Thursday, November 21, 2024
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A teoria monetária austríaca

money (1)1. Introdução

As diversas escolas de pensamento econômico concordam com a idéia intuitiva de que as variações observadas nos níveis absolutos de preços têm algo a ver com as variações verificadas nos volumes de moeda existentes nas economias, embora haja consideráveis discordâncias no que se refere ao papel específico desempenhado pela moeda na relação causal que conduz aos processos inflacionários, assim como no que diz respeito à própria definição de inflação. O objetivo deste artigo é o de apresentar o pensamento dos austríacos sobre os  importantes fenômenos monetários.

Como observou Rothbard, “a teoria monetária austríaca virtualmente começa e termina com a monumental “Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel” (Teoria da Moeda e do Crédito), de Ludwig von Mises, publicada em 1912″.

No ano de 1903, um economista especializado em assuntos monetários e influente nos meios acadêmicos, Karl Helfferich, lançou um desafio à Escola Austríaca, no sentido de que, embora Menger, Wieser e Böhm-Bawerk houvessem obtido extraordinários progressos no que se referia à análise do valor e dos mercados – isto é, naquilo que hoje conhecemos como “microeconomia”- não tinham conseguido o mesmo sucesso no campo dos problemas monetários. De fato, o conceito de utilidade marginal não fora ainda utilizado para explicar a determinação do valor da moeda, que continuava sendo analisada pela metodologia desenvolvida pelos economistas clássicos ingleses, que tratava as questões monetárias em um compartimento isolado, sob um ponto de vista “macroeconômico” que as separava das teorias da utilidade, do valor e dos preços relativos, desenvolvendo-as mediante conceitos de agregados econômicos, tais como “nível geral de preços”, “velocidades” e “produto nacional”.

Em outras palavras, a tradição da Teoria Quantitativa da Moeda, bem como, já nos anos 30, a Teoria da Preferência pela Liquidez, de Keynes e, a partir da década de 50, a reafirmação monetarista da Teoria Quantitativa e as que se lhe seguiram (como a análise de Phillip Cagan sobre a demanda de moeda sob condições de hiperinflação), fixando-se na metodologia da macroeconomia, não conseguiam estabelecer uma base microeconômica para o estudo dos problemas monetários, o que tornava essas teorias – mesmo a importante contribuição de Milton Friedman – um tanto desligadas da ação humana observada no nível dos indivíduos, que é fundamental para o correto entendimento da ciência econômica. A única exceção, embora parcial, a esse desligamento fica por conta dos trabalhos desenvolvidos, a partir do final dos anos 60, por Robert Lucas, Thomas Sargent e Neil Wallace e que vieram a constituir o que hoje denominamos de Nova Macroeconomia, ou Escola das Expectativas Racionais, bem como as contribuições de Robert Clower e Axel Leijonhufvud, nos anos 60 e 70.

Pois bem, Mises, em seu citado livro de 1912 (que ele amadurecera desde 1906), solucionou satisfatoriamente o desafio de Helfferich, aplicando a análise  da utilidade marginal de Carl Menger – que fora anteriormente utilizada tão somente para explicar a determinação da demanda do consumidor e dos preços de mercado – aos fenômenos da demanda de moeda e do seu valor, ou preço. A partir da “Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel”, cuja segunda edição, de 1924, integrou as teorias da moeda, do capital e da utilidade marginal para explicar os problemas da inflação, da recessão e dos ciclos econômicos, os fenômenos monetários passaram a ser analisados em conjunto com os demais fenômenos econômicos, como os da oferta, demanda e preços, sem necessidade de serem isolados nos conceitos de “velocidades”, “níveis gerais de preços” ou “equações de troca”.

