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A grande depressão americana

Capítulo V – A consequência da inflação

V – O desenvolvimento da inflaçãoVimos como os principais fatores das mudanças nas reservas desempenharam seus papéis durante o boom da década de 1920. A Moeda do Tesouro desempenhou um papel considerável nos primeiros anos, graças à política de compra de prata herdada do governo Wilson. O Federal Reserve, quebrando a tradição dos bancos centrais, incentivou as Notas Descontadas ao manter as taxas de redesconto abaixo do mercado. As aceitações foram subsidiadas de modo vil: o Federal Reserve deliberadamente manteve as taxas de aceitação muito baixas e comprou todas as Aceitações oferecidas a essa taxa barata por poucas grandes casas de aceitações. A compra em mercado aberto dos títulos do governo nasceu como meio de aumentar os ativos com rendimentos dos bancos do Federal Reserve, mas logo foi continuada como meio de promover a expansão monetária. Agora podemos nos voltar à anatomia da inflação na década de 1920, a uma discussão genética do curso efetivo do boom, incluindo uma investigação de algumas das razões da política inflacionária.

 

Empréstimos ao estrangeiro

A primeira irrupção inflacionária, entre o fim de 1921 e o começo de 1922 — o começo do boom — foi puxada, como podemos ver na Tabela 7, pelas compras de títulos do governo por parte do Federal Reserve. Premeditado ou não, o efeito foi bem-vindo. A inflação foi promovida por um desejo de rápida recuperação da recessão de 1920—1921. Em julho de 1921, o Federal Reserve anunciou que ofereceria mais crédito para a colheita e para a agricultura, em qualquer quantidade que fosse legitimamente demandada. Logo o secretário Mellon estava propondo em privado que a economia fosse ainda mais estimulada pelo dinheiro barato.[1]

Um outro motivo da inflação que veremos repetir-se como fator crucial e constante na década de 1920 foi o desejo de ajudar os governos estrangeiros e os exportadores americanos (especialmente na agricultura). O processo funcionava da seguinte maneira: a inflação e o crédito barato nos Estados Unidos estimulavam a concessão de empréstimos ao estrangeiro nos EUA. Um dos principais motivos de Benjamin Strong para as compras em mercado aberto em 1921—1922 foi estimular os empréstimos ao estrangeiro. A inflação também ajudou a frear o influxo de ouro da Europa e de outros continentes, influxo esse causado pela inflação de moeda fiduciária de curso forçado nos países estrangeiros, que expulsou o ouro ao elevar os preços e ao reduzir as taxas de juros. O estímulo artificial aos empréstimos ao estrangeiro nos EUA também ajudou a aumentar ou a manter a demanda estrangeira pelas exportações agrícolas americanas.

O primeiro grande boom dos empréstimos estrangeiros coincidiu portanto com a inflação do Federal Reserve do fim de 1921 e do começo de 1922. A queda em rendimentos de títulos durante essa época estimulou uma onda de empréstimos estrangeiros: os rendimentos de títulos do governo dos Estados Unidos caíram de 5,27% em junho de 1921 para 4,24% em junho de 1922 (os títulos corporativos caíram de 7,27% para 5,92% no mesmo período). As emissões de títulos estrangeiros, cerca de US$ 100 milhões por trimestre-ano durante 1920, duplicaram para cerca de US$ 200 milhões por trimestre no fim de 1921. Esse boom teve a contribuição de “um dilúvio de declarações de fontes do governo, da indústria e do setor bancário enunciando a necessidade econômica dos Estados Unidos de emprestar ao estrangeiro”[2].

A inflação de 1921—1922, em suma, foi promovida a fim de aliviar a recessão, de estimular a produção e a atividade econômica, e de ajudar a agricultura e o mercado de empréstimos ao estrangeiro.

Na primavera de 1923, o Federal Reserve passou a restringir o crédito em vez de expandi-lo, como anteriormente, mas a restrição foi muito enfraquecida por um aumento nos descontos do Reserve, incentivados porque a taxa de redesconto estava abaixo do mercado. Mesmo assim, seguiu-se uma recessão branda, que continuou até meados de 1924. Os rendimentos de títulos subiram levemente, e os empréstimos ao estrangeiro caíram consideravelmente, ficando abaixo de uma taxa de cem milhões de dólares por trimestre durante 1923. Ficaram particularmente deprimidas as exportações agrícolas americanas para a Europa. Certamente parte dessa queda foi causada pela Tarifa Fordney—McCumber de setembro de 1922, que se afastou muito da tarifa razoavelmente baixa do partido Democrata e se aproximou de uma política cada vez mais protecionista.[3] A proteção maior contra os bens manufaturados europeus deu um golpe na indústria europeia, e também serviu para manter a demanda europeia por bens americanos abaixo de que teria sido sem interferência governamental.

