Sempre quando nos pomos a debater temas extremamente complexos é esperável o embate entre argumentos diferentes e bastante contratantes, os quais, na maioria das vezes, são, com efeito, um empecilho posto impeditivamente ao alcance de resoluções racionais e executáveis à problemas de naturezas diversas.
Em certas temáticas, no entanto, é absolutamente indispensável notar que o erro resolutivo frequentemente não se encontra na superficialidade de dado argumento, mas no modo através do qual os argumentos são construídos, o que toca frontalmente a epistemologia, a filosofia, a ciência, e, mais especificamente, a metodologia.
Muitos argumentos econômicos, especialmente os de natureza econométrica, típicos da corrente intelectual econômica dominante, são equivocados não por serem supostamente superficiais, mas porque são construídos por intermédio de métodos analíticos não respeitáveis ao caráter ontologicamente mais substantivo do objeto de estudo da ciência econômica e das ciências sociais: o agente homem.
Primeiramente, cabe indagar: “Deve a economia usar os métodos da física ou da química?”. Para a Escola Austríaca a resposta é um bombástico “Não!”, e perceba, agora, leitor, que o repúdio à Escola Austríaca nos centros acadêmico-universitários procede precisamente da sua resposta a essa indagação.
Carl Menger publicou, no século XIX, Investigations into the Methods of the Social Sciences no qual verificava brilhantemente que os métodos experimentais das ciências naturais eram completamente inadequados à economia, já que esta tem por objeto de estudo o homem enquanto agente, dotado de preferências espacial e temporalmente distintas e inconstantes. Isto é, Menger frisava que a experimentação é totalmente cabível ao conhecimento da natureza dos constituintes orgânicos da matéria, uma vez que a mesma é imutável no tempo e no espaço, o que, porém, não é o caso do homem enquanto agente detentor de preferências casuais, extremamente particulares e inconstantes. Presume-me, em decorrência disso, a possibilidade de se efetuar previsões detalhadas e empiricamente verificáveis acerca de eventos futuros relativamente à água, por exemplo, já que também se presume a sua inalterabilidade espacial-temporal. Porém, o que dizer das preferências humanas? O que dizer das preferências dos australianos, dos mexicanos, dos espanhóis, dos russos, dos peruanos? Elas são constantes? Se algum economista registra estatisticamente, na Nova Zelândia, uma queda de 40% no consumo de geladeiras após um aumento de 79,41% na oferta monetária, o mesmo economista poderá supor logicamente disso que o fator causal que estimulou tal queda no consumo de geladeiras na Nova Zelândia será conservado no Brasil? Pode tal economista supor que tal queda será constante? Pode tal economista supor que se a oferta monetária aumentasse apenas 50% a queda no consumo de geladeiras seria de apenas 25,18% em função da proporção anteriormente averiguada? São as preferências humanas inalteráveis? São previsíveis? O uso de experimentações, nas ciências sociais e econômicas, não seria efetivamente nada mais que uma forma rechaçável e redondamente irracional de ciganismo metodológico? Além disso, se o economista pode possivelmente prever que certa porção de dada população agirá de determinada maneira, por que não poderia prever a ação de cada pessoa individualmente? Se o economista pode prever, por exemplo, as escolhas de um grande número de pessoas relativamente ao consumo, o que efetivamente o impediria de ler a mão de um indivíduo e esclarecer o seu futuro ao mesmo? Seria isto científico?
Podemos derivar leis físico-químicas constantemente imperantes da água (H2O), por exemplo, por ser, se puro, um elemento químico cujas propriedades são imutáveis e constantes. Se algum químico efetuar um experimento relativamente à água e apontar resultados não compatíveis com os que apontou outro químico no mesmo experimento, sabe-se de antemão que um dos dois químicos se equivocou, ou por ter descrevido incorretamente o experimento efetuado não notando todas as variáveis atuantes, ou por não ter descrevido muito corretamente os resultados totais obtidos. Mas, perante isso, como identificar todas as variáveis atuantes na decisão de uma pessoa? Como poder asseverar incontestavelmente que tais variáveis não são inconstantes?
A metodologia austríaca, por simplesmente apontar tais problemas, frustra amargamente os intentos cientificistas e positivistas dos economistas modernos da corrente dominante. Teoria e História, de Mises, não é um livro muito conhecido nem pelos que se declaram misesianos, mas a sua leitura é absolutamente imprescindível à sistematização do que até agora expôs-se.
O positivismo, enquanto vertente epistemológica, afirma que todo conhecimento válido provém do método científico (experimentação).
Conde de Saint-Simon e Auguste Comte extrapolavam o método observacional-experimental das ciências físicas para o que ainda viria a ser as ciências sociais.
Comte foi o que inaugurou a utilização do termo sociologia visando pretensamente fundar uma Física da sociedade, um método cientificamente justificável pelo emprego do qual fosse possível o estabelecimento de leis sociais indiscutíveis segundo a lógica universalista da mecânica newtoniana.