A contribuição de Mises à teoria monetária começa a partir de sua solução para o “problema da circularidade” (ou “círculo austríaco”) e de sua demonstração de que a moeda, ao invés de ter sido inventada de modo pré-concebido pelo homem, sob a forma de um contrato social, é uma instituição resultante de ações individuais não intencionais, nas quais os agentes econômicos foram percebendo a superioridade (em termos de geração de estados mais satisfatórios) das trocas indiretas, isto é, as efetuadas mediante a utilização de um meio de trocas, em relação às trocas diretas.  Tal meio de trocas – a moeda – é o mais negociável, o mais aceito entre todos os demais bens e o seu desenvolvimento deu-se, para usarmos a linguagem de Hayek, como uma ordem espontânea.

Os livros-texto listam como funções básicas da moeda a de meio de trocas, a de unidade de contas e a de reserva de valor. A dificuldade, contudo, consiste em saber quais, dentre os diversos ativos financeiros, desempenhando tais funções, possam ser caracterizados como moeda, fato que gerou conhecidas controvérsias entre os economistas. Sob o ponto de vista da teoria monetária moderna, entretanto, o que se requer, mais do que uma simples e universal definição de moeda, é a solidez de uma teoria que consiga explicar os fenômenos monetários.

De acordo com a Escola Austríaca, uma boa teoria monetária deve partir do pressuposto de que a demanda de moeda por parte de um indivíduo depende de suas estimativas a respeito do poder de compra da moeda em termos dos preços de “ontem”. De fato, cada indivíduo, ao decidir a porção de sua riqueza a ser mantida sob a forma de moeda (liquidez “não usada”), deve subjetivamente estimar a utilidade marginal de cada unidade monetária, ou seja, seu poder de compra, ou, ainda, seu preço. Ocorre, porém, que o poder de compra da moeda, por sua vez, depende fortemente dos saldos monetários que os indivíduos decidem manter, isto é, de suas demandas individuais de moeda.

2. O problema da circularidade ou círculo austríaco

Eis, então o “problema da circularidade”: como a demanda de moeda e, portanto, sua utilidade, depende de seu preço pré-existente (ou poder de compra), como pode então este ser explicado pela demanda? O leitor deve observar que esta aparente armadilha circular surge somente ao tentarmos aplicar a teoria da utilidade marginal para explicar a determinação do preço da moeda. Ele não existe para os outros bens e serviços: ao estabelecermos nossas escalas de valores para tênis, sorvetes ou canetas, por exemplo, o que importa na determinação da utilidade marginal de cada um desses produtos, é a sua natureza física, ou seu poder de satisfazer necessidades específicas. Isto é, essas valorações não dependem de preços pré-existentes: na realidade, elas determinam aqueles preços. Com relação à moeda, no entanto, nós a demandamos não para uso direto em consumo, mas para retê-la sob a forma de saldos monetários, com o objetivo de trocá-los por bens que possamos consumir diretamente.

Em outras palavras, não utilizamos a moeda pelo fato dela ser consumida, mas sim porque ela tem um valor prévio de troca, já que ela será permutada com outros bens. A moeda é demandada, portanto, por possuir um poder de compra pré-existente; sua utilidade não apenas é independente de seu preço de mercado, como surge do fato de que ela tem um preço, ou poder de compra, em termos dos demais bens e serviços.

Em linguagem técnica, as utilidades de cada unidade monetária relativamente aos outros bens determinam as demandas individuais de saldos monetários, isto é, que parcela da riqueza será mantida sob a forma de moeda, relativamente à que será gasta. Mises, aplicando a lei da utilidade (ordinal) marginal decrescente e considerando que o “uso” da moeda existe para fazer frente a futuras trocas, chegou implicitamente a uma “curva” de demanda de moeda que é decrescente em relação ao poder de compra de cada unidade monetária, que ele denominou de “valor objetivo de troca” da moeda e que é determinado, nos moldes da análise convencional de oferta e demanda, pela interseção da demanda de moeda com o estoque existente de moeda. Este último – ou oferta de moeda – é, em qualquer instante de tempo, nada mais, nada menos que a soma dos saldos monetários individuais: nenhuma unidade monetária existente deixa de ser possuída por alguém, não podendo, por isso, deixar de estar contida em alguma demanda monetária individual.

