[Este artigo é uma crítica à palestra de Juan Ramón Rallo intitulada “Anarquismo ou Minarquismo?”.]
Rallo acredita que o libertarianismo se baseia na “ética do princípio da não agressão”?
Os anarquistas se baseiam na “ética da propriedade privada”.
Os anarquistas falam de propriedade privada. E não estou falando dos anarquistas supostamente hayekianos, nem dos anarquistas friedmanianos, estou falando dos anarquistas como o da foto que Rallo colocou no início de sua exposição (da qual ele nunca disse nada no final).
É um erro falar do princípio da não-agressão porque isso leva a muitos becos sem saída (a palestra de Rallo está cheia deles). Os livros de Hans-Hermann Hoppe e Murray Rothbard falam apenas do princípio da não-agressão (PNA)? Não, eles falam em “propriedade privada”. Esclareçamos que Rothbard fala do PNA como uma forma popular de libertarianismo, mas seu fundamento é a propriedade privada.
Se não se tem uma teoria da propriedade privada, não se sabe quando algo é roubo (na palestra Rallo se pergunta se roubar por necessidade é roubo…). Algo é roubo quando é tirado do legítimo dono, o apropriador original. (E a teoria da propriedade privada não para em Locke, como Rallo parece sugerir na palestra.)
Rallo não sabe até que ponto algo é agressão. Mas isso já foi explicado pela abordagem fisicalista-materialista da teoria da propriedade dos anarcocapitalistas. Os limites têm que ser físicos porque, se não fossem, o sistema jurídico seria completamente instável. Imagine que eu vou ao juiz e digo a ele “bota o gay na cadeia porque ele me dá dor de cabeça”. Mesmo que me desse dor de cabeça (e uma tomografia cerebral verificasse), o que aconteceria se o juiz colocasse o gay na prisão? Se essa regra se generalizasse, geraria o caos: todos acabariam na cadeia por capricho dos demais. E a lei não funcionaria, não facilitaria as ações humanas, as trocas e a vida em paz. Evolutivamente falando, uma sociedade com tais leis não progrediria, a troca diminuiria e o sistema jurídico de outra sociedade que não cometesse esse erro prevaleceria.
Todos os becos sem saída em que Rallo se mete são resolvidos se ele os analisar a partir de uma abordagem da propriedade privada e não do PNA (a do robô, das crianças, dos deficientes, da difamação, etc; sobre tudo isso já foi muito escrito com base na propriedade privada anarquista). A questão de Rallo sobre se os animais têm direitos também é esclarecida pela teoria da propriedade (o que faz um ser humano ter propriedade privada?).
Rallo começa sua palestra falando sobre anarquismo filosófico e anarquismo político, e arbitrariamente os define como “doutrina contra a soberania do Estado”, e “doutrina que defende o desaparecimento do Estado”. Essas definições dadas por Rallo ignoram completamente a teoria da propriedade privada. Os anarquistas querem derrubar o Estado apenas por derrubá-lo? Derrubar o Estado é uma consequência da teoria da propriedade privada. Tudo está ancorado na teoria da propriedade privada. Locke não disse “vamos criar um Estado minarquista para minimizar o Estado”.
Aqui Rallo poderia dizer “há muitas opiniões sobre a propriedade privada e todas elas são respeitáveis”. Não. O que Rallo diz equivale a dizer que várias ideias que se contradizem estão todas corretas ao mesmo tempo, e não é bem assim. Quando um debate com outro, de forma honesta, quem ganha é quem demonstra as contradições da teoria do outro. E quem perde tem que ser honesto e aceitar suas contradições.
Claro, isso implica primeiro um tipo de mente que procura encontrar as contradições, e partir de um ponto claro. E isso não é algo perceptível no raciocínio de Rallo. O que digo não é nada pessoal contra o Rallo. No mundo das ideias existem dois tipos de mentes. Mentes que partem de pontos estabelecidos que tentam demonstrar não contraditórios (Mises, por exemplo). E mentes um tanto caóticas em que centenas de ideias não encontram conexão ou ponto de partida. Pior ainda, há vários loucos que negam a lógica e, assim, negam a possibilidade de os homens concordarem (polilogismo).
A teoria anarquista da propriedade, para quem se interessou em lê-la, tem um ponto de partida (que eles tentam demonstrar não contraditório) e depois constroem tudo a partir desse ponto. Portanto, não é uma opinião simples. Rallo expressou em várias ocasiões que não acredita na teoria de Hoppe, mas até agora não nos mostrou onde está a contradição.
E para concluir esta seção: dado que Rallo carece de uma teoria da propriedade, é claro que ele conclui: “O PNA é insuficiente para resolver o problema social”.
