InícioUncategorizedA Tragédia do Euro

A Tragédia do Euro

7. O monopólio monetário do BCE

Reflitamos por um momento a respeito do poder absoluto que o BCE exerce sobre a vida das pessoas na União Monetária Europeia (UME).  Trata-se de um poder que nenhuma instituição acumularia em uma sociedade livre.  Embora a imensa concentração de poder da era soviética seja algo do passado, o BCE ainda exerce total controle sobre a esfera monetária; ele tem o poder de criar dinheiro e, com isso, ajudar a moldar a destino da sociedade.

Imagine que você tivesse o poder que o BCE possui.  Você seria a única pessoa com o direito de produzir dinheiro.  Digamos que você pudesse criar dinheiro simplesmente utilizando seu computador; ou, ainda mais simples, que você pudesse acessar sua conta bancária pela internet e acrescentar a ela qualquer valor que você desejasse.  Imagine também que todas as pessoas fossem obrigadas a aceitar o dinheiro que você produz.  Você teria assim um poder comparável ao do anel de Tolkien.  Você utilizaria esse poder?  A tentação é praticamente irresistível.

Você de fato pode tentar utilizá-lo para fazer o bem.  Porém, o resultado deste arranjo seria um permanente influxo de bens e serviços para você, sua família e seus amigos em troca deste dinheiro recém-produzido.  Isso levaria a uma tendência de aumento nos preços.  Se você quisesse comprar uma BMW, você simplesmente criaria mais dinheiro e ofereceria um lance maior do que o daquela pessoa que teria comprado o veículo caso você não tivesse produzido esse dinheiro adicional.  Consequentemente, os preços sobem.  Você obtém a BMW e aquela outra pessoa fica a ver navios.  O vendedor poderá agora utilizar esse dinheiro adicional e comprar uma casaca para sua mulher, elevando desta forma os preços das casacas.  A renda do produtor de casacas irá aumentar e ele começará a gastar.  Gradualmente, este novo dinheiro irá se difundir por toda a economia, aumentando os preços e alterando o fluxo de bens e serviços, fazendo com que estes sejam majoritariamente consumidos por aqueles que primeiro recebem este dinheiro recém-criado.

Embora o uso do poder de imprimir dinheiro seja praticamente irresistível, você tem de ter o cuidado de não utilizá-lo exageradamente — e por vários motivos.

As pessoas podem ficar irritadas, oferecer resistência ao seu esquema e tentar destruir seu poder.  Quando elas perceberem que você pode simplesmente imprimir dinheiro para conseguir o que quer, e que, como consequência disto, você fica mais rico e elas ficam mais pobres, elas podem se revoltar.  Antes de a situação chegar a este ponto, seria sábio você querer restringir sua produção de dinheiro.  Porém, há outras maneiras de diluir essa fonte de inquietação e resistência.  Você pode desenvolver uma estratégia que dissimule a criação de dinheiro e crie distrações.  Você pode fazer com que o dinheiro recém-criado adentre a economia passando por uma série de etapas dentro de um intrincado sistema cujos mecanismos sejam complexos e difíceis de entender.  (Veremos mais à frente como o BCE faz isso).  Você pode também tentar convencer as pessoas de que o esquema na realidade é bom para elas.  Você pode alegar que o que você está fazendo irá estabilizar o nível de preços ou que você está altruisticamente tentando estimular o emprego.  (Estes são, aliás, os dois objetivos oficiais do BCE).