Contudo, o poder de compra da moeda não é, como se costuma considerar, simplesmente o inverso do “nível geral de preços” – que é, por sinal, algo que não existe concretamente: o que existe são preços. O poder de compra ou preço de uma unidade monetária é, na realidade, um conjunto das quantidades de bens e serviços alternativos que essa unidade monetária pode comprar. E, como tal conjunto é específico e é heterogêneo, ele não pode ser simplesmente somado para obtermos uma unidade de preços agregados, ou “nível geral de preços”.

3. O Teorema da Regressão de Mises

Mises resolveu o “problema da circularidade”, cuja aparente insolubilidade fez com que os economistas da “mainstream” deixassem de aplicar a análise marginal para determinar o valor da moeda, o que os fez adotar uma postura walrasiana de equilíbrio geral, da qual, por sinal, ainda não se libertaram. Sua solução é conhecida como o Teorema da Regressão e foi apresentada na primeira edição de seu tratado “Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel”. Este teorema, apesar de ser uma das importantes contribuições que Mises legou à ciência econômica, é também, infelizmente, um dos menos conhecidos, fato que gerou muitos erros. Verifiquemos sua brilhante solução para o problema do “círculo austríaco”.

Em qualquer período de tempo, digamos, no dia D (t), o valor ou poder de compra da moeda é determinado pela interação da oferta de moeda com a demanda de moeda, observadas naquele dia. Esta última, como sabemos, é determinada pela utilidade marginal da moeda para os indivíduos, a qual possui um componente histórico, pois depende do poder de compra, V, existente no dia anterior, isto é, de V (t – 1). Este, por sua vez, fora determinado pela oferta e demanda monetárias no dia precedente, D (t – 2), o qual dependia de V (t – 3) e assim sucessivamente.

A solução de Mises para este problema consiste em ir empurrando essa regressão temporal para trás, até o dia, digamos, D (0), em que a moeda não era usada como meio de trocas, sendo apenas utilizada para consumo direto. O dia D (1), então, foi o primeiro em que a moeda passou a ser usada como tal, enquanto D (0) foi o último dia em que a moeda foi utilizada como uma mercadoria comum, digamos, ouro. Portanto, podemos fazer regredir em uma cadeia temporal o valor da moeda em qualquer instante D (t), até D (1) e, daí, a D (0). Vemos, então, que a demanda da moeda-mercadoria (ouro) no dia D (1) dependia do poder de compra do ouro no dia anterior, isto é, de V (0). A regressão temporal deve necessariamente ter um fim, uma vez que a demanda de ouro no dia D (0) consistia, necessariamente, de seu valor direto para consumo, sem qualquer componente histórico, ou seja, sem influência do preço do ouro no dia     D (-1).

Com isto, Mises solucionou o “problema da circularidade”, mostrando, adicionalmente, que, diferentemente dos valores dos demais bens e serviços, o valor da moeda tem um importante componente histórico. Além disso, o “Teorema da Regressão” mostra-nos que a moeda, em qualquer sociedade, não pode ter sido criada a não ser pelo processo de mercado que caracteriza as trocas, ou seja, a moeda é uma ordem espontânea. Não faz qualquer sentido, portanto, acreditar que se possa “criar” moeda mediante contratos sociais, ou por imposição dos governos, ou por quaisquer esquemas artificiais propostos por economistas: a moeda surge, como observa Rothbard,”organicamente, de dentro do mercado”.

A partir desse ponto, depois que mostramos, em linhas gerais, o que é a moeda (e o que não é), podemos examinar a teoria monetária da Escola Austríaca.

4. A teoria monetária austríaca

A rigor, não existem divergências entre os economistas da Escola Austríaca, os adeptos de Milton Friedman (“monetaristas”) e os “novos clássicos” da Escola de Expectativas Racionais, no que se refere ao fato de que a política monetária – e nada mais – seja a causa da inflação. Mises, por exemplo, via como uma ameaça à própria democracia a capacidade que os governos têm de emitir moeda. Também no que se refere aos efeitos das políticas keynesianas de “pleno emprego” e de “sintonia fina”, Hayek, Friedman e Sargent concordam quanto ao fato de que são desastrosas, porque geram a aceleração da inflação e, no limite, a hiperinflação.