A fim de oferecer aos países estrangeiros os dólares necessários para comprar exportações americanas, o governo dos Estados Unidos decidiu não, como seria sensato, reduzir as tarifas, e sim promover o dinheiro barato domesticamente, estimulando assim os empréstimos estrangeiros e freando o influxo de ouro do exterior. Por conseguinte, a retomada da inflação americana em grande escala em 1924 deu início a um boom de empréstimos estrangeiros, que atingiram um pico em meados de 1928. Isso também fez com que o comércio americano se estabelecesse não sobre uma base sólida de trocas recíprocas e produtivas, mas numa promoção febril de empréstimos que depois se mostraram insustentáveis.[4] Os países estrangeiros encontravam dificuldades para vender seus bens aos Estados Unidos, mas eram incentivados a fazer empréstimos em dólar. Mas, depois, eles não podiam vender bens para pagar os empréstimos; eles só podiam tentar pegar mais dólares num ritmo acelerado para pagá-los. Assim, de maneira indireta mas ainda assim evidente, a política protecionista americana deve arcar com parte da responsabilidade por nossa política inflacionária da década de 1920.

Quem foi beneficiado e quem foi prejudicado pela política de proteção & inflação, praticada no lugar da alternativa racional de livre comércio e moeda forte? Certamente a maioria da população americana foi prejudicada, tanto como consumidores de importações como quanto vítimas da inflação e do baixo crédito estrangeiro, e, depois, da depressão. Foram beneficiadas as indústrias protegidas pela tarifa, as indústrias de exportações subsidiadas de maneira não-econômica pelos empréstimos estrangeiros, e os banqueiros de investimentos que emitiam os títulos estrangeiros recebendo gordas comissões. Certamente a acusação do professor F. W. Fetter à política econômica exterior da década de 1920 não era exagerada:

Nós “cuidamos” dos produtores daquelas áreas em que os estrangeiros competiam conosco com tarifas altas, e com promessas de que a Comissão de Tarifas aplicaria tarifas ainda mais altas se “necessário”, e os interessados no comércio exterior ouviram que o Departamento de Comércio iria abrir imensos mercados estrangeiros. Os empréstimos estrangeiros foram louvados pelos mesmos líderes políticos que queriam restrições cada vez maiores ao crédito, ignorando totalmente os problemas envolvidos no pagamento desses empréstimos… Um volume tremendo de empréstimos estrangeiros possibilitou exportações muito maiores do que as importações… e o secretário Mellon e outros defensores dessa política de tarifas apontaram o dedo para ridicularizar aqueles que haviam profetizado que a Lei Fordney—McCumber teria um efeito prejudicial a nosso comércio exterior.[5]

O governo Republicano, tantas vezes equivocadamente visto como um governo “laissez-faire”, na verdade interferiu ativamente nos empréstimos estrangeiros durante a década de 1920. Os empréstimos estrangeiros eram raros nos EUA antes da Primeira Guerra Mundial, e o governo dos Estados Unidos não tinha autoridade legal para, em tempos de paz, interferir neles de modo algum. E mesmo assim o governo interferiu, ainda que fosse ilegal. Instigados por Hoover, secretário de comércio, o presidente Harding e seu gabinete realizaram, em 25 de maio de 1921, um encontro com diversos banqueiros de investimento americanos, e Harding pediu para ser avisado previamente de todas as emissões públicas de títulos estrangeiros, para que o governo “pudesse pronunciar-se a seu respeito”[6]. Os banqueiros concordaram. As condições dessa interferência haviam sido preparadas numa reunião do gabinete cinco dias antes, em que:

O gabinete discutiu o problema de favorecer as exportações, e como era desejável a aplicação dos lucros dos empréstimos estrangeiros em nossos próprios mercados financeiros para fins de exportação de nossas commodities.[7]

Em suma, o gabinete queria que os bancos que emitissem títulos estrangeiros garantissem que parte dos lucros fossem gastos nos Estados Unidos. E Herbert Hoover estava tão entusiasmado com o subsídio aos empréstimos estrangeiros que comentou que até os empréstimos insustentáveis ajudavam as exportações americanas e assim ofereciam uma forma barata de alívio e de emprego — uma forma “barata” que depois trouxe custosas inadimplências e problemas financeiros.[8]

Em janeiro de 1922, o secretário de comércio Hoover fez com que os banqueiros americanos de investimentos aceitassem que agentes do Departamento de Comércio primeiro investigassem as condições dos países que pediam empréstimos estrangeiros, fossem os mutuários agentes privados ou públicos. O candidato teria de prometer também comprar matérias-primas nos Estados Unidos, e o cumprimento desse acordo seria inspecionado pelo adido comercial americano no país mutuário. Felizmente esse acordo não deu em quase nada. Nesse ínterim, o pedido de Harding foi ignorado repetidas vezes, e por isso o Departamento de Estado enviou uma circular aos banqueiros de investimentos em março de 1922 repetindo o pedido presidencial, admitindo que não havia maneira legal de obrigar a atendê-lo, mas dizendo pomposamente que os “interesses nacionais” exigiam que o Departamento de Estado fizesse suas objeções a qualquer emissão de títulos. Durante abril e maio, o secretário Hoover protestou contra a relutância dos banqueiros, e instou a que os bancos fossem ordenados a estabelecer as regras que desejava para os empréstimos estrangeiros, ou, do contrário, o Congresso assumiria o controle. Harding e Coolidge, porém, contentaram-se com uma forma muito mais branda de intimidação informal.