As pessoas podem realmente começar a gostar de você e alegar que, não fosse você, o sistema financeiro entraria em colapso.  Concentre-se em argumentar em prol de uma importante consequência do seu ato de criar dinheiro em vez de se concentrar na própria criação de dinheiro em si: diga que você controla as taxas de juros visando o melhor para a sociedade.  Em outras palavras, concentre-se nos efeitos de suas políticas (mudanças nas taxas de juros, por exemplo) e não naquilo que você está fazendo para manipular os juros (criando dinheiro).  Alegue que você está reduzindo os juros com o intuito de possibilitar mais investimentos e aumentar o emprego.  Utilize metáforas: sua criação de dinheiro é o óleo lubrificante necessário para o funcionamento suave da economia.  Desenvolva teorias que sustentem seu esquema.  Contrate economistas que apóiem sua empreitada e que criem teorias monetárias que defendam suas atitudes.  Tais economistas, obviamente, irão exigir alguns agrados em troca; normalmente, irão se contentar com algumas pequenas extravagâncias (passagens aéreas, carros, festas) que irão lhe custar algum dinheiro a mais (facilmente imprimível).[1] Uma de suas argumentações pode ser a de que você está fazendo todo o necessário para evitar o “desastre” de uma eventual queda nos preços.  Outra possível argumentação é que o sistema bancário precisa de contínuas criações de dinheiro, caso contrário irá quebrar — com consequências apocalípticas.  Você terá atingido seu objetivo quando vítimas e perdedores realmente começarem a crer que você está lhes fazendo um bem ao criar dinheiro.

Por outro lado, você tem de ser cuidadoso para não desarranjar sobremaneira a economia com sua criação de dinheiro.  Você certamente não vai querer muito caos.  Afinal, você ainda vai querer continuar podendo comprar uma BMW e usufruir o progresso tecnológico.  Se as pessoas pararem de poupar e de investir em decorrência da sua inflação, a produção de automóveis será interrompida.  Se a incerteza aumentar muito, você terá de abrir mão de vários privilégios.  Se o dinheiro recém-criado gerar muitos distúrbios e distorções na forma de ciclos econômicos, a produtividade será obstruída, e isso pode não ser algo de seu interesse.  Certamente você não irá querer nem hiperinflação nem um colapso do sistema monetário.  Ninguém iria querer utilizar seu papel pintado.  Seu poder seria dizimado.

Como mencionado anteriormente, é também do seu interesse cobrir suas pegadas.  Isso pode ser feito erigindo um sistema financeiro que seja complicado e difícil de entender.  Você pode conceder privilégios para alguns em troca da eterna amizade e fidelidade deles.  O privilégio consiste em deixar que eles participem do seu monopólio, dando a eles algum tipo de sucursal para auxiliar na sua criação de dinheiro.  Estes indivíduos, e vamos aqui chamá-los de banqueiros que praticam reservas fracionárias, não podem eles próprios imprimir dinheiro; porém, se eles mantiverem dinheiro depositado no seu banco na forma de reservas, eles poderão produzir múltiplos substitutos monetários — depósitos em conta-corrente, por exemplo — utilizando como base estas reservas.

Vejamos um exemplo simples de como este sistema de sucursal funciona.  Suponhamos que você (o banco central) imprima €100.000 para comprar uma BMW.  Após a sua compra, a concessionária deposita o dinheiro no Banco A.  O balancete do banco A será o seguinte.

 

Ativo

Passivo

Dinheiro                          €100.000

Depósito da concessionária BMW         €100.000

 

O banco mantém 100% de reservas para o depósito da concessionária BMW, a qual depositou o dinheiro com o intuito de tê-lo plenamente disponível sempre que quiser.  De acordo com os princípios jurídicos legais, o banco tem a obrigação de manter o dinheiro custodiado, disponibilizando-o para o depositante sempre que demandado.  A oferta monetária neste nosso exemplo é composta pelo dinheiro criado pelo banco central, o qual está depositado na conta bancária da concessionária, criando assim um substituto monetário: € 100.000.

Agora imagine que concedamos ao nosso amigo, o banco A, o privilégio de manter como reservas apenas 10% deste dinheiro que lhe foi depositado, em vez de manter a custódia total.  Isso significa que o banco pode agora comprar ativos (comprar imóveis ou fazer empréstimos, por exemplo) e pagar por eles utilizando depósitos em conta-corrente criados eletronicamente.  Em outras palavras, o banco pode agora fazer empréstimos para uma pessoa e colocar dinheiro recém-criado na conta bancária desta pessoa.