As diferenças mais importantes entre austríacos e monetaristas estão em três importantes hipóteses: a primeira é que a Escola Austríaca possui uma Teoria do Capital, algo que não existe nas demais abordagens; a segunda é que os austríacos encaram os mercados como processos essencialmente dinâmicos e, portanto, não utilizam análises de equilíbrio;  e a terceira é o contraste entre a fundamentação microeconômica da primeira (que influenciou a Escola das Expectativas Racionais, embora esta não seja subjetivista) e a ênfase macroeconômica da segunda.

A visão austríaca é de que os efeitos das variações do estoque de moeda, provocadas por alterações nos fluxos monetários, não são uniformes, afetando desigualmente os preços relativos, a estrutura de capital e os padrões de produção da economia, bem como alterando os níveis de emprego dos fatores produtivos, em um processo que se vai tornando progressivamente mais forte, à medida que o governo, para corrigí-lo, altera a política monetária.

Mises já havia mostrado a falaciosidade do conceito de “nível geral de preços”, ao examinar porque os preços sobem – isto é, porque o poder de compra da moeda cai – em resposta a um aumento na oferta de moeda (mantidas constantes as escalas valorativas individuais que determinam as respectivas demandas de moeda): ao invés de seguir o procedimento neoclássico de separar a economia em um setor real e um setor monetário, ele mostrou que as expansões monetárias afetam desigualmente os diferentes mercados e, portanto, provocam inescapavelmente alterações nos preços relativos. Esta implicação, que refuta a tese neoclássica da “neutralidade da moeda”, foi posteriormente desenvolvida por Hayek, em diversos trabalhos.

Rothbard, para explicar que a moeda afeta diferentemente os preços absolutos, recorre ao que denomina de “Modelo do Anjo Gabriel”. A moeda não entra uniformemente na economia, mas, mesmo se fosse assim, como no caso em que o anjo descesse do céu e, de noite, aumentasse os encaixes monetários de todos os habitantes do país em, digamos, 100%, os preços não dobrariam em sua totalidade: alguns mais do que dobrariam, outros subiriam menos do que 100%, outros ficariam constantes, outros poderiam cair, etc. Isto ocorre porque cada indivíduo tem uma escala de valores própria, uma ordenação característica de preferências, que contém as utilidades marginais das unidades monetárias relativamente às utilidades marginais dos demais bens. À medida que os saldos monetários dos diferentes indivíduos aumentam, suas compras de bens e serviços mudarão de acordo com as novas posições desses bens e serviços relativamente à moeda, em suas  diferentes escalas de valores. A estrutura da demanda, bem como os preços relativos e as rendas relativas sofrerão alterações; a composição do conjunto que constitui o poder de compra da moeda, por conseguinte, também será alterada.

Ora, se isto ocorreria em uma situação tão simples quanto improvável, como a descrita pelo “Modelo do Anjo Gabriel”, é evidente que ocorre com muito maior intensidade por ocasião das expansões monetárias que se verificam no mundo real. Quando o Banco Central ou os bancos comerciais expandem a moeda e o crédito, o dinheiro novo assim criado é gasto, inicialmente, em bens e serviços específicos. As demandas por esses produtos sobem em relação às demandas dos demais, o que aumenta seus preços relativamente aos demais preços. À medida que o dinheiro novo espalha-se pela economia, outras demandas aumentam e, portanto, outros preços também aumentam. A riqueza e a renda se redistribuem, em favor daqueles que receberam a moeda nova no início do processo e em detrimento dos que só passaram a recebê-la nos estágios posteriores. Ocorrem, portanto, duas modalidades de alterações de preços relativos: a primeira é esta redistribuição de rendas dos últimos para os primeiros receptores do dinheiro novo, que ocorre durante o processo inflacionário e a segunda são as mudanças permanentes na riqueza e na renda que continuam a se verificar mesmo depois que a moeda nova já se tenha espalhado por toda a economia.