Rallo quer detalhes
E se eles não lhe dão detalhes, então não há anarquismo.
Rallo se pergunta que nível de ruído é agressão; ele quer que lhe digam quantos decibéis serão permitidos no anarquismo, caso contrário o anarquismo não funciona. Não é o caso. A lei é um princípio geral, e então casos específicos são trabalhados sobre o tema, que pode mudar de sociedade para sociedade. Há sociedades que suportam muito barulho e há outras que não. Embora o princípio possa ser o mesmo, o nível de decibéis aceito pode muito bem ser diferente.
Parece que Rallo disse: “Por roubar um carro em uma sociedade anarquista, quanto tempo eles te colocam na prisão? Você vê que ninguém concorda”. Isso é “descoberto” de sociedade para sociedade. Hoje, quando os governos aprovam leis, a lei sozinha não faz nada, ela tem que ser atribuída a um grupo para sua aplicação e implementação. Eles determinam os detalhes. Seria o mesmo em uma empresa privada.
Neste ponto, Rallo diz: “uma vez que os detalhes não podem ser especificados, então o poder é dado a um monopólio para determinar os detalhes”. E isso é um non sequitur. O fato de os pormenores, ao nível da lei geral, não poderem ser especificados, não significa que não possam ser resolvidos por vários tribunais privados; não é necessário que se crie um monopólio para determinar os pormenores.
Todo o raciocínio de Rallo se confunde com uma suposta teoria dos bens públicos
Seu raciocínio é o seguinte:
- Devido à existência de free riders, é preciso que haja uma agência que os faça pagar pelo bem que recebem, porque se não pagarem, então o bem não é produzido.
Não é bem assim. O bem pode ser produzido mesmo com a existência de free riders. Isso já acontece na realidade. Há mineradoras que, para chegar às montanhas para garimpar minérios, constroem suas próprias estradas e deixam que as pessoas pobres das pequenas cidades ao longo do caminho usem as estradas gratuitamente. As mineradoras nem se dão ao trabalho de fazê-las pagar. Assim, desde que o benefício seja maior que o custo, grandes empresas privadas, pessoas ricas, podem muito bem pagar pela segurança mesmo com free riders.
Digamos que o free rider, mesmo tendo dinheiro, não queira colaborar na manutenção do exército. No início tudo corre bem, mas se o risco aumenta, então é do seu interesse começar a colaborar com algo. Ou se por algum motivo o free rider perceber que os pagadores não o protegerão em caso de invasão (eles irão excluí-lo), então ele tem que começar a contribuir. Assim, o bem público pode muito bem ser produzido mesmo que haja free riders. E que é preciso um Estado para cobrar contribuições deles pela força é um non sequitur.
No caso extremo, imaginemos que 70% não queiram contribuir voluntariamente para a construção de estradas. Bem, não há estrada. Subjetivamente, as pessoas valorizam mais o dinheiro do que a estrada. Neste momento, Rallo diz: “Não! Tem de haver uma estrada!” (soa como um planejador central).
(Os anarquistas já escreveram sobre bens públicos)
Rallo se pergunta se um tapinha nas costas é agressão. Isso depende da intenção. Os juízes estatais hoje buscam provas sobre isso, e os juízes em um sistema privado teriam que resolver a mesma questão também.
Os equilíbrios de Nash em jogos repetitivos estão mudando. Em todos os jogos que se seguem, os agentes podem aprender com o passado. Eles têm mais informações. Um exemplo de um equilíbrio de Nash abaixo do ideal são as estradas que cortam as curvas. Digamos que o governo construa uma estrada para as pessoas economizarem tempo, mas todas as pessoas percebem que quando começam a usar essa estrada, a estrada fica lenta e todo mundo se prejudica. Cada indivíduo que busca seu próprio benefício chega a uma situação pior. Se fosse um jogo único, a situação fica assim. Mas o que acontece se os agentes repetirem o jogo e tiverem informações sobre o que aconteceu ontem? Eles aprenderão que é melhor não seguir esse caminho. As pessoas aprendem com seus erros e com os erros de seus vizinhos. Para chegar ao equilíbrio de Nash no anarquismo é preciso “informação” (costumes, ideologia).
Então, o que Rallo parece dizer que o anarquismo não é um jogo estável não é exatamente assim, isso depende da ideologia. (O papel da ideologia é explicado abaixo.)
Sobre o ótimo de Pareto, Hulsmann (baseado em Rothbard) explicou que há uma situação em que nenhum indivíduo pode melhorar sem que outro piore: todas as trocas têm que ser voluntárias. Se um ladrão melhora sua situação, ele o faz à custa de piorar a situação de outro.