Já Saint-Simon, sendo um pré-marxista sócio-construtivista, por assim dizer, versava que a sociedade perfeita viria irreversivelmente à existência concreta mediante a planificação e direção estatal conduzida por cientistas.
A proposta de uma organização central e coercitiva da sociedade foi determinante à fundação do socialismo de face marxista (comunismo ou, mais especificamente, socialismo científico), uma vez que Marx não visava propor um sistema socialista tendo por base considerações idealistas (utopistas), mas propositou diligentemente parecer basear-se numa suposta mecânica material histórico-dialética da sociedade (materialismo histórico-dialético), segundo o qual é totalmente possível determinar o rumo da sociedade pela observação analítica das tendências históricas e dialéticas da sociedade, como se os componentes da sociedade compusessem figuradamente, na realidade, um grande rio cujo fluxo já estivesse predeterminado pelas leis físicas da matéria. Por essa razão, Marx sentiu-se na obrigação de realizar uma análise ampla, científica e criteriosa da sociedade capitalista, pois, segundo a sua filosofia, somente pela observação histórica do aspecto dialético (mecânico) da sociedade enquanto tal podia-se determinar irrefutavelmente o rumo que tomaria a sociedade.
O positivismo econômico, por sua vez, foi consolidado pelo Círculo de Viena, que apresentava a ciência econômica comumente como uma busca de relações constantes entre distintos elementos mecânicos, pelo esclarecimento das quais, alegava-se, era completamente permissível a elaboração de fórmulas matemáticas direcionadas à resolução de problemas concretos.
Mas, ante isso, então, o que é a economia para a Escola Austríaca?
Para Mises, é a ciência geral da ação humana, a praxeologia. Porém, que tipo de ciência é esta? É uma fática axiomático-dedutiva. Diferenciemos esta das demais.
Epistemologicamente, para fins puramente classificatórios, divide-se as ciências em fáticas e formais. As fáticas estudam, hipotético-dedutivamente, os objetos reais com juízos sintéticos ou, em outras palavras, são as ciências naturais, observacionais e experimentais. Já as formais estudam, axiomático-dedutivamente, os objetos da razão com juízos analíticos, ou, em outras palavras, são as ciências lógicas e matemáticas.
A ciência da praxeologia costuma não ser bem-vinda nos centros acadêmicos, visto que é uma singular espécie de ciência híbrida em meio a tais classificações. Ela, afinal, tem por objeto de estudo elementos tangíveis da existência humana, e, definitivamente, não é experimental, mas dedutiva, isto é, independe operacionalmente da formulação de hipóteses e da experimentação continuada. Obviamente, por esse motivo, é acusada de ser uma pseudociência já que a sua aceitação naturalmente enfraqueceria o caráter demasiadissimamente científico do positivismo enquanto vertente epistemológica.
O método austríaco, singularmente, começa nas implicações formais da ação humana, e acerca destas vão sendo deduzidas consequências lógicas a partir das quais as leis econômicas são estabelecidas.
O primeiro axioma descritivo fundamental da ação humana está implícito no conceito de ação e expressa-se normalmente da seguinte forma: “A ação é um comportamento consciente, uma vontade transformada em atuação cuja pretensão é necessariamente relativa ao alcance de fins pelo emprego de meios.”. Outro: “O homem, ao agir, objetiva substituir um estado menos satisfatório por outro mais satisfatório”. Deste decorre este: “Será sempre não utilitário algo que obriga a ação do indivíduo, já que este não decidirá agir apenas quando estiver plenamente satisfeito com seu estado situacional atual, o que implica que obrigá-lo violentamente a agir o poria num estado situacional comparativamente menos satisfatório que o anterior”.
Estes axiomas estão mais amplamente expostos em Ação Humana, a magnus opus misesiana.
Temos, pois, como axioma central que a ação humana, absolutamente, nada é senão a concretização da vontade humana de se passar de uma situação menos satisfatória para outra mais satisfatória. Deste axioma alguns teoremas são logicamente postulados como: “Os meios que são empregados para a satisfação das necessidades humanas são escassos, posto que, do contrário, o homem não teria de suplantar nenhuma necessidade e a ação enquanto tal inexistiria completamente”; ou “Toda ação implica em valoração, na qual o agente homem valora mais a situação lograda que a que deixou de lograr-se alternativamente”; ou “Toda ação implica na utilização efetiva de meios postos à satisfação das necessidades humanas mais prioritárias, já que à suplantação das quais o homem atribui subjetivamente um valor superior ao que é atribuído à suplantação das demais”; ou “O agente homem sempre buscará empregar meios mais efetivos ao alcance do fim que meios comparavelmente menos efetivos”; etc. etc.