Já em 1912 Mises chamara a atenção para o fato – que fora observado por David Ricardo cem anos antes – de que aumentos na oferta de moeda não geram benefícios para a sociedade, basicamente porque eles não alteram os serviços de troca que a moeda proporciona; apenas diluem o poder de compra de cada unidade monetária. Portanto, não existe nenhuma “necessidade social” que justifique o crescimento da oferta monetária, nem mesmo se a produção ou a população aumentarem: simplesmente, as pessoas poderão manter uma proporção maior de saldos monetários reais (em termos de poder de compra) para uma dada oferta de moeda, gastando menos, o que fará subir o poder de compra de seus saldos monetários. Conforme Mises escreveu no capítulo XVII de “Ação Humana”, em 1948,  “… a quantidade de moeda disponível em toda a economia é sempre suficiente para assegurar a todos tudo o que a moeda faz e pode fazer”.

A inflação – que não deve ser entendida simplesmente como um aumento contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas como uma “queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços” – é um método pelo qual o governo, o sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente adquirem a capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da sociedade. Portanto, é mais do que aconselhável – é crucial – que a sociedade, mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que a política monetária fique sujeita às pressões de natureza política. Existem três mecanismos institucionais voltados para esse fim.

O primeiro, defendido por Mises, é ancorar a moeda ao estoque de ouro dos bancos centrais, isto é, o regime do padrão ouro; o segundo, sugerido por Hayek, consiste na “desnacionalização” da moeda, em que se estimularia a competição entre as diversas moedas sobre as quais os bancos passariam a ter poder de emissão, de modo que as moedas das instituições bancárias administradas mais eficientemente teriam utilidades marginais maiores do que as emitidas pelos bancos mal administrados e, portanto, seus valores seriam mais elevados do que os das segundas, o que faria o sistema tender para a estabilidade. Por fim, o terceiro mecanismo, que, embora não tenha sido proposto por economistas austríacos, tende a isolar a política monetária das pressões políticas, é a “independência ou autonomia do Banco Central”, que equivale a separar a política monetária da política fiscal.

O grande desafio – a ser prontamente enfrentado, como frisou Hayek – é proteger permanentemente a moeda contra os falsos remédios receitados por muitos economistas, que podem surtir efeitos paliativos no curto prazo, o que sustenta sua popularidade e os leva a crer que possuem a chave da salvação. No Brasil e no mundo há milhares desses economistas, cujas teses, obviamente, quase sempre soam em harmonia com os interesses políticos de diversos grupos, mas que têm o efeito de, no longo prazo, abalar aquela que deve ser a instituição mais bem guardada dentre todas as outras: a moeda, cuja estabilidade deve ser o começo de qualquer conversa a respeito do crescimento sustentado.

5. Inflação, Recessão, Estagflação e Ciclos Econômicos

Para compreendermos melhor a visão da Escola Austríaca com relação ao problema da inflação, da recessão, da estagflação e dos ciclos de negócios, podemos preliminarmente contrastá-la com as posições dos keynesianos e dos monetaristas. Inicialmente, tanto uns como outros admitem implicitamente que o setor real da economia está permanentemente em algum tipo de equilíbrio de longo prazo, em que a política monetária afeta apenas o “nível geral de preços” e o produto nominal (ou o produto real), sem qualquer efeito sobre a estrutura de produção e a composição do produto real, já que esses modelos não contam com nehuma Teoria do Capital – admitem, simplesmente, que o estoque de capital é “constante” no curto prazo.

Os keynesianos, que, de um modo geral, crêem que os preços são determinados pelos custos de produção, acreditam que as tentativas de controle da oferta de moeda, ao provocarem aumentos nos custos, aumentarão o desemprego sem reduzir a inflação. Por isso, costumam sugerir controles diretos de custos, via “políticas de rendas”, como forma de obter estabilidade de preços e pleno emprego. É uma visão míope.

