam.  Ao final de abril de 2009, a Comissão da União Europeia começou a investigar os déficits descomunais da Espanha, da Irlanda, da Grécia e da França.  Em outubro, a agência de classificação de risco Fitch também reduziu o rating da Grécia para A—.

Ao final de 2009, vários países europeus reconheceram terem incorrido em déficits exagerados.

As reações para corrigir estes problemas orçamentários foram variadas.  A Irlanda anunciou um corte de gastos de 10% do PIB.  Já o governo espanhol não cortou absolutamente nada em seus gastos, assim como a Grécia.

Ao final de 2009, o novo governo grego anunciou que seus déficits chegariam ao histórico nível de 12,7% do PIB — mais de três vezes o valor de 3,7% que havia sido anunciado no início de 2009.  No dia 1º de dezembro, os ministros das finanças da UME concordaram em adotar medidas mais duras com relação ao governo grego.  No dia 8 de dezembro, a Fitch reduziu a avaliação da Grécia para BBB+.  A S&P fez o mesmo.

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Gráfico 1: Déficits em porcentagem do PIB na zona do euro em 2007, 2008 e 2009

Fonte: Eurostat (2010)

A primeira reação do recém-eleito primeiro-ministro grego, Giorgios Papandreou, foi a de não aumentar as pensões, como havia prometido, mas sim a de aumentar impostos para reduzir o déficit.  As taxas de juros que a Grécia tinha de pagar sobre os títulos de sua dívida começaram a subir no segundo semestre de 2009, o que gerou preocupações mais intensas nos mercados.  O ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, declarou que a Grécia havia, durante anos, vivido muito além de sua realidade financeira, e que os alemães não iriam pagar por isso.

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Gráfico 2: Taxa de juros sobre os títulos de 10 anos da Grécia (Agosto de 2009—Julho de 2010)

Fonte: Bloomberg

O mercado começou a ter dúvida sobre a capacidade da Grécia de pagar suas dívidas.  Ademais, temia-se que o Banco Central Europeu iria parar de financiar o déficit grego indiretamente.  O governo grego, portanto, teria de dar um calote em suas obrigações.

O BCE já havia reduzido o rating mínimo exigido para suas operações de mercado aberto de A— para BBB— em resposta à crise financeira.  Supostamente, tal redução seria uma exceção que duraria apenas até o final de 2010, data em que tal concessão expiraria.  Em decorrência de seus problemas orçamentários, a Grécia estava a ponto de perder o rating mínimo A—. O que aconteceria em 2011 quando o rating da Grécia não mais satisfizesse o mínimo A—?

No dia 12 de janeiro de 2010, o BCE manifestou dúvidas quanto aos dados fornecidos pelo governo grego sobre seu déficit.  Várias irregularidades haviam tornado questionável a exatidão das estatísticas gregas.  No dia 14 de janeiro, a S&P reduziu o rating de longo prazo da Grécia para A— e colocou Espanha, Portugal e Irlanda em perspectiva negativa por causa de seus problemas orçamentários.  No mesmo dia, a Grécia anunciou uma redução de €10,6 bilhões em seu déficit orçamentário.  Esta redução viria de uma combinação de aumento de impostos (€7 bilhões) e cortes de gastos (€3,6 bilhões).  O déficit seria reduzido de 12,7% do PIB para 8,7%.  Papandreou também anunciou um congelamento nos salários dos funcionários públicos, quebrando assim uma promessa que havia feito antes de sua eleição.  No dia 10 de fevereiro, o sindicato dos funcionários públicos anunciou o início de várias greves.

No dia 15 de janeiro, Jean-Claude Trichet, então presidente do BCE, ainda mantinha uma retórica em prol de uma política monetária austera: “Não iremos reduzir a exigência da qualidade de nossos colaterais em benefício de nenhum país específico. A estrutura de colaterais se aplica igualmente a todos os países envolvidos”. [1]  Os agentes de mercado interpretaram esta declaração como uma promessa de que o BCE não estenderia sua atípica redução de rating para BBB— apenas para salvar o governo grego.  Seguindo a mesma linha, o economista-chefe do BCE, Jürgen Stark, declarou em janeiro que os mercados estavam errados em acreditar que outras nações-membro iriam socorrer a Grécia.

Ao final de janeiro de 2010, os mercados financeiros começaram a vender títulos gregos a um ritmo mais rápido — após o Deutsche Bank ter alertado que um calote de Grécia seria mais desastroso do que os calotes da Argentina em 2001 e da Rússia em 1998.  Com a pressão se intensificando, Papandreou anunciou medidas adicionais que iriam, de acordo com uma estimativa do banco HSBC, reduzir o déficit em mais 0,4%.[2]  Adicionalmente, Papandreou declarou sua intenção de reduzir o déficit grego para 3% já em 2012.  A comissão da UE apoiou seu plano.  O apoio da UE foi significativo: ajudou Papandreou internamente.  Sendo assim, politicamente, ele agora poderia jogar a culpa na UE e nos especuladores.  Ele poderia se apresentar como estando sendo obrigado pela UE a fazer cortes impopulares no orçamento.  E foi isso que ele fez.  Ademais, ele declarou que foram os malvados especuladores que impuseram esta situação sobre a Grécia: “A Grécia está no centro de um jogo especulativo voltado para a derrubada do euro.  É nosso dever patriótico acabar com as tentativas destas pessoas de empurrar nosso país para a beira do precipício”.[3]  A Grécia, obviamente, faria sacrifícios para salvar o euro.

Em fevereiro de 2010, tornou-se pública a informação de que o banco de investimentos Goldman Sachs havia ajudado o governo grego a mascarar o real tamanho de seu déficit por meio do uso de derivativos.  O governo grego jamais havia cumprido a regra de Maastricht que exigia que a dívida pública de um país não ultrapassasse 60% do PIB.  Tampouco havia ele cumprido o limite de 3% para o déficit orçamentário.  Somente por meio de seguidas maquiagens em seus balanços, como deixar de fora gastos militares ou dívidas relacionadas à saúde, é que a Grécia conseguiu cumprir formalmente o limite do déficit.  E por apenas um ano.  Os derivativos do Goldman Sachs mascaravam empréstimos como se fossem swaps cambiais.  A Grécia emitia títulos em moedas estrangeiras.  O Goldman vendia os swaps cambiais da Grécia a taxas de câmbio fictícias.  Consequentemente, a Grécia recebia mais euros do que o valor de mercado das moedas estrangeiras que o país havia recebido com a venda de títulos.  Assim que o título vencia, o governo grego tinha de quitar o título com euros.  O Goldman Sachs recebia uma generosa comissão por esta negociata que camuflava a taxa de juros.[4]

No dia 16 de fevereiro, o Conselho Para as Questões Econômicas e Financeiras (EconFin), composto por ministros das finanças da UE, impôs um plano de ajuste ao governo grego em troca da concessão de um apoio que não fora especificado.  À medida que os dias foram passando, o governo grego foi ficando nervoso, exigindo um apoio concreto das outras nações da zona do euro.  Se nenhum apoio fosse oferecido, a Grécia iria ao FMI pedir empréstimos baratos.  O envolvimento do FMI seria muito constrangedor para o grandioso projeto do euro.  Será que a UME precisaria do FMI para resolver seus problemas?  A confiança no euro reduziu-se ainda mais.

No dia 24 de fevereiro, a S&P declarou que poderia reduzir o rating da Grécia em mais um ou dois graus dentro de um mês.  Nesta época, somente a Moody’s ainda mantinha um rating suficiente para manter os títulos gregos na condição de aceitáveis como colateral sob condições normais.

Ao final de fevereiro, o presidente Papandreou se encontrou com Josef Ackermann, presidente do Deutsche Bank.  Ackermann estava interessado em solucionar o problema grego.  O Deutsche Bank possuía um volume considerável de títulos gregos em suas carteiras, e um calote poderia derrubar todo o sistema bancário europeu, inclusive o Deutsche Bank.  Após o encontro, Ackermann propôs a Jens Weidmann, conselheiro de Angela Merkel, que a Alemanha, a França e os bancos privados emprestassem cada um €7,5 bilhões à Grécia.  A proposta foi negada.  O governo alemão temia uma queixa de inconstitucionalidade.  Um pacote de socorro violaria o artigo 125 do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual declara que as nações-membro não são responsáveis pelas dívidas das outras nações.  Ainda mais importante, a população alemã era contra o pacote.  Merkel queria postergar a promulgação de qualquer solução para somente depois de uma importante eleição no estado da Renânia do Norte-Vestfália, a qual estava marcada para maio.

No dia 28 de fevereiro, Merkel ainda negava publicamente a possibilidade de um pacote de socorro alemão para a Grécia: “Temos um tratado que descarta qualquer possibilidade de socorrer outras nações”. [5]  Seus ministros, Brüderle e Westerwelle, confirmaram este ponto de vista.  Ao mesmo tempo, a UE exigia que o governo grego reduzisse seu déficit em mais 4,8 bilhões de euros.  As taxas de juros dos títulos gregos subiram para 7%.