Ativo

Passivo

Dinheiro                                  €100.000

Empréstimo para pessoa U     €90.000

Depósito da concessionária BMW    €100.000

Depósito da pessoa U                        €90.000

 

O banco criou €90.000 do nada e o colocou na conta bancária de U.  Quando U utilizar este dinheiro em sua totalidade — por exemplo, comprando um bem da pessoa V em dinheiro vivo —, as reservas em dinheiro do Banco A caem para €10.000.  O depósito de Y desaparece.  O banco mantém uma taxa de reservas de 10%.

O balancete do banco A agora será:

Ativo

Passivo

Dinheiro                                  €10.000

Empréstimo para pessoa Y     €90.000

Depósito da concessionária BMW    €100.000

 

Imaginemos agora que a pessoa V seja cliente do banco B e deposite os €90.000 neste banco.  Agora o banco B poderá expandir o crédito.  Mantendo uma taxa de reservas de 10%, o banco B pode conceder um empréstimo de €81.000 para a pessoa W.

O balancete do banco B será:

Ativo

Passivo

Dinheiro                                  €90.000

Empréstimo para pessoa W     €81.000

Depósito da pessoa V                       €90.000

Depósito da pessoa W                       €81.000

Agora, W pode utilizar seu empréstimo, retirar o dinheiro de sua conta bancária e transferi-lo para a pessoa X ao comprar um bem ou serviço dela.  Após esta operação, o balancete do banco B será este:

Ativo

Passivo

Dinheiro                                  €9.000

Empréstimo para pessoa W     €81.000

Depósito da pessoa V                         €90.000

 

A pessoa X é cliente do banco C e deposita seu dinheiro (€81.000) nele.  O banco C tem agora novas reservas em dinheiro e pode criar dinheiro novo e conceder empréstimos à pessoa Y.  Mantendo uma taxa de reservas de 10%, o empréstimo totaliza €72.900.  O balancete do banco C será este:

Ativo

Passivo

Dinheiro                                  €81.000

Empréstimo para pessoa Y     €72.900

Depósito da pessoa X                         €81.000

Depósito da pessoa Y                         €72.900

Podemos dar continuidade a este processo de criação monetária.  Sob a hipótese de não haver nenhum atrito ou de empréstimos não serem utilizados, e de que a taxa de reservas será mantida em 10%, o sistema bancário pode multiplicar por 10 aquele depósito original de €100.000[2]

 

Miraculosamente, o sistema bancário criou dinheiro novo na forma de contas bancárias.  Agora, a oferta monetária subiu para €1.000.000.  A concessionária BMW, as pessoas V, X etc. possuem conjuntamente €1.000.000 em suas contas bancárias.  O sistema bancário possui reservas em dinheiro de 10%, totalizando €100.000.

O altamente lucrativo esquema de criar dinheiro só se tornou possível por causa do privilégio concedido pelo governo, o qual, em nosso experimento, é você.  De certa forma, neste exemplo, o governo é o chefe do sistema bancário e a pessoa Y pode ser o próprio governo.  Você deu aos bancos o privilégio de criar dinheiro e, em troca, os bancos lhe financiam concedendo-lhe empréstimos ou comprando os títulos emitidos por você.  Com efeito, quando deixamos de lado todas as complexidades e distrações do sistema, torna-se mais fácil pensar no dono da impressora de dinheiro, em você (o governo) e no sistema bancário como sendo todos uma só instituição.  O sistema bancário de reservas fracionárias — nada mais do que um sistema de sucursais do banco central — intensifica o poder de criação de dinheiro do banco central.  Dos €100.000 impressos pelo banco central, o sistema criou €1.000.000.  Ao comprarem os títulos que você emitiu, os preços destes títulos sobem e, consequentemente, os juros que você tem de pagar sobre eles caem.  Você pode agora usufruir taxas de juros mais baixas.