Para os monetaristas, a inflação é resultado das discrepâncias entre a oferta de moeda (historicamente instável) e a demanda de moeda (considerada estável, isto é, previsível), o que os leva a recomendar como a única terapia anti-inflacionária correta o controle sobre a oferta de moeda, que deve crescer a uma taxa fixa(. Para Friedman, o desemprego associado aos programas anti-inflacionários não deve ser visto como o remédio para a cura da inflação, mas como um inevitável efeito colateral, resultante de um “processo de ajustamento” de curto prazo que perdurará enquanto houver discrepâncias entre a inflação observada e as expectativas de inflação. É uma visão correta no que tange à identificação da causa e da solução do problema da inflação, mas, sob a ótica da Escola Austríaca, é incompleta: primeiro, por não mostrar como os fluxos monetários alteram os preços relativos; segundo, por não verificar como esses fluxos alteram a estrutura de capital e terceiro, por não considerar o mercado como um processo e, portanto, por não conseguir explicar (por seu enfoque macroeconômico e por sua hipótese de uniformidade à la “Modelo do Anjo Gabriel”) a natureza das alterações geradas pela moeda nos preços absolutos e nos preços relativos.

A Teoria Austríaca, resumida a seguir, mediante a integração das teorias da moeda, do capital, do processo de mercado e dos ciclos econômicos e calcada epistemologicamente no individualismo metodológico (praxeologia), consegue sanar estas deficiências do enfoque mais convencional.

A política monetária não é “neutra”: ela não afeta todos os preços de maneira uniforme e, portanto, altera os preços relativos e, assim, a estrutura temporal de produção!

A idéia central é que o dinheiro novo entra em um ponto específico do sistema econômico e, sendo assim, ele é gasto em certos bens e serviços específicos, até que, gradualmente, vai-se espalhando por todo o sistema, assim como um objeto qualquer, ao ser atirado na superfície de um lago, forma círculos concêntricos com diâmetros progressivamente maiores, ou como quando se derrama mel no centro de um pires e ele vai-se espalhando a partir do montículo que se forma no ponto em que está sendo derramado (analogias, respectivamente, de Mises e Hayek). Por isso, alguns gastos e preços mudam antes e outros mudam depois e, enquanto a mudança monetária – digamos, uma expansão do crédito – for mantida, essa dança de gastos e preços persiste em movimento.

Assim, as alterações provocadas nos preços relativos produzem mudanças na alocação de recursos. Quando ocorre uma expansão do crédito bancário, supondo que as expectativas quanto à inflação futura não existam, as taxas de juros, inicialmente, caem, mantendo-se abaixo dos níveis que alcançariam se o crédito não tivesse aumentado. O efeito disso é que, necessariamente, os padrões de gastos sofrerão alterações: os gastos de investimentos subirão relativamente aos gastos de consumo corrente e às poupanças. Portanto, a expansão monetária, necessariamente, provoca uma descoordenação entre os planos de poupança e de investimento do setor privado. Esse impacto descoordenador da política monetária é essencial na visão hayekiana, mas não é levado em conta pela teoria macroeconômica convencional.

Até aqui, contudo, nem os keynesianos nem os monetaristas teriam muitos pontos de desacordo. De fato, para os primeiros, ocorreria um excesso do investimento sobre a poupança, o que faria crescer a renda e o produto real (e, possivelmente, os preços, assim que o “pleno emprego” fosse atingido); já para os monetaristas, a expansão monetária provocaria aumento na renda nominal e no “nível geral de preços” (e, possivelmente, no produto real, embora apenas no curto prazo, enquanto o “processo de ajustamento” friedmaniano não se completasse).