Como percebe-se, a clarificação de tais teoremas e de suas consequências é bastante exaustiva, porém é inegavelmente indispensável ao entendimento mais esmerado dos fenômenos econômicos, do mercado, da formação dos preços, da taxa de juros, de como é criada a riqueza, etc..
A Escola Austríaca, em suma, não pretende aplicar politicamente um dado modelo de economia como pretende muitas escolas, mas se limita à defesa de um esquema lógico cujo emprego analítico torna possível o entendimento da fenomenologia econômica conforme teoremas sinteticamente extraídos do conceito puro de ação humana. Por esse motivo, é incorreto afirmar que a Escola Austríaca, enquanto escola econômica, é libertária, no entanto, muitos são induzidos a afirmar isso em razão de a maioria dos componentes teóricos da Escola Austríaca ter chegado a conclusões explicitamente desfavoráveis às intervenções governamentais e, mais notadamente, à existência do estado.
Há, também, alguns elementos bastante representativos da análise econômica austríaca. Dentre eles, dois se destacam: o individualismo metodológico e a invalidação da econometria estatística.
Menger, em Princípios de Economia Política, mais notoriamente, assevera categoricamente que a análise de qualquer fenômeno social deve partir da sua unidade elementar mais substancial: a ação individual ou a ação de um grupo de indivíduos, sem fazer referência à ação de um suposto coletivo com consciência e autonomia próprias existencialmente independente da ação dos seus membros, o que implica que são inteiramente descartáveis as análises sociológicas baseadas em tendências irrevogáveis de coletivos, raças, etnias ou classes.
Quanto à invalidação da econometria estatística, temos algo a esclarecer. Não é correto afirmar que a Escola Austríaca rechaça intransigentemente a utilização de estatísticas. A Escola Austríaca admite que elas são extremamente úteis à elucidação de dados históricos relativamente à economia de uma nação ou ao marketing empresarial, entretanto é evidente que são completamente inaptas ao estabelecimento de teorias econômicas gerais. Os dados estatísticos descrevem exclusivamente uma situação singular num tempo e lugar específicos na qual diversos indivíduos atuaram intersubjetivamente de modo que cada faceta do resultado visível dessas ações e interações corresponde a um dado estatístico, necessariamente inconstante já que os indivíduos agem geralmente de maneira não prognosticável ou previsível. Além disso, cabe notar que não se pode isolar os fenômenos econômicos. Como poder isolar inúmeros indivíduos para analisá-los? Como mantê-los inalteráveis de forma que sejam constantes as inumeráveis variáveis que os fazem valorar e agir? Como?!
Os dados estatísticos, portanto, carecem substantivamente de capacidades preditivas porque as circunstâncias conjunturais que descrevem e as valorações dos indivíduos acerca destas circunstâncias mesmas modificam-se continuamente. Ao contrário das ciências naturais, não podemos assumir em matéria econômica uma uniformidade invariável na concatenação e na sucessão dos fenômenos econômicos. Por essa razão, os modelos econométricos fundados em dados estatísticos são descartados teoricamente pelos economistas austríacos.
Esse debate faz manifestar a parte mais controversa da Escola Austríaca e, mais profundamente, os diversos problemas epistemológicos resultantes dele.
Afinal, pode uma proposição não testificada empiricamente ser válida? Frente à proposição que afirma que todo conhecimento válido deve ser testado e verificado empiricamente deveria surgir várias incógnitas. Afinal, essa proposição foi testada e verificada empiricamente? Prova-se empiricamente que toda verdade emana da consecução de experiências? A proposição todo conhecimento válido deve ser testado e verificado empiricamente está baseada em conhecimentos não necessariamente oriundos de experimentações? E se existem, então, conhecimentos válidos não necessariamente baseados em experimentações, isto por si só não contraditaria dramaticamente a posição inicial?
Estas foram algumas das muitas perguntas realizadas por H. H. Hoppe em Ciência Econômica e Método Austríaco, outro livro fundamental que não é muito conhecido tampouco pelos que se declaram hoppeanos.
E, embora não seja citado como deveria no Brasil, Hayek, especialmente na Espanha, é estudado não por suas teorias econômicas, mas por suas teorias sociológicas, que seguem o mesmo rumo das de Menger, a sua maior inspiração.
Em muitas ocasiões encontramos modelos econômicos procedentes de estatísticas ou de formalismos matemáticos que, teoricamente, são ilógicos, e que, preocupantemente, não possuem implicações apenas teoréticas, porém, também, políticas e legais, já que tratam a economia meramente como um jogo de experimentos de prova e erro.
Quantas milhões de pessoas foram mortas pelos planificadores que, por arrogância fatal, como diria Hayek, testaram na economia os seus modelos de miséria ignorantemente à natureza da ação humana?
Muitos “economistas” reduzem a ação humana a um emaranhado tacanho de equações convenientemente propondo como solução aos dilemas econômicos uma distopia totalitária que cada vez se mostra como uma.
Jovem brilhante, muito bom artigo, parabéns.