Muitas vezes o governo, quando questionado, negou qualquer tentativa de ditar os empréstimos estrangeiros. Mas o Departamento de Estado admitiu diversas vezes que estava exercendo um controle benéfico, e admitiu ter objetado contra certos empréstimos. A proibição mais notável foi aquela a todos os empréstimos à França, punição aplicada porque a França ainda estava em dívida com o governo americano. Foi uma proibição da qual os banqueiros muitas vezes conseguiam escapar. O secretário de estado Kellog defendeu uma regulamentação direta dos empréstimos estrangeiros, mas não a conseguiu.

Sabendo que o Departamento de Estado estava interferindo nos empréstimos estrangeiros, o público americano erroneamente começou a acreditar que todo empréstimo estrangeiro tinha o selo de aprovação do governo americano e portanto era uma boa compra. Isso, é claro, estimulou ainda mais os empréstimos imprudentes ao estrangeiro.

Os empréstimos estrangeiros da década de 1920 foram quase todos privados. Em 1922, porém, numa indicação de desenvolvimentos muito posteriores, o secretário de estado Hughes instou o Congresso a aprovar um empréstimo direto governamental de cinco milhões de dólares à Libéria, mas o Senado não o ratificou.

 

A ajuda à Inglaterra

A grande expansão de 1924 foi projetada não apenas para estimular os empréstimos a países estrangeiros, mas também para frear seus influxos de ouro para os Estados Unidos.[9] Esses influxos vinham, primariamente, das políticas inflacionárias dos países estrangeiros. A Grã-Bretanha, em particular, enfrentava um sério problema econômico. Ela se preparava para voltar ao padrão ouro na equivalência nominal de antes da guerra (em que uma libra esterlina valia aproximadamente US$ 4,87), mas isso significava retornar ao padrão ouro numa taxa de câmbio maior do que a taxa corrente de livre mercado. Em suma, a Grã-Bretanha insistia em voltar ao ouro num valor que era entre 10% e 20% maior do que a taxa corrente de câmbio, que refletia os resultados da guerra e da inflação do pós-guerra. Isso significava que os preços britânicos teriam de cair entre 10% e 20% para continuar competitivos em relação aos de outros países, e para manter seu comércio de exportações, sumamente importante. Mas essa queda não aconteceu, primariamente porque os sindicatos não permitiram a redução dos salários. Os salários reais subiram, e a Grã-Bretanha foi atacada pelo desemprego crônico em massa. Não se permitiu a contração do crédito, que era necessária para produzir a deflação, porque o desemprego pioraria ainda mais — desemprego esse causado em parte pela criação, no pós-guerra, do seguro-desemprego (que permitia que os sindicatos resistissem a quaisquer cortes salariais). O resultado foi que a Grã-Bretanha tendia a perder ouro. Em vez de acabar com o seguro-desemprego, de contrair o crédito e/ou voltar a uma paridade mais realista para o ouro, a Grã-Bretanha inflou sua oferta monetária para contrabalançar a perda de ouro e foi buscar ajuda nos Estados Unidos. Se o governo dos Estados Unidos inflasse a moeda americana, a Grã-Bretanha pararia de perder ouro para os Estados Unidos. Em suma, o público americano foi escolhido para arcar com o ônus da inflação e da recessão subsequente a fim de manter a vida com que o governo e os sindicatos ingleses teimavam em acostumar-se.[10]

O governo americano correu sem demora para ajudar a Grã-Bretanha. O “isolacionismo” da política exterior da década de 1920 é quase integralmente um mito, e isso vale particularmente para as questões econômicas e financeiras. A conferência de 1927 entre os principais banqueiros centrais que levou à inflação daquele ano ficou célebre; menos conhecido é o fato de que a colaboração entre Benjamin Strong, governador do Federal Reserve Bank de Nova York, e Montagu Norman, presidente do Banco da Inglaterra, havia começado muito antes. Quando Norman foi nomeado governador, durante a guerra, Strong logo prometeu-lhe seus serviços. Em 1920, Norman começou a fazer viagens anuais aos Estados Unidos para visitar Strong, e Strong periodicamente viajava à Europa. Todas essas consultas eram mantidas