As ligações entre bancos centrais, bancos e o governo não são superficiais.  Eles formam um grupo de elite que trabalha em estrita cooperação.  Banqueiros e políticos raramente se criticam mutuamente.  Eles frequentemente conversam e saem para jantar juntos.

Olhando o cenário geral, temos que o governo estabelece a sua própria impressora de dinheiro (banco central).  O banco central compra majoritariamente títulos do governo, financiando o governo.  O governo paga juros sobre estes títulos em posse do banco central, aumentando desta forma os lucros do banco central.  Estes lucros são então remetidos ao governo.  Quando os títulos maturam, o governo não tem de pagar o principal, pois o banco central compra um novo título para substituir o título vincendo; a dívida é rolada.

Olhando agora em um nível mais detalhado, o sistema de sucursais bancárias entra em cena.  Os bancos têm o privilégio de poder criar dinheiro (moeda eletrônica).  Os bancos também compram títulos do governo, ou os utilizam como colateral para obter empréstimos do banco central.  Bancos não financiam apenas o governo por meio dessa criação de dinheiro; uma importante parte da sua atividade é conceder também empréstimos a consumidores e empreendedores.  Todavia, o sistema bancário jamais abandona o governo; ele sempre financia suas dívidas.  E ele é recompensado pelo banco central, o qual compra estes títulos do governo que estão em posse do sistema bancário, ou os aceita como colateral para conceder novos empréstimos ao sistema bancário.

No final, o sistema é simples.  Uma impressora gera enormes tentações: ser capaz de comprar votos ou realizar sonhos políticos, por exemplo.  Ao utilizar a impressora, a redistribuição favorece o governo e aqueles que primeiro recebem esse dinheiro recém-criado — em detrimento de todo o resto da população.  Este esquema é providencialmente camuflado pelo governo, o qual institucionalmente separa a maneira como o dinheiro adentra a economia.  O banco central é chamado de “independente”, mas continua comprando títulos do governo, coletando juros sobre estes títulos e remetendo seus lucros de volta para o governo.  Os bancos, operando em um sistema de sucursais do banco central, participam das vantagens criadas pela produção de dinheiro e, por sua vez, ajudam a financiar o governo.  Embora as conexões sejam complicadas, ao final tudo se resume a nada mais do que um indivíduo tendo uma impressora e a utilizando em seu próprio benefício e em detrimento de todo o resto da sociedade.



[1] O Fed é particularmente ótimo neste quesito.  Como demonstrou Lawrence White, “The Federal Reserve System’s Influence on Research in Monetary Economics,” Econ Journal Watch 2 (2, 1995): pp. 325-354, em 2002, 74% de todos os trabalhos acadêmicos sobre teoria monetária foram publicados em jornais acadêmicos publicados pelo Fed ou escritos em conjunto com economistas do Fed.

[2] Veja abaixo uma tabela mais completa mostrando a expansão do crédito em um sistema formado por bancos pequenos, baseando-nos no livro de Huerta de Soto, Money, bank credit and economic cycles, p.230.

Dinheiro remanescente no cofre de cada banco

Expansão do crédito (dinheiro criado do nada)

Depósitos

Banco A

10.000

90.000

100.000

Banco B

9.000

81.000

90.000

Banco C

8.100

72.900

81.000

Banco D

7.290

65.600

72.900

Banco E

6.560

59.000

65.600

Banco F

5.970

53.100

59.000

Banco G

5.310

47.800

53.100

Banco H

4.780

43.000

47.800

Banco I

4.300

38.700

43.000

Banco J

3.780

34.000

37.800

 

Sistema bancário

Total                                     d=100.000            x= d(1-c)/c= 900.000                      d/c= 1.000.000

[d=depósito original; x= dinheiro criado pela expansão do crédito; c= taxa de reserva]

Observação: Os últimos três dígitos foram arredondados.

Tabela 6.1: Expansão do crédito em um sistema formado por bancos pequenos

 

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Philipp Bagus
Philipp Bagus
Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seu website.
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