Hayek, porém, vai mais longe: ele estabelece em pormenores as alterações que a expansão creditícia provoca nos padrões de gastos e de produção. Na abordagem hayekiana, a produção é vista como uma série de “estágios”, que começam na produção de bens exclusivamente de consumo final (ou de “primeira ordem”) e vão até estágios de “ordens” mais elevadas, isto é, sistemática e sucessivamente afastados da produção de bens de consumo. Isto significa que a produção consiste em uma série de processos interligados, em que bens de capital caracterizados pela heterogeneidade são combinados em diversas proporções, juntamente com a terra e o trabalho. Esta é a essência da Teoria do Capital de Böhm-Bawek.

Tanto os bens de capital como o trabalho (e, de certa forma, a terra), são específicos a determinados  estágios  de produção  e possuem as características de heterogeneidade e complementaridade. Adicionalmente, os investimentos devem realizar-se em uma estrutura de produção integrada, isto é, em uma série dependente e interligada de investimentos complementares.

Ora, a política monetária, ao alterar os preços relativos, modifica os sinais emitidos pelos preços. No caso de uma expansão monetária, estes sinais apontam para a redução dos lucros das empresas que produzem para consumo corrente e para o aumento dos lucros da produção de bens para consumo futuro. Alteram-se, portanto, as taxas de retorno sobre as várias combinações de capital. Os retornos nos estágios de produção mais próximos do consumo caem, enquanto crescem os retornos nos estágios de produção mais afastados do consumo; recursos não-específicos deslocam-se dos primeiros para os segundos; vai diminuindo a produção de bens de consumo, ao mesmo tempo em que os padrões de produção de bens de capital vão sofrendo alterações, passando-se a produzir bens que se adaptem a estruturas de produção que abarquem mais estágios do que anteriormente. Para que esses investimentos se completem até o estágio dos bens de consumo final, deverão ser subtraídos mais recursos do consumo, o que significa que a produção de bens de ordens mais baixas deverá manter-se em queda, até que a nova estrutura de produção se complete.

O processo descrito é auto-reversível: na medida em que as rendas dos titulares dos fatores de produção aumentam (em decorrência da expansão monetária), cresce a demanda por bens de consumo, o que faz com que os preços desses bens, relativamente aos preços dos bens mais afastados do consumo, aumentem. Reverte-se, desta forma, o processo: caem os retornos nos estágios mais afastados do consumo final, enquanto sobem os retornos nos estágios mais próximos do consumo final; recursos não específicos fazem o caminho de volta; os bens de capital, que haviam sido dimensionados para a estrutura de produção anterior, têm agora que ser redimensionados para uma estrutura menos intensiva em capital; surgirão perdas e desemprego, que serão mais fortes nos setores que anteriormente haviam se expandido mais e que, agora, defrontam-se com superproduções.

As perdas e o desemprego gerados nada mais são do que a contrapartida das alocações perversas de recursos geradas pela expansão monetária. Ou seja, expansão monetária e recessão são inseparáveis!

As tentativas de fazer a estrutura de produção voltar à situação anterior, mediante novas expansões monetárias nos mesmos pontos em que elas inicialmente ocorreram apenas terão o efeito de perpetuar a descoordenação que se inoculou na estrutura de capital, o que fará com que cada vez mais inflação e mais desemprego sejam gerados para manter-se o artificialismo desejado. Eis aí a origem dos ciclos econômicos, segundo os austríacos.

Mesmo sob a vigência da famosa “x-rule” friedmaniana – isto é, com a oferta monetária crescendo a uma taxa constante – permanecerão os sintomas recessivos impostos pela realocação corretiva de recursos. Isto se explica pelo fato de que a ação conjunta das expectativas de inflação (que surgem com a manutenção da expansão monetária) e a escassez real (provocada pelas más informações que o sistema de preços passa a transmitir) fará com que as margens de lucros que haviam aumentado pelo estímulo da inflação passem a cair.