O anarquismo é viável?
Rallo começa por fazer uma distinção arbitrária, a seu gosto, entre anarquismo filosófico e anarquismo político, e deixa completamente de lado a economia do anarquismo. E a análise do anarquismo pode muito bem começar pela economia. Assim, Rallo deixa de fora uma questão muito importante: pode haver um mercado para serviços de segurança e um mercado para serviços judiciais? É possível, ou é algo para o qual deve haver necessariamente um ditador que rouba? Bem, se há uma demanda pelo serviço, e pessoas dispostas a oferecê-lo, então há um mercado. Rallo, pelo menos na forma teórica, não pode negar isso. E então, como todo economista entende, a concorrência produz melhores serviços do que o monopólio. Rallo também não pode negar isso. Assim, pelo menos em termos econômicos, Rallo tem que aceitar que um mercado concorrente produziria melhores serviços do que o monopólio público (mesmo com free riders). Isso é praxeologia. (Mas ei, já sabemos que Rallo não é um praxeologista). A mesma análise que se aplica ao resto dos mercados tem de ser aplicada ao mercado dos serviços de segurança e justiça.
Mas, como dissemos, isso é “teoria”. Agora, como Rallo não é um praxeologista, ele não consegue fazer a importante distinção entre “teoria e história” (ele menciona teoria e história em uma parte de sua apresentação, mas não tem nada a ver com o que Mises estava dizendo). Mises separa o que acontece no mundo real em dois campos, um campo da teoria e um campo da história. Já descrevemos a teoria: mercados para serviços de segurança e justiça podem existir. Mas Mises entende que na sociedade real existem outros fatores que determinam os fenômenos sociais. Mises agrupa todos esses fatores em “história” (fatores ideológicos, costumes, religiões, psicologia de massas, etc.). Fatores ideológicos podem anular um mercado? Sim. Há exemplos de mercados que não existem: na Índia não há mercado para a carne bovina; nas sociedades muçulmanas não há mercado para a carne de porco. Por que? Por fatores ideológicos (a religião proíbe). Essa é a parte da “história”. Portanto, se teoricamente existem mercados de segurança e justiça, o que precisa ser encontrado são os fatores ideológicos e sociais que podem viabilizar esses mercados. É isso que os anarquistas estão fazendo agora: analisar as condições sociológicas e ideológicas que podem possibilitar o funcionamento desses mercados.
Para que o anarquismo exista, tem de haver ideologia, caso contrário é impossível. Ou seja, teoria e história têm que andar de mãos dadas. Se você já tem a teoria, o que falta é o fator história. Tem que haver uma ideologia da propriedade privada. Para que o anarquismo funcione, o libertarianismo tem que ser uma ideologia generalizada. Deve ser algo parecido com a religião daquela área. E para que esse anarquismo perdure no tempo, os valores têm que ser transmitidos fortemente de geração em geração. Assim como a religião no Irã (eles mantiveram sua ideologia por séculos, e sua ideologia ainda é forte).
Como alcançar uma ideologia forte? Existem diferentes alternativas. Uma pode ser tentar catequizar os socialistas para que eles se tornem libertários, e outro caminho pode ser tentar reunir os libertários em zonas específicas, separando-os dos socialistas. Se isso for alcançado, então o fator ideologia é alcançado, e a estabilidade é alcançada ao longo do tempo.
Resumindo:
- A exposição de Rallo é baseada no PNA, e isso é incorreto.
- A exposição de Rallo é baseada em sua teoria dos bens públicos, e isso é cheio de non sequitur.
- A exposição de Rallo ignora completamente o anarquismo de propriedade privada (que é o único anarquismo que realmente existe) (sem contar Friedman).
- A exposição de Rallo não faz distinção entre teoria e história. Ignora completamente a economia do anarquismo. E ignora o fator ideológico necessário para que o anarquismo funcione. (Mas é claro que, neste ponto, resta saber se Rallo acredita que a distinção “teoria-história” faz sentido ou se ele acredita que ela serve a algum propósito).
Muito bom esse artigo.
“O que Rallo diz equivale a dizer que várias ideias que se contradizem estão todas corretas ao mesmo tempo, e não é bem assim. Quando um debate com outro, de forma honesta, quem ganha é quem demonstra as contradições da teoria do outro.”
De fato, perdeu-se o ambiente de questão disputada. A verdade não pode conviver com o erro, pois necessariamente tornaria a verdade o erro. Pois as pessoas ao aceitarem o erro, “votam” e assim a verdade pode ser errada dependendo do número de pessoas que a aceitam. Isso é a tragédia da maioria.