No dia 3 de março, Papandreou concordou com o exigido corte extra de 4,8 bilhões no déficit, o que equivalia a 2% do PIB.  Ele anunciou um aumento de impostos sobre combustíveis, tabaco e vendas gerais, bem como um corte de 30% nas três bonificações salariais anuais pagas a funcionários públicos.  Os funcionários públicos gregos levavam uma vida muito melhor que a de seus colegas europeus.  Na Grécia, 12% do PIB foi gasto com o funcionalismo público em 2009, um número que havia crescido dois pontos percentuais em relação a 2000, e que também era dois pontos percentuais maior do que a média da UE.  Não obstante, os sindicatos gregos conclamaram novas greves.

Em troca dos “cortes”, Papandreou exigiu “solidariedade europeia”, isto é, dinheiro de outras nações.  Os “cortes” gregos deram a Merkel um pouco do capital político de que ela necessitava para defender o pacote de socorro perante a população alemã.  A situação se tornava mais premente a cada dia: em maio, vinte bilhões de euro da dívida grega venceriam, e não estava claro se os mercados iriam refinanciar esta dívida a taxas aceitáveis.

Nos dias 5 e 7 de março, Papandreou se reuniu com Sarkozy e Merkel para arregimentar o apoio destes.  Ao mesmo tempo, aumentavam os temores de que as receitas oriundas dos aumentos de impostos na Grécia ficariam bem abaixo das projeções.  A S&P abandonou sua perspectiva negativa do rating da Grécia quando se tornou mais claro que a UE finalmente iria intervir em favor do governo grego.  Para evitar pânicos futuros no mercado, Axel Weber, membro do conselho administrativo do BCE, passou a defender a institucionalização de ajudas de emergência a países endividados.

No dia 15 de março, ministros das finanças da zona do euro se reuniram para discutir um possível pacote de socorro para o governo grego.  Nada ficou decidido.  Os ministros apenas reiteraram que os cortes gregos haviam sido suficientes para cumprir as metas projetadas para 2010.  Três dias depois, Merkel confirmou que qualquer plano de socorro teria de incorporar uma cláusula de expulsão de países que não cumprissem as regras.  E ela repetiu o mantra de que os investidores não deveriam esperar um pacto de ajuda para a Grécia.  Ao mesmo tempo, Zapatero e Sarkozy exigiam a implementação de um governo com poderes econômicos sobre a UE.

No dia 25 de março, o BCE e os países da UME atuaram em conjunto pela primeira vez: Trichet, contrariando sua declaração de janeiro, anunciou que as regras de emergência criadas para os colaterais seriam estendidas até 2011.  Os títulos gregos readquiriram o potencial de servir como colateral.  No mesmo dia, as nações da UE concordaram, em cooperação com o FMI, em fornecer um pacote de socorro para a Grécia.  A Alemanha havia exigido o envolvimento do FMI.  Nenhum detalhe sobre o pacote de socorro foi fornecido e os mercados ficaram no escuro.  Embora a população alemã fosse contrária ao pacote de socorro, a classe política do país se limitava a dar argumentos similares àqueles utilizados em defesa da introdução do euro.  De acordo com Daniel Hannan, membro britânico do parlamento europeu, um político alemão chegou a dizer que a Segunda Guerra Mundial poderia ser reiniciada caso a Grécia não fosse socorrida.[6]

No dia 11 de abril, dois dias após a Fitch ter reduzido o rating da Grécia para BBB—, a taxa de juros sobre os títulos gregos subiu para 8%.  Finalmente, o governo alemão concordou em subsidiar €30 bilhões em empréstimos da UME para a Grécia, com um adicional de €15 bilhões sendo fornecidos pelo FMI.  Os mercados despencaram.  A resistência aos cortes orçamentários na Grécia aumentou.

Funcionários públicos entraram em greve no dia 22 de abril.  No mesmo dia, a UE anunciou que o déficit grego em 2009 havia sido ainda maior do que o até então relatado.  Em vez de 12,7%, ele fora de 13,6%, com a dívida total chegando a 115% do PIB.  Em resposta, a Moody’s reduziu o rating da Grécia em um grau, para A3.  Papandreou persistiu na afirmação de que esta revisão dos dados não afetaria seu plano de reduzir o déficit em 2010 para 8,7%.  Os títulos da Grécia, da Espanha e de Portugal se desvalorizaram (isto é, seus juros subiram).

No dia seguinte, o governo grego foi forçado a acionar o pacote de socorro de €45 bilhões, cujos detalhes haviam sido acertados durante os dois dias anteriores.  O governo grego teve acesso a €30 bilhões de nações da zona do euro através de uma linha de crédito de três anos a 5%, e a €15 bilhões do FMI a juros mais baixos.  A Grécia não tinha escolha; ela tinha de recorrer a estes empréstimos.  No dia 19 de maio, €8,5 bilhões maturaram, e os mercados financeiros provavelmente não iriam refinanciar esta dívida.

No dia 27 de abril, o Banco Nacional da Grécia S.A., o maior banco do país, e o EFG Eurobank Ergasias, o terceiro maior, tiveram ambos os seus status reduzidos à classificação de lixo pela S&P.  No mesmo dia, o rating da Grécia foi também reduzido ao status de lixo.  A S&P também reduziu o rating de Portugal de A+ para A—.  No dia seguinte, a S&P reduziu a Espanha de AA+ para AA.

As coisas se aceleraram no começo de maio.  Já estava óbvio, àquela altura, que os €45 bilhões de socorro à Grécia não seriam suficientes para evitar seu calote.  No dia 2 de maio, os ministros da zona do euro concordaram com um novo pacote de socorro ainda maior, com empréstimos totalizando €110 bilhões a uma taxa de juros de aproximadamente 5%.  O segundo pacote de resgate supostamente deveria sanear o país em três anos.  De acordo com o capital que cada país possui junto ao BCE, 27,92% dos empréstimos viriam da Alemanha.

País Porcentagem do socorro
Alemanha 27,92
França 20,97
Itália 18,42
Espanha 12,24
Holanda 5,88
Bélgica 3,58
Áustria 2,86
Portugal 2,58
Finlândia 1,85
Irlanda 1,64
Eslováquia 1,02
Eslovênia 0,48
Luxemburgo 0,26
Chipre 0,20
Malta 0,09

Tabela 1: Porcentagem do pacote de socorro por país

Fonte: BCE 2010

Merkel concordou com o pacote, não obstante a iminência da eleição.  O governo grego, por sua vez, concordou em cortar novamente salários e pensões do funcionalismo público e em aumentar o imposto sobre vendas para 23%.  Aumentaram os temores de que a Espanha também iria precisar de um socorro.

Uma segunda colaboração entre os ministros da UME e o BCE ocorreu no mesmo dia.  A independência do BCE começou a evaporar quando ele anunciou que iria abandonar todas as exigências de rating para os títulos governamentais da Grécia.  O BCE iria agora aceitar títulos gregos como colateral não importa o quão ruins fossem.  Ao renegar sua conduta anterior e se tornar um executor de políticas, o BCE perdeu grande parte de sua credibilidade.  O BCE ia se transformando cada vez mais naquela máquina inflacionista — à serviço da política — que havia sido almejada pelos políticos franceses e dos países latinos.  O índice de ações europeu, o Eurostoxx 50, imediatamente aumentou 10%.

No dia 4 de maio, o governo grego criou um fundo para reforçar seu trôpego sistema bancário.  O rumor era o de que a Espanha estava prestes a sofrer um rebaixamento em seu rating, mas tal rumor foi negado pelo primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero.  Os mercados de ações da Europa despencaram.  Atenas caiu 6,7%.  Madri, 5,4%.  No dia seguinte, a Moody’s rebaixou o rating de Portugal em dois graus, para A—.  Manifestantes puseram fogo em um banco em Atenas, provocando a morte de três pessoas.  Os mercados financeiros entraram em estado de choque.

No dia 6 de maio, Trichet ainda resistia à pressão de comprar diretamente títulos de governos europeus problemáticos.  Axel Weber também se manifestou contrário a esta opção.  O Dow Jones caiu 1.000 pontos durante alguns minutos, mas recuperou metade de suas perdas até o final do dia.  O mesmo ocorreu com o euro.

No dia seguinte, o Eurossistema estava à beira do colapso.  Os juros sobre os títulos espanhóis, gregos e portugueses aumentaram acentuadamente.  Observadores afirmam que a transação com títulos europeus ficou praticamente paralisada naquela tarde.  Nem mesmo os títulos franceses tinham liquidez.[7]  Em um relatório mensal do BCE de junho de 2010, o banco central admitiu a ameaça de um colapso total nos dias 6 e 7 de maio.  O BCE declarou que o perigo havia sido maior do que após o colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008.  Ele admitiu um aumento dramático na probabilidade de falência de dois ou mais grandes grupos bancários europeus.[8]  Aparentemente, bancos que haviam investido nas dívidas soberanas dos países do Mediterrâneo estavam tendo severos problemas de refinanciamento.  Os mercados financeiros secaram.

De acordo com o jornal Welt am Sonntag, banqueiros alemães receberam telefonemas de colegas franceses em pânico absoluto pedindo-lhes para pressionar o BCE a comprar títulos do governo grego.[9] Até mesmo o presidente Obama ligou para Angela Merkel quando o fluxo de dinheiro dos EUA para a Europa secou.  Dia 7 de maio foi uma sexta-feira.  Políticos e banqueiros centrais conseguiram agendar uma reunião para o fim de semana e evitar um colapso total.

Naquele mesmo dia (porém ignorado pelos mercados), o parlamento alemão aprovou uma lei autorizando empréstimos em prol do governo grego.  No fim de semana, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanharejeitou uma petição impetrada por quatro professores alemães, os mesmos quatro que haviam tomados medidas judiciais contra a introdução do euro (Karl Albrecht Schachtschneider, Wilhelm Hanke, Wilhelm Nölling e Joachim Starbatty).  Eles argumentaram que o pacote de socorro violava o artigo 125 do Tratado Sobre o Funcionamento da UE, o qual declara que nenhum país é responsável pela dívida das outras nações-membro.

No domingo, a coalizão formada pelo governo alemão perdeu acentuadamente a eleição no estado da Renânia do Norte-Vestfália.  Merkel queria postergar o pacote de socorro à Grécia para depois da eleição.  Porém, com a aceleração dos eventos, ela sacrificou a vitória para salvar o euro.  Ela cancelou suas aparições de campanha para ir até Bruxelas, onde os ministros das finanças do Conselho Europeu estavam reunidos.

Sakozy e Berlusconi também acharam por bem participar desta reunião dos ministros das finanças.  Eles defendiam a ideia de que um novo fundo de resgate para socorrer mais países seria necessário.  Merkel considerava isto um passo rumo a uma união europeia pautada pela redistribuição de renda.  A comissão da UE iria adquirir grandes poderes e as nações do sul da Europa iriam se beneficiar dos empréstimos subsidiados das nações mais ricas.  No início, Merkel resistiu.  Durante um jantar na noite de sexta-feira, Trichet explicou a lúgubre severidade da situação.

Merkel teve êxito em conseguir adiar a decisão final até o domingo após a eleição.  De maneira reveladora, no dia 8 de maio ela estava em Moscou para celebrar os 65 anos da derrota alemã contra a União Soviética.  As negociações foram retomadas na tarde de domingo.  Trichet estava novamente presente, ainda que ele fosse o presidente de um supostamente independente Banco Central Europeu.  As autoridades alemãs o rotularam como um mero apêndice do ministro das finanças da França.  Já o ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, não participou, pois havia sido levado para um hospital.  (A explicação oficial é que ele teve uma reação alérgica a um remédio).  As negociações foram difíceis.  Até mesmo Obama e Bernanke intervieram e ligaram para Merkel exigindo um maciço pacote de socorro.

Políticos da Finlândia, da Áustria e da Holanda ficaram ao lado da Alemanha nas negociações.  Os interesses eram claros.  Governos com déficits e gastos enormes estavam se rebelando contra nações com déficits menores e governos mais favoráveis a uma política monetária mais rigorosa — nações estas que eram seus potenciais credores.

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Gráfico 3: Dívida em porcentagem do PIB na zona do euro, 2007, 2008 e 2009

Fonte: Eurostat (2010)

 

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Gráfico 4: Déficits em porcentagem do PIB na zona do euro em 2009

Fonte: Eurostat (2010)

Embora a Grécia fosse relativamente irrelevante em decorrência de sua pequena economia, devedores maiores e mais relevantes começaram a apresentar severos problemas em maio.  Bancos sediados na zona do euro haviam emprestado um total de €206 bilhões para Grécia, mas, para a Espanha, este valor chegava a €727 bilhões.  O novo pacote de socorro foi instituído com o intuito de impedir um calote dos devedores portugueses e espanhóis, algo que teria afetado enormemente os bancos da Alemanha e especialmente os da França.  O governo francês, por isso mesmo, tinha mais interesse nesse socorro do que o governo alemão.

A exposição direta dos bancos franceses às dívidas dos governos de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha eram maiores do que a exposição dos bancos alemães, como pode ser visto na tabela 2.

Bancos franceses

Bancos alemães

Espanha

$48 bilhões

$33 bilhões

Grécia

$31 bilhões

$23 bilhões

Portugal

$21 bilhões

$10 bilhões

Irlanda

$6 bilhões

$1 bilhões

Tabela 2: Exposição dos bancos franceses e alemães à dívida governamental (em 31 de dezembro de 2009)

Fonte: Banco de Compensações Internacionais 2010.

A dívida total, pública e privada, de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha que estava em posse dos bancos franceses ao final de 2009 era de €493 bilhões.  Os bancos alemães tinham quase o mesmo tanto: €465 bilhões.  A fatia da Espanha era a maior, com €248 bilhões nos bancos franceses e €202 bilhões nos bancos alemães.  Um calote dos bancos espanhóis ou do governo espanhol teria gerado efeitos catastróficos sobre os bancos alemães e franceses.  Um calote dos bancos portugueses ou de seu governo poderia, por sua vez, derrubar os bancos espanhóis, que tinham em sua posse €110 bilhões de dívida portuguesa.[10]

O acordo final, o chamado “pára-quedas de emergência”, concedeu empréstimos de até €750 bilhões para governos em apuros.  A Comissão da UE forneceu €60 bilhões para o pacote.  Assim que estes fundos se esgotassem, os países poderiam pegar empréstimos garantidos pelas nações-membro de até €440 bilhões de euros.  As nações-membro iriam garantir os empréstimos baseando-se em seu capital junto ao BCE.  A Alemanha iria garantir até €123 bilhões.  O FMI também forneceu empréstimos de até €250 bilhões.

Em troca destas garantias, os governos socialistas de Espanha e Portugal aceitaram reduzir seus déficits.  O governo espanhol anunciou um corte nos salários dos funcionários públicos e postergou um aumento nas pensões.  O governo português anunciou um corte nos salários do alto escalão da burocracia federal e um plano de aumentar impostos.  Presumivelmente pressionados pelo governo alemão, Itália e até mesmo a França também viriam, no final de maio, a anunciar reduções em seus déficits.  A Comissão Europeia avaliou estes cortes e declarou que eles representavam medidas na direção correta.

De acordo com o jornal espanhol El País, Sarkozy havia ameaçado romper a aliança franco-germânica caso Merkel não cooperasse implementando um “pára-quedas” que favorecesse aqueles bancos franceses que detinham a maior fatia das dívidas do Mediterrâneo.  Sem isso, a França sairia totalmente do euro.  A França sair da zona do euro caso a Alemanha não aquiescesse é algo que pode ser considerado um dos maiores blefes da história.

A própria Merkel declarou que: “Se o euro fracassar, a ideia de integração europeia entra em colapso”[11].  Mas este argumento é um puro non sequitur.  Naturalmente, é perfeitamente possível haver fronteiras abertas, livre comércio e uma Europa integrada sem um banco central em comum.  Aqui Merkel mostrou-se ser uma defensora da versão socialista da Europa.

Com o novo “pára-quedas”, a zona do euro deixou transparecer que havia se transformado em uma zona de transferência de renda.  Antes do “pára-quedas”, a redistribuição era ocultada pelos complexos mecanismos monetários do Eurossistema.  Agora, o rematado e franco apoio fiscal de um país para o outro havia sido explicitado.  Os pagadores de impostos alemães estavam repentinamente sendo obrigados a garantir aproximadamente €148 bilhões ou mais de 60% das receitas do governo.  Como tem sido de praxe desde o fim da Primeira Guerra Mundial, os alemães tinham a obrigação de contribuir mas não tinham o direito de opinar.[12]  Ainda mais impressionante: foi apenas em setembro de 2010 que a última dívida gerada pelas reparações da Primeira Guerra Mundial foram quitadas.

Durante o desenrolar destes dias importantes, os banqueiros centrais europeus cooperaram estreitamente com os políticos.  Antes de os mercados abrirem na manhã da segunda-feira, dia 10 de maio, o BCE anunciou que iria comprar títulos governamentais no mercado, desta forma ultrapassando um limite que muitos imaginavam que ele jamais ultrapassaria.  A decisão de comprar títulos governamentais não foi unânime.  Os ex-membros do Bundesbank, Axel Weber e Jürgen Stark, opuseram-se à decisão e receberam o apoio de Nout Wellink, presidente do De Nederlandsche Bank (Banco Central da Holanda), tradicional aliado do Bundesbank.  Trichet, não obstante ter negado na semana anterior que incorreria em tal medida, continuou afirmando que o BCE não estava sendo pressionado e continuava independente.

O BCE alegou que tal medida não seria inflacionária, pois ele iria esterilizar todo o aumento que ocorreria na base monetária aceitando depósitos a prazo dos bancos no BCE.  O BCE iria, com isso, se comportar como um típico banco comercial se comporta: pegando empréstimos de curto prazo e fazendo empréstimos de longo prazo.  Para os bancos comerciais, tal comportamento é bastante arriscado, uma vez que sua dívida de curto prazo (os depósitos dos correntistas) deve ser continuamente rolada para sustentar os empréstimos de longo prazo.  Para o BCE, tal risco consiste em não conseguir atrair depósitos suficientes, o que resultaria em uma expansão monetária inflacionária.  É claro, o BCE poderia tentar atrair depósitos elevando as taxas de juros pagas sobre eles; porém, estes juros maiores iriam complicar ainda mais a situação de governos e empresas já altamente endividados.

A revista alemã Spiegel detalhou, mais no final de maio, todas as irritações que acometeram parte das autoridades do Bundesbank.[13]  Por causa do “pára-quedas” de €750 bilhões, alguns deles não viam qualquer motivo para a compra de títulos do governo pelo BCE (€40 bilhões até aquele momento).  Eles suspeitavam de uma conspiração.  Os bancos alemães haviam prometido ao ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, que iriam manter os títulos gregos até 2013.  Já os bancos e as seguradoras da França, tendo entre €70 e €80 bilhões em títulos gregos em seus livros contábeis, exploraram a ocasião para vender títulos dos governos da Grécia, da Espanha e de Portugal, aproveitando que as compras do BCE comandado por Trichet estavam elevando os preços destes títulos.

O resultado desta ação coordenada entre o governo da União Monetária Europeia e o Banco Central Europeu foi um genuíno golpe de estado.  Os princípios originalmente estabelecidos para a união econômica e monetária foram abolidos.  Uma nova instituição com o nome de Fundo Europeu de Estabilização Financeira(FEEF), com sede em Luxemburgo, adquiriu o poder de, quando necessário, criar e vender títulos próprios para socorrer nações-membro.  Esta nova instituição poderia operar independentemente.  As nações-membro se envolveriam apenas no sentido de que seriam elas que iriam garantir as dívidas emitidas pelo FEEF.  Tendo a sua própria burocracia, é muito provável que FEEF irá continuamente tentar aumentar seu poder e pressionar por uma maior centralização.  O FEEF gera e fornece incentivos para um endividamento excessivo dos países e para a criação dos próprios pacotes de socorro que ele supostamente foi criado para minorar.

Ademais, se o FEEF quiser emitir um volume maior de dívida do que o que foi originalmente acordado, ele necessita apenas da aprovação dos ministros das finanças da zona do euro.  Tal aumento de poder não precisa ser aprovado em parlamento.  Este decreto plenipotenciário promulgado no dia 9 de maio alterou a estrutura institucional da UME para sempre.  Aquilo que havia sido originalmente imaginado pelos países do norte como sendo uma união de estabilidade foi transformada em uma união de transferências explícitas de renda.

Como consequência de ambas estas intervenções fiscais e monetárias em prol de governos problemáticos e endividados, as bolsas de valores ao redor do mundo dispararam.  O Eurostoxx 50 aumentou 10,4%.  Títulos espanhóis, gregos, portugueses e italianos subiram (juros caíram), ao passo que os alemães caíram (juros subiram).  O governo alemão, na prática, havia efetivamente garantido as dívidas dos países latinos.

Nas semanas seguintes, os líderes europeus tentaram remodelar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC).  O PEC estipulava penalidades de até 0,5% do PIB para aqueles países que não ajustassem seus orçamentos em conformidade com o déficit máximo permitido de 3% do PIB.  No entanto, apesar de várias e seguidas violações, nenhum país foi penalizado durante os 11 anos de vigência do euro.  Em 2005, após três anos de fracassadas tentativas de manterem seus orçamentos dentro deste limite, os governos da França e da Alemanha se juntaram e trabalharam em conjunto para diluir as regras.

Agora, porém, novas penalizações estavam sendo discutidas: sanções e cortes nos fundos de auxílio e desenvolvimento para o país que excedesse o marco de 3% no seu déficit.  Em junho, Merkel propôs também a remoção no direito a voto na UE destes países infratores, mas sua proposta não foi aceita.  Outra iniciativa que não foi adiante foi a proposta feita pela comissão da UE de uma maior coordenação entre os planos orçamentários de cada país antes de eles serem votados em seus respectivos parlamentos nacionais.  Alemanha, França e Espanha se opuseram a este plano, pois ele reduziria sua soberania.

Após a aparente tranquilização dos mercados, a Espanha perdeu seu grau de crédito AAA na Fitch no dia 28 de maio.  Em junho, a Grécia acelerou seu processo de privatização, vendendo participações em empresas públicas.  O seguro contra o calote de dívidas soberanas aumentou até mesmo para a Alemanha, a qual teve também de anunciar medidas próprias para reduzir seu déficit de €80 bilhões até 2014.

Enquanto isso, os problemas do sistema bancário só aumentavam.  Os preços dos títulos governamentais em suas carteiras estavam caindo.  Os bancos se encontravam em meio a um grande dilema.  Vender os títulos do governo em sua posse iria não apenas revelar as perdas contábeis do setor, como também tal ato iria reduzir a confiança nos governos.  O sistema bancário e os governos estavam mais coligados do que jamais estiveram.  O calote de um iria gerar calotes no outro.  Se a Grécia desse o calote em suas obrigações, os bancos que tivessem títulos gregos em seus livros contábeis poderiam se tornar insolventes.  Estes bancos insolventes, por sua vez, por operarem em um sistema de reservas fracionárias, poderiam desencadear o colapso de outros bancos, ou forçar seus respectivos governos a lhes concederem pacotes de socorro, o que levaria tais governos ao calote também.  Se, por outro lado, os bancos tivessem prejuízos e fossem à falência, eles provavelmente induziriam a intervenção de seus governos para salvar o sistema bancário nacional.  Este socorro implicaria mais dívida governamental, uma aceleração da crise da dívida soberana, e possivelmente a dívida sendo levada para um nível além do sustentável.  Um pânico nos mercados da dívida soberana e seguidos calotes governamentais poderiam ser as consequências.

Em junho, a Espanha ganhou a atenção do mercado.  Um calote parcial da Grécia ou uma reestruturação de sua dívida já era algo presumido e descontado pelos mercados.  Já um calote espanhol, no entanto, seria um problema muito maior.  As notícias ruins iam se avolumando.  Bancos espanhóis, principalmente o Cajas, não mais estavam conseguindo se refinanciar no mercado interbancário, e se mantinham operantes unicamente por causa de empréstimos do BCE.  Sua dependência em relação aos empréstimos do BCE havia aumentado para um volume recorde de €86 bilhões em maio.  Difundiam-se os rumores de que o governo espanhol estava prestes a recorrer ao fundo de socorro da UE.  Mas isso foi prontamente negado pelas autoridades espanholas.

No dia 14 de junho, a Moody’s rebaixou os títulos do governo da Grécia para o status de lixo.  Os bancos gregos estavam perdendo não apenas suas linhas de crédito junto a outros bancos, como também estavam perdendo vários depósitos bancários, os quais haviam encolhido 7% em um ano à medida que os gregos iam retirando seus fundos do seu sistema bancário e transferindo-os para bancos de outros países ou até mesmo preferindo estocar o dinheiro em casa. [Ficou famoso o caso de um aposentado da ilha de Creta que, em pânico com a hipótese de um calote do governo, retirou toda a sua poupança do banco e guardou todo o dinheiro dentro da parede de tijolos da sua casa.  Os ratos devoraram tudo, dezenas de milhares de euros.]

Os bancos gregos estavam recebendo €85 bilhões em empréstimos do BCE e fornecendo majoritariamente títulos do governo grego como colateral.[14] Ao mesmo tempo, o BCE seguiu comprando títulos governamentais, os quais já totalizavam €47 bilhões.

As coisas se acalmaram um pouco em julho; mas houve também algumas notícias ruins.  O governo grego cancelou as emissões programadas de títulos de dozes meses, passando a confiar apenas em títulos de curto prazo (vinte e seis semanas) e em fundos de resgate.  As greves no país não acabaram, o que prejudicou a indústria do turismo.  No dia 13 de julho, a Moody’s rebaixou o rating de Portugal em dois graus: para A1.  Por outro lado, houve uma série de notícias alvissareiras: o anúncio de um teste de estresse dos bancos europeus acalmou os mercados, que estavam na expectativa de transparência e de uma solução para os problemas dos bancos; o BCE continuou comprando títulos governamentais e expressou preocupação quanto a ‘insuficientes medidas de socorro aos países deficitários’; a Espanha conseguiu refinanciar um volume significativo de sua dívida no mercado; o governo grego aprovou a alteração na idade de aposentadoria para 65 anos; e Eslováquia, o último país que ainda resistia ao pára-quedas de €750 bilhões, finalmente aprovou o plano.

Eis um diagrama da taxa de câmbio do euro em relação ao dólar ao longo dessa nossa história.

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Gráfico 5: taxa de câmbio Euro/dollar

Fonte: ECB (2010)

Ao mesmo tempo, a depreciação do euro é uma boa ilustração da importância da qualidade de uma moeda.[15]  A quantidade de euro não se alterou significativamente em relação ao dólar durantes estes meses.  Mas sua qualidade se deteriorou substancialmente.

A qualidade de uma moeda é sua capacidade de cumprir as funções básicas do dinheiro, isto é, de servir como um bom meio de troca, uma reserva de valor e uma unidade de conta.  Fatores importantes para a qualidade de uma moeda são o arranjo institucional do banco central, sua equipe administrativa e seus ativos, entre outras coisas.  Os ativos de um banco central são importantes porque são eles que lastreiam seu passivo — isto é, a moeda — e podem ser utilizados para defender a moeda internamente, externamente ou em uma reforma monetária.[16]

Durante a primeira metade de 2010, a capacidade do euro de servir como reserva de valor se tornou cada vez mais duvidosa.  Com efeito, não estaca claro se o euro sequer sobreviveria à crise da dívida soberana.  A confiança na capacidade do euro de servir como reserva de valor foi abalada.  Em específico, a credibilidade do BCE reduziu-se substancialmente.  Trichet havia negado que iria aplicar regras excepcionais para a aceitação de colaterais de países, ou que o BCE iria comprar diretamente títulos dos governos.  Para ambos os casos, ele quebrou sua promessa.  Isso alterou drasticamente a percepção do mercado quanto à firmeza do BCE.

Na ocasião do lançamento do euro, a pergunta era se o euro seria uma moeda de estilo germânica ou uma moeda de estilo latino.  O BCE iria operar de acordo com a tradição do Bundesbank ou com a tradição dos bancos centrais da Europa mediterrânea?  Os eventos do primeiro semestre de 2010 indicavam cada vez mais claramente a segunda opção.  O BCE não estava primordialmente preocupado com a estabilidade do valor do euro e não oferecia resistência a interesses políticos; antes, ele era um servo leal das politicagens em prol de uma união pautada pela transferência de renda.  A união monetária havia se transformado em uma união cuja política monetária servia essencialmente para fazer uma transferência de riqueza dentro da Europa.

Não apenas Trichet e sua quebra de promessa diminuíram a qualidade do euro, como ele também ultrapassou os limites aos olhos de muitos ao começar a comprar diretamente títulos governamentais (muito embora, em termos econômicos, não haja uma diferença substancial entre comprar títulos governamentais e aceitar títulos governamentais como colateral em operações de empréstimos).

Outro fator que pesou na qualidade do euro foi o fato de que ex-autoridades do Bundesbank perderam influência no conselho do BCE.  Banqueiros centrais latinos estavam dominando a instituição.  Axel Weber, da Alemanha, protestou contra a decisão do BCE de comprar títulos governamentais, mas foi em vão.

Além da mudança de percepção do BCE, que passou a ser visto como um banco central mais inflacionista, outro fator afetou a qualidade do euro negativamente: o afrouxamento qualitativo.[17]  O afrouxamento qualitativo descreve uma política monetária utilizada por bancos centrais que leva a uma redução da qualidade média dos ativos que estão lastreando a base monetária (isto é, lastreando o passivo do banco central).  Ao comprar títulos governamentais de países problemáticos, a qualidade média dos ativos lastreando o euro foi reduzida.

Faz uma enorme diferença se, para €1.000 emitidos pelo BCE (no lado dos passivos), ele mantém, no lado dos ativos, €1.000 em ouro, €1.000 em títulos do governo alemão, ou €1.000 em títulos do governo grego.  Estes ativos possuem qualidade e liquidez distintas, afetando a qualidade do euro.

No final, o balancete do BCE foi acumulando um volume crescente de títulos de governos problemáticos, os quais o BCE havia comprado do sistema bancário.  O BCE utilizou este afrouxamento qualitativo para dar sustento ao sistema bancário, absorvendo seus ativos ruins.  Como consequência, a qualidade do euro foi reduzida.  Um calote da Grécia ou de outros países iria, como consequência, implicar enormes perdas para o BCE.  Estas iriam diminuir ainda mais a confiança no euro, podendo fazer com que uma recapitalização fosse necessária.[18]

Ao mesmo tempo, a condição econômica dos governos e a qualidade de seus títulos utilizados como colateral para operações de empréstimos se deterioraram.  Se um banco desse o calote em seus empréstimos contraídos junto ao BCE, o BCE ficaria com colaterais cujo valor e qualidade estariam agora deteriorados.  O euro somente se estabilizou em julho, quando o governo espanhol viu que seria capaz de se refinanciar nos mercados, a indústria alemã divulgou excelentes resultados, e a recuperação dos EUA se mostrou mais lenta do que o esperado.

Uma ajuda adicional foi fornecida por um teste de estresse do sistema bancário europeu.  Por meio de uma simulação, o teste analisou como os bancos europeus resistiriam a um calote parcial da dívida soberana.  Suposições irrealistas foram escolhidas para gerar o resultado desejado: a maioria dos bancos foi aprovada no teste — um importante golpe publicitário.  Os testes de estresse abordaram somente as carteiras de valores mobiliários negociáveis dos bancos.  Fez-se a suposição de que os títulos não sofreriam calotes, e, portanto, não havia necessidade de considerar nenhum impacto nos registros contábeis dos bancos que mantivessem tais títulos até sua maturidade.  Além do mais, os testes supuseram perdas muito baixas, tais como uma redução de meros 23% para os títulos gregos.  Mais ainda, não se levou em conta a interconectividade de eventos.  Se a Grécia desse o calote, isto poderia desencadear um calote de Portugal e depois da Espanha e assim por diante.  A suposição de que a redução poderia ser contida a 23% nos títulos gregos era altamente irrealista.  No que mais, o teste de estresse não levou em consideração eventuais perdas com o calote de instituições financeiras ou perdas sofridas em outras classes de ativos, como hipotecas.  Por último mas não menos importante, o teste foi apenas sobre solvência, e não sobre liquidez.  Se alguns bancos possuem maturações descompassadas, isto é, se eles tomaram empréstimos a curto prazo e emprestaram a longo prazo, eles têm de refinanciar estas dívidas de curto prazo.  Se não houver poupança suficiente disponível ou se ninguém estiver disposto a refinanciá-los, o resultado será a iliquidez.  A iliquidez pode, então, desencadear problemas de solvência.  O grau de maturação descompassada e o perigo de iliquidez não foram considerados nos testes.  Assim, as suposições foram bastante restritas e pareciam ter sido escolhidas para que se obtivesse o resultado desejado: todos os bancos estão sólidos, exceto aqueles que todo mundo já sabia de antemão estarem insolúveis.  Curiosamente, todos os bancos irlandeses que alguns meses mais tarde tiveram de ser socorridos pelo governo irlandês foram aprovados no teste.  No entanto, até aquele momento, um colapso total do sistema havia sido evitado e o euro recuperou parte de suas perdas durante o início do segundo semestre.

Irlanda

A crise da dívida soberana voltou com força total após as férias de verão na Europa.  No dia 25 de agosto, a Irlanda foi rebaixada pela S&P para AA—, o qual era ainda um grau melhor do que a Itália.  A S&P esperava que a dívida da Irlanda subisse para 113% do PIB em 2012.  A estimativa para a recapitalização do sistema bancário foi elevada de €35 bilhões para €59 bilhões.  Em setembro, a pressão sobre os juros dos títulos dos países periféricos continuou a se intensificar em resposta aos problemas do Anglo Irish Bank e aos custos de sua recapitalização que recairiam sobre o governo irlandês.

Por volta da mesma época, foram divulgados plenos do governo alemão voltados para fortalecer as sanções do PEC.  Schäuble sugeriu a retenção dos subsídios da UE para a infraestrutura dos países que violassem o PEC e a redução dos seus direitos de voto.  O governo espanhol protestou contra tal reforma.  A luta entre os governos mais fiscalmente responsáveis e os menos continuou.

O sistema bancário europeu voltou novamente para a beira do precipício em meados de setembro de 2010, quando os investidores se tornaram temerosos de que a Irlanda não conseguiria fazer a recapitalização de seu sistema bancário.  No dia 17 de setembro, o custo de um seguro contra a dívida irlandesa atingiu níveis recordes e a bolsa de valores do país despencou.  O pânico só foi contido quando o BCE comprou títulos irlandeses, sinalizando que estava disposto a dar apoio ao governo irlandês da mesma maneira que havia feito com a Grécia e com outros governos periféricos.  Ao contrário do que havia ocorrido no primeiro semestre, a crise agora havia sido contida porque os mercados sabiam que BCE estava ali pronto para comprar todos os títulos necessários, e estava acompanhado por um fundo de resgate de €750 bilhões.

Tendo vários títulos dos países periféricos em seu balancete, o BCE continuou perdendo sua independência.  O BCE tinha agora de se esforçar para impedir que tais títulos percam valor, e, para fazer isso, teve de dar ainda mais suporte a estes países.  O BCE se tornou refém de políticos irresponsáveis em decorrência de ter ajudado a pagar as contas deles.  Como consequência de iminentes prejuízos resultantes de suas compras de títulos, em dezembro de 2010 o BCE recebeu uma injeção de capital de €5 bilhões.  Tal aumento de capital reduziu os lucros que são repassados aos governos da UME.

Após as pressões terem se reduzido em decorrência das compras de títulos pelo BCE, uma reunião de cúpula em Bruxelas no dia 29 de outubro demonstrou mais uma vez o poder do governo alemão resultante de suas garantias dadas às dívidas dos governos periféricos.  O fundo de resgate tinha uma duração limitada a três anos.  Ao final de outubro, a chanceler alemã Angela Merkel deixou claro que o prazo seria ampliado somente se houvesse uma reforma que fizesse com que todos os investidores privados detentores de títulos governamentais também participassem dos custos de futuros pacotes de socorro.  Em outras palavras, a Alemanha ameaçou retirar parte da explícita garantia de socorro que havia prometido aos agentes privados que investiam em títulos da dívida dos governos.  Ou seja, após 2013, os investidores poderiam sofrer prejuízos em qualquer eventual pacote de socorro.  Como consequência desta manobra, os investidores começaram a vender títulos dos governos dos PIIGS.  As taxas de juros subiram.

A atenção do mercado voltou-se para a Irlanda novamente.  O governo irlandês teria, para 2010, um déficit estimado em inacreditáveis 32,5% do PIB, e a dívida total do governo já estava em 80% do PIB em decorrência de seguidos aumentos de gastos para sustentar seu insolvente setor bancário.

Embora seu déficit seja gigante, os problemas irlandeses são um tanto distintos dos problemas fiscais dos outros governos dos PIIGS.  Nestes, os altos déficits públicos são estruturais, isto é, advêm de insustentáveis gastos assistencialistas e de um mercado de fatores de produção (especialmente o custo da mão-de-obra) pouco competitivo, engessado por leis trabalhistas rigorosas.  Os governos, mais proeminentemente o daGrécia, utilizaram-se de seguidos aumentos nos gastos públicos — e, consequentemente, no déficit público — para aumentar artificialmente o padrão de vida de sua população.  Os governos dos PIIGS incorreram em déficits para financiar o seguro-desemprego, os funcionários públicos, e os pensionistas; toda essa gastança serviu para sustentar seus inflexíveis mercados de trabalho.

Na Irlanda, os problemas são de outra natureza.  Embora a Irlanda também tivesse um estado assistencialista grande e custoso, não é exagero dizer que, de certa forma, a Irlanda era competitiva até demais.  A Irlanda possui a menor alíquota de imposto de renda de pessoa jurídica em toda a União Econômica e Monetária Européia, de meros 12,5%.  A carga tributária atraiu bancos de todo o mundo para a ilha, onde eles expandiram seus negócios.  Como consequência, o setor bancário da Irlanda expandiu-se substancialmente.  Durante os anos de bonança, os bancos auferiram enormes lucros em decorrência do privilégio de poderem expandir o crédito através de suas reservas fracionárias, além de contarem com o implícito apoio do governo, que garantia socorro em caso de problemas.  Como resultado da expansão do crédito, uma bolha imobiliária irlandesa foi criada.  E seu subsequente estouro provocou substanciais prejuízos e até mesmo a insolvência de vários bancos irlandeses.

Ao passo que os lucros bancários durante a bonança eram privados, seus prejuízos foram socializados no dia 30 de setembro de 2008, quando o governo irlandês deu garantias a todos os passivos bancários.  No final de 2010, a Irlanda injetou aproximadamente €50 bilhões de euros em seu sistema bancário.  Os problemas irlandeses foram criados não por um excessivo estado assistencialista, mas sim pela socialização dos prejuízos de um privilegiado sistema bancário.

O socorro irlandês custou €85 bilhões de euros a uma subsidiada taxa de juros de 5,8%.  Parte disso poderia ser utilizada para criar um fundo para o sistema bancário irlandês.  O socorro fez com que o cidadão irlandês, por meio de seus impostos, fosse o responsável por pagar por empréstimos que serviram para cobrir os prejuízos dos bancos.  A população irlandesa, obviamente, se opôs a isso.  Os irlandeses entenderam que o dinheiro do resgate servirá principalmente para sustentar não o padrão de vida dos funcionários públicos, dos desempregados ou dos pensionistas — como no caso da Grécia —, mas sim para sustentar o padrão de vida dos banqueiros.

Devido à resistência, o governo irlandês decidiu adiar as eleições gerais para somente depois que o orçamento já tivesse sido aprovado.  O orçamento incluía um aumento no imposto sobre vendas, de 21 para 23%.  Efetivamente, a população irlandesa foi obrigada a assumir as dívidas dos bancos, tendo de quitá-las ao longo dos anos vindouros.  Nenhum voto democrático sobre a questão constou nas cédulas, pois os irlandeses certamente iriam votar contra.

Por que os governos da Zona do Euro pressionaram a Irlanda para pedir o socorro?

Primeiro, os juros sobre os títulos dos PIIGS estavam aumentando.  Após o anúncio dos planos de reforma da chanceler alemã Merkel, os investidores começaram a temer que teriam prejuízos com esses títulos.  Os governos da zona do euro acreditavam que, ao socorrerem a Irlanda e mostrarem determinação, eles retirariam a pressão sobre Portugal.  Portugal — com problemas estruturais similares ao da Grécia — é uma peça-chave porque os bancos espanhóis investiram grandes somas em Portugal.  Se Portugal caísse, o sistema bancário espanhol cairia junto.  Se a situação chegasse a esse ponto, o fundo de resgate já estaria exaurido e a situação, incontrolável.  Com o intuito de interromper essa reação em cadeia, a Irlanda foi pressionada a aceitar o socorro.

Segundo, era importante socorrer os bancos irlandeses porque os bancos ingleses, franceses e alemães haviam investido somas vultosas na Irlanda.  Os prejuízos irlandeses poderiam destruir o capital dos bancos europeus e derrubar todo o sistema bancário europeu — e, por conseguinte, seus governos.

Porém, como o governo irlandês poderia ser “convencido” a aceitar o socorro, mesmo sabendo que a população irlandesa era radicalmente contra?  Por que o governo irlandês iria pedir socorro mesmo tendo anunciado ter fundos suficientes para até meados de 2011?  Havia dois instrumentos com os quais pressionar o governo irlandês.

O primeiro é o financiamento que os bancos irlandeses recebem do Banco Central Europeu (BCE).  Desde a crise financeira, os bancos irlandeses passaram a depender de empréstimos feitos pelo BCE.  Sem esses empréstimos, os bancos irlandeses iriam à falência, o que implicaria tremendas perdas para o governo irlandês, o qual sempre garantiu os empréstimos de seus bancos.  Com efeito, Trichet mencionou — durante os dias em que o governo irlandês ainda resistia a um socorro — que o BCE não estava disposto a ficar estendendo para sempre os empréstimos emergenciais aos bancos irlandeses.

O segundo instrumento foi a ameaça alemã de retirar todas as suas garantias.  Se a Alemanha retirar suas garantias para governos da zona do euro excessivamente endividados, estes governos certamente irão à bancarrota em decorrência do inevitável aumento que haverá nos juros dos títulos de sua dívida.  Desta forma, a Alemanha pode pressionar países periféricos a fazer reformas ou aceitar pacotes de socorro.

O socorro irlandês não conseguiu conter a reação em cadeia.  Os juros dos títulos portugueses e espanhóis continuaram subindo.  Quando alguém é socorrido, um outro alguém tem de pagar a conta.  Os governos da zona do euro hoje têm de pagar juros maiores sobre suas próprias dívidas em decorrência do fardo adicional causado pelos empréstimos à Irlanda.  Com efeito, até mesmo os juros sobre os títulos do governo alemão aumentaram após o socorro.

O socorro irlandês fortaleceu a tendência rumo à centralização do poder na União Européia.  Os políticos europeus já determinam, indiretamente, qual deve ser o orçamento irlandês.  Por exemplo, eles repetidamente deram ordens ao governo irlandês para aumentar impostos, como o imposto sobre vendas.  Eles também vêm colocando enorme pressão sobre o governo irlandês para que ele abandone sua política de baixos impostos sobre pessoa jurídica, política essa que vários políticos europeus classificam como sendo “dumping fiscal”.  Nesse ponto, pelo menos, o governo irlandês vem resistindo.

Axel WeberOs dois mais importantes acontecimentos do primeiro semestre de 2011 foram a ideia de Merkel em estabelecer um Pacto pela Competitividade em troca de uma ampliação do fundo de resgate e a renúncia de Axel Weber como candidato à presidência do Banco Central Europeu.  Em fevereiro, Axel Weber anunciou que iria deixar a presidência do Bundesbank no dia 30 de abril, atitude esta que o descartaria como próximo presidente do BCE.  Muitas pessoas consideravam que Weber, o conservador presidente do Bundesbank, seria a próxima escolha para a presidência do BCE, e depositaram muita fé nele.  Por que ele renunciou?  Weber havia criticado as políticas do BCE várias vezes.  Começando por sua crítica ao afrouxamento quantitativo do BCE, ele seguidamente criticou as compras de títulos governamentais com o intuito de ajudar governos insolventes.  Weber sempre defendeu uma política monetária mais restritiva, mas nunca encontrou ressonância em suas opiniões.  Sua candidatura nunca foi defendida vigorosamente por Merkel, que queria fazer concessões políticas a Sarkozy, forte oponente de Weber.

A mais provável explicação para a saída de Weber é que ele temia a inflação e não queria ser o responsável por monstruosos pacotes de socorro e a alta inflação de preços que isto iria gerar.  O próprio Weber falou sobre a “falta de aceitação” para suas visões anti-inflacionárias como motivo de sua saída.  É bem possível que Weber tenha sido pressionado a renunciar.  O Conselho Europeu (ministros) decide por meio de voto majoritário quem será o próximo presidente do BCE.  França e Itália podem impedir com seus votos qualquer candidato.  Sendo assim, é que possível que Weber tenha sido convencido a renunciar “voluntariamente” para evitar demonstrações de exibicionismo do Conselho.[19]

A política monetária europeia não mais é conduzida pelo Bundesbank.  Os seguidores desta tradição são simplesmente derrotados pela maioria dos votos de seus oponentes.  Assim, o ex-ministro das finanças da Alemanha, Peer Steinbrück, disse que não queria se tornar presidente do BCE quando seu nome foi sugerido como candidato.  Sua explicação foi reveladora.  Ele declarou que estaria em minoria, dado que suas visões políticas eram similares às de Weber.

O Pacto pela Competitividade e a ampliação do fundo de resgate

O Pacto pela Competitividade (mais tarde renomeado de pacto euro-mais) pode se tornar simbólico em decorrência do épico fracasso da barganha de Merkel.  Os eventos de maio de 2010 geraram um fundo de resgate de €750 bilhões, tendo a Alemanha e outros países solventes como os principais financiadores.  Ainda assim, o fundo de resgate estava limitado a três anos, o que significa que, em 2013, a Alemanha não mais teria de socorrer governos periféricos; uma importante carta na manga.

Merkel, no entanto, utilizou esta carta na manga para exigir sanções automáticas dentro de um PEC alterado, a perda de direito a voto para países que o violassem o PEC e perdas para investidores privados em processos de reestruturação de dívidas públicas.  No dia 27 de outubro de 2010, Merkel ainda pronunciava as seguintes palavras a respeito do fundo de resgate: “Ele [o fundo] termina em2013.  Isso é o que queríamos e foi isso que decretamos.  Não pode haver e não haverá uma simples ampliação do fundo, pois ele não serve como instrumento de longo prazo, pois ele envia aos mercados e aos governos das nações-membro sinais distorcidos, além de gerar expectativas perigosas.  Ele gera a expectativa de que a Alemanha e outras nações-membro — e, desta forma, os contribuintes destes países em caso de crise — irão de alguma forma substituir e assumir os riscos dos investidores.”[20]

Curiosamente, e apesar destas palavras, no dia 16 de dezembro, o Conselho Europeu concordou em tornar o fundo de resgate permanente.  Isto representou uma grande derrota para a posição alemã, que sempre insistiu e sustentou que o fundo duraria somente até 2013.

Em troca da ampliação do fundo de resgate, Merkel insistiu em um “pacto pela competitividade“.  Sua proposta inicial incluía a harmonização fiscal (com um determinado intervalo de variação para as alíquotas de impostos), a harmonização da idade de aposentadoria (70 anos) e de configurações salariais (eliminando a indexação de salários pela inflação de preços), limites para os déficits e para a dívida pública, um freio ao endividamento (similar ao alemão), um controle orçamentário de cada país gerenciado por Bruxelas, e sanções para países que não cumprirem estas regras.  Embora algumas medidas apontem para a direção correta, como a redução da previdência pública, salários não indexados pela inflação e controle de déficits, o plano estabelece uma perigosa centralização.  Sarkozy deu apoio a Merkel, uma vez que o plano dela representava um passo rumo a um governo centralizado que os franceses sempre defenderam.  Ademais, dentro do pequeno grupo do euro, em contraposição ao EU 27, a França e seus aliados tinham mais peso contra a Alemanha.  Trichet considerava a criação dos Estados Unidos da Europa uma possibilidade, a qual ele considerava ser “nosso projeto histórico”.

Tais eventos representaram uma acachapante derrota para os pagadores de impostos alemães.  Não apenas eles foram obrigados a financiar um permanente fundo de resgate, como o governo francês também obteve sua eternamente desejada centralização governamental.  Ainda que no início possa haver uma forte influência alemã, no longo prazo tal influência será reduzida, como ocorreu com o BCE, onde os votos da Alemanha são facilmente sobrepujados.  Ao mesmo tempo, Merkel abriu mão de sua exigência de uma participação automática de investidores privados nos pacotes de socorro.

No curto prazo, é possível encontrar alguns aspectos positivos na estipulação das políticas fiscais por Bruxelas ou indiretamente pela Alemanha.  Quando a Alemanha ou Bruxelas diz à Espanha, à Grécia ou à Irlanda para reduzirem seus déficits ou privatizarem suas previdências, o resultado para as pessoas que vivem nestes países pode ser uma redução no tamanho do governo no curto prazo.  Porém, tal centralização de poder na UE irá provavelmente se comprovar desastrosa para a liberdade no longo prazo.  Um fator que frequentemente dificulta as tentativas dos governos de aumentar seus poderes via aumento de impostos ou regulamentações é a concorrência de outros governos.  Se os impostos se tornam demasiados altos em um país, os agentes econômicos irão procurar refúgio em outros países que tenham uma carga tributária menor (como a Irlanda e sua baixa alíquota de imposto de pessoa jurídica).  Se a política econômica se tornar centralizada na União Europeia, esta limitação sobre o poder estatal será eliminada.  Os políticos europeus já visam a uma harmonização das políticas fiscais e já falam sobre referenciais para alíquotas de impostos.  Quando as políticas fiscais forem harmonizadas, haverá uma tendência rumo a um aumento do poder de Bruxelas, e, consequentemente, rumo a um aumento das alíquotas de impostos por toda a zona do euro.  Os pacotes de socorro, o fundo de resgate permanente, e uma centralização governamental podem salvar o euro no curto prazo, mas ao custo de se estar construindo um estado europeu forte, totalitário e centralizado, uma vez que as decisões políticas serão transferidas para Bruxelas em troca de pacotes de socorro.  A desordem produzida pelo euro terá então servido como um instrumento para a criação de um estado centralizado dentro da Europa.

No dia 11 de março, em uma reunião de cúpula da UE, a união baseada puramente na transferência de renda foi mais detalhadamente moldada.  O fundo de resgate foi ampliado e deu-se permissão para que ele comprasse títulos governamentais diretamente no mercado primário.  Países como Portugal podem agora emitir títulos que serão comprados pelo fundo de resgate.  O fundo de resgate, por sua vez, emite títulos para financiar estas compras — um procedimento que equivale a títulos denominados em euro entrando pela porta dos fundos.  Os pagadores de impostos dos países solventes compram as dívidas de governos problemáticos.  A Alemanha poderá garantir aproximadamente €200 bilhões em vez dos €123 bilhões anteriormente acordados.  O FEEF possuía uma quantia de €440 bilhões, dos quais apenas 250 possuíam classificação AAA.  O novo e permanente Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), que começará em 2013, terá uma capacidade efetiva de €500 bilhões e poderá comprar títulos diretamente dos governos ao seu valor nominal.  O MEE terá €80 bilhões em dinheiro vivo, €22 bilhões da Alemanha.  O pagamento em dinheiro implica um custo de €600 a €900 milhões em juros para a Alemanha por ano.  Supostamente, o capital do MEE deve ser de €700 bilhões para garantir a emissão de pelo menos €500 bilhões em títulos classificados como AAA.  A Alemanha arcará com 27,1% dos custos totais.  Hans Werner Sinn estimou que o fardo total dos pacotes de socorro e do fundo de resgate será de €366 bilhões para a Alemanha.[21]

Se os governos estão insolventes — um conceito arbitrário cujo único intuito é diferenciá-lo de ilíquido —, então todos os investidores privados que comprarem seus títulos terão um haircut e sofrerão perdas.  O resultado mais provável, portanto, é que nenhum governo será considerado ilíquido, de modo que os investidores privados nunca sofrerão perdas.

O que Merkel conseguiu em troca de tudo isso?  O Pacto pela Competitividade continuou vago.  Sanções para os governos infratores não foram mencionadas.  Pelo menos Merkel manteve um veto para empréstimos futuros para nações problemáticas, uma vez que pacotes de socorro deveriam ter aprovação unânime — algo que ela tentou vender como sendo uma grande vitória.

A reunião de cúpula criou também uma obscura reestruturação da dívida para a Grécia.  Concordou-se em reduzir as taxas de juros dos empréstimos para a Grécia de 5,2% para 4,2%.  O período de pagamento destes empréstimos foi ampliado de três anos para sete anos e meio.  Isto implica, além de uma reestruturação parcial, vultosas perdas de juros para os pagadores de impostos das nações solventes.  Curiosamente, os empréstimos para a Irlanda a juros de 5,8% não tiveram suas taxas reduzidas porque o novo primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, não concordou em elevar o imposto de renda de pessoa jurídica em troca deste favor.

Na reunião seguinte, ocorrida nos dias 24 e 25 de março, as alterações feitas no dia 11 de março foram finalmente ratificadas.  Embora no dia 23 de março o presidente português José Sócrates tivesse renunciado após seu último pacote de austeridade não ter sido aprovado pelo parlamento, Portugal ainda assim não quis recorrer ao fundo de resgate.

Portugal

O colapso das finanças públicas portuguesas era apenas uma questão de tempo.

No início de janeiro de 2011, à medida que a pressão ia aumentando, um importante leilão de títulos da dívida de Portugal ocorreu sem maiores sobressaltos.  O governo estava pagando menos de 7% por títulos de 10 anos, algo considerável insustentável por vários parlamentares portugueses.[22]  Nos dias anteriores, o BCE incorreu em uma maciça compra de títulos portugueses, o que ajudou enormemente o leilão da dívida portuguesa.  O BCE salvou Portugal.  O Barclays Capital estimou que o BCE comprou €19,5 bilhões dos €21,7 bilhões de títulos portugueses vendidos em 2010.  De fevereiro de 2011 em diante, as taxas de juros dos títulos portugueses mantiveram-se consistentemente acima de 7%, chegando a 8,5% em abril.  A dívida pública foi de 92% do PIB em 2010.  O déficit público em 2010 foi de 8,6% do PIB, menos do que os 10% registrados em 2009.  Isto quer dizer que as medidas de austeridade, as quais encontraram forte resistência por meio de manifestações de rua, conseguiram reduzir o déficit em apenas 1,4 ponto percentual.

A situação de Portugal é similar à da Grécia.  A economia é pouco competitiva, com seu enorme setor público e seu mercado de trabalho inflexível.  A estrutura da economia não está alinhada com os reais desejos dos consumidores e é mantida artificialmente por volumosos gastos governamentais.

Durante a primeira década do século XXI, os setores público e privado aumentaram seu endividamento.  As taxas de juros foram artificialmente reduzidas em decorrência da expansão do crédito iniciada pelo Eurossistema e pelo implícito financiamento das dívidas portuguesas pela Alemanha.  O país ibérico viveu muito além de sua realidade financeira, inchando seu setor público para 50% do PIB em 2009, gerando uma enorme pressão fiscal.  O déficit na balança comercial, em consequência de toda essa expansão artificial, chegou a 10% do PIB.

Um padrão de vida artificialmente elevado foi possibilitado pela acumulação de dívidas a taxas de juros artificialmente baixas.  O necessário processo de ajustamento de sua atrasada economia foi postergado pelo crédito artificialmente barato.  Entre 2002 e 2007, o PIB português cresceu apenas 6%, ao passo que o espanhol cresceu 22% (bolha imobiliária), o irlandês cresceu 37% (bolha bancária), e o grego cresceu 27% (bolha do setor público).  O desemprego em Portugal dobrou, indo de 4% para 8%, enquanto que o desemprego na Espanha, na Irlanda e na Grécia não cresceu — em alguns casos até caiu.  Ao passo que a receita tributária aumentou 35% em Portugal, ela cresceu 50% na Grécia e 70% na Espanha e na Irlanda.[23]

Enquanto países como a Alemanha começaram reformas estruturais, reduziram os gastos públicos com programas sociais e reduziram os salários reais, Portugal aproveitou o estímulo fornecido pelo crédito fácil e postergou uma extremamente necessária reforma em seu modelo de produção.  Outros países periféricos utilizaram o crédito farto para criar bolhas.

Com a taxa de juros e o endividamento em forte ascensão, e nenhuma reforma séria no horizonte, Portugal irá dar o calote em algum momento futuro caso não seja socorrido.  A economia portuguesa deve €80 bilhões para bancos espanhóis.  Se o governo português der o calote, várias empresas que dependem do enorme setor público farão mesmo, pois não serão capazes de pagar suas dívidas junto aos bancos espanhóis.  Isto, por conseguinte, poderá desencadear uma crise bancária na Espanha, o que elevará as taxas de juros dos títulos da dívida do governo espanhol.

 

Com tudo isso, a expectativas continuam sinistras.  A União Europeia se transformou em uma união de redistribuição de renda.  As taxas de juros que a maioria dos governos tem de pagar sobre suas dívidas permanecem em níveis elevados.  O total acumulado da dívida soberana segue crescendo.  O futuro nos dirá se toda esta situação era sustentável.


[1] Ver Tobias Bayer, “Hilfen für Hellas: Kehrtwende kratzt an Glaubwürdigkeit der EZB,” Financial Times Deutschland (2010), http://www.ftd.de.

[2] Ver Maria Petrakis and Meera Louis, “EU Backs Greek Deficit Plan: Papandreou Offers Cuts,” Bloomberg(February 3, 2010), http://noir.bloomberg.com.

[3] Ibid.

[4] Ver Beat Balzli, “How Goldman Sachs Helped Greece to Mask its True Debt,” Spiegel online (2010),http://www.spiegel.de.

[5] Ver Andreas Illmer, “Merkel Rules Out German Bailout for Greece,” Deutsche Welle (March 1, 2010),http://www.dw-world.de.

[6] Ver Daniel Hannan, “Germans! Stop Being Ripped Off!” Telegraph.co.uk (March 27, 2010),http://blogs.telegraph.co.uk.

[7] Telebörse.de, “EZB öffnet Büchse der Pandora,” Dossier (May 10, 2010), http://www.teleboerse.de.

[8] Ver Helga Einecke and Martin Hesse, “Kurz vor der Apokalypse,” Süddeutsche Zeitung  (June 16, 2010),http://www.sueddeutsche.de and ECB, Monthly Bulletin: June (2010), http://www.ecb.int, pp. 37-40.

[9] Jörg Eigendorf et al., “Chronologie des Scheiterns,” Welt.online (May 16, 2010), http://www.welt.de.

[10] Ver Banco de Compensações Internacionais, “International Banking and Financial Markets Development,”BIS Quarterly Report (June, 2010), pp. 18-22.

[11] Ver Spiegel.online, “Deutschland weist Bericht über Sarcozy-Ausraster zurück,” Spiegel.online (May 14, 2010), http://www.spiegel.de.

[12] A lista de tributos alemães é longa.  Somente em setembro de 2010 é que o governo alemão pagou as últimas dívidas remanescentes das reparações da Primeira Guerra Mundial.  Ainda antes do “pára-quedas”, a Alemanha pagou 89% mais para a União Europeia do que teria de pagar considerando sua renda per capita.  O pagamento em excesso chegou a €70 bilhões durante a década posterior a 1999.  Ver Henkel, Rettet unser Geld!, p. 139.

[13] Ver Wolfgang Reuter, “German Central Bankers Suspect French Intrigue,” Spiegel.online (May 31, 2010),http://www.spiegel.de.

[14] Ver Ambrose Evans-Pritchard, “Axa Fears ‘Fatal-Flaw’ Will Destroy Eurozone,” Telegraph.co.uk (June 14, 2010), http://www.telegraph.co.uk.

[15] Philipp Bagus, “The Fed’s Dilemma,” Mises.org daily (October 8, 2009), http://mises.org.

[16] Philipp Bagus and Markus Schiml, “A Cardiograph of the Dollar’s Quality: Qualitative Easing and the Federal Reserve Balance Sheet During the Subprime Crisis,” Prague Economic Papers 19 (3, 2010): pp. 195-217.

[17] Ver Philipp Bagus and Markus Schiml, “New Modes of Monetary Policy: Qualitative Easing by the Fed,”Economic Affairs 29 (2, 2009): pp. 46-49, para mais informações. Para estudos de caso das políticas de alteração de balancete do Federal Reserve, ver Bagus and Schiml, “A Cardiograph of the Dollar’s Quality,” e “New Modes of Monetary Policy”; e para as políticas do BCE, Philipp Bagus and David Howden, “The Federal Reserve and Eurosystem’s Balance Sheet Policies During the Subprime Crisis: A Comparative Analysis,”Romanian Economic and Business Review 4 (3, 2009): pp. 165-85 e Philipp Bagus and David Howden, “Qualitative Easing in Support of a Tumbling Financial System: A Look at the Eurosystem’s Recent Balance Sheet Policies,” Economic Affairs 21 (4, 2009): pp. 283-300.

[18] Para a possibilidade de recapitalização e possíveis problemas, ver Bagus and Howden, “The Federal Reserve and Eurosystem’s Balance Sheet Policies,” e “Qualitative Easing in Support of a Tumbling Financial System.”

[19] Ver Roland Vaubel, “Eine andere Interpretation des Weber Rücktritts”, 2011,http://wirtschaftlichefreiheit.de/

[20] Citado in Frank Schäffler, “Europäischer Stabilitätsmechanismus (ESM),” 2011, Schriftliche Erklärung,www.frank-schaeffler.de.

[21] Hans Werner Sinn, “Deutschland: Die Lotsen gehen von Board,” 2011, www.mmnews.de.

[22] Alexander Liddington-Cox, “THE DAILY CHART: Portugal´s Austerity Impasse”, BusinessSpectator (March 23, 2011) http://www.businessspectator.com.au

[23] Ver Juan Ramón Rallo, “Portugal: Una decada (mal)viviendo del crédito barato,” juanramonrallo.com(March 23, 2011) http://www.juanramonrallo.com, and Juan Ramón Rallo, “España sí es Portugal, “juanramonrallo.com (March 29, 2011),  http://www.juanramonrallo.com

 

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Philipp Bagus
Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seu website.
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