As tentativas de manutenção da inflação costumam ser incentivadas pelas pressões políticas,  geradas pelo fato de que, via de regra, as rendas dos fatores não específicos são fortemente afetadas pelas variações nas demandas por seus serviços. A reflação, isto é, a aceleração da expansão monetária, provocará, então, desajustamentos adicionais: dados os contínuos e crescentes aumentos de preços e as quedas de salários reais, surgem normalmente pressões para que os preços sejam controlados. Os controles sobre os preços dos bens de consumo exacerbam a situação desconfortável que o próprio governo criou, uma vez que seu efeito será o de intensificar a escassez de bens de consumo e, portanto, o de perpetuar as pressões realocativas.

A estagflação provocada pelas más alocações geradas pelas políticas monetárias “anti-cíclicas” mostra que essas políticas, na realidade, são “pró-cíclicas”! Enquanto a expansão monetária persistir, continuarão a ser realizados maus investimentos, até a estrutura de capital ficar “grimpada”.

Se o governo estancar a expansão monetária, ocorrerá rapidamente uma recessão que, embora possa ser forte, cessará, tão logo o reajustamento da estrutura de produção se complete e as trajetórias de produção e emprego se restabeleçam em moldes sustentáveis. Terminarão, então, as perturbações alocativas e a inflação. Se o governo der, contudo, permanecer emitindo, a recessão e a inflação crescerão progressivamente.

Por fim, se o governo, para combater a recessão, resolver acelerar a expansão monetária – o que ocorrerá se ele ceder às pressões no sentido de reduzir as taxas de juros – o resultado, líquido e certo, no final do processo, será uma hiperinflação.

A indexação de preços, que foi largamente utilizada no Brasil até antes da implementação do Plano Real, além de não ser neutra em relação aos efeitos alocativos da inflação, ao representar mais uma pressão artificial sobre os preços relativos, agravava o problema. Na realidade, ela não podia fazer mais do que cobrir variações de preços que já haviam ocorrido no passado, em decorrência da expansão monetária.

Nunca é tarde, contudo, para aprender. Os economistas passaram quase todo o século XX e a primeira década do atual encantados com a pseudo-panacéia keynesiana e com a venenosa serpente marxista. Mas Mises, desde 1912, apontou-nos o caminho correto para a estabilidade de preços; Hayek, dos anos 20 até sua morte, em março de 1992, aplainou aquele caminho. Ambos foram, por isso, perseguidos e negligenciados.

A tarefa dos austríacos de hoje é resgatar suas idéias, procurar aperfeiçoá-las e contribuir para que sejam adotadas pelos governos. É uma tarefa difícil, muito difícil – como os “remédios” adotados pelos governos em todo o mundo em reação à crise de setembro de 2008 estão aí para atestar – mas devemos esperar que os economistas e os governos, de tanto errarem, venham a exercer sua condição de seres racionais e, portanto, aprendam…

6. Conclusões

Espero que este artigo possa ter ajudado o leitor a compreender que, conceitualmente, não existe uma “teoria monetária” austríaca, no sentido puro, mas uma teoria mais ampla, que integra as teorias da moeda, do capital, do processo de mercado e dos ciclos econômicos. No mundo real, não há um “setor monetário” e um “setor real”, não existe um bem chamado “PIB” que se possa comprar em padarias ou lanchonetes, não há tampouco algo como um “nível geral de preços”, não existe uma “taxa de juros” e muito menos o estoque de capital é “constante” – ou, como disse certa vez um aluno, referindo-se à notação dos modelos macroeconômicos (que denominam de Ko o estoque de capital de curto prazo, constante), “não existe um kazão“…

Se Keynes conhecesse a Teoria Austríaca do Capital, provavelmente não teria escrito a Teoria Geral e Friedman não tentaria ter corrigido a Teoria Geral. E o mundo seria melhor sem a Teoria Geral.

Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.
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Maurício J. Melo on Bem-estar social fora do estado
Maurício J. Melo on A guerra do Ocidente contra Deus
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Maurício J. Melo on Objetivismo, Hitler e Kant
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Maurício J. Melo on A vietnamização da Ucrânia
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Ex-microempresario on O bombardeio do catolicismo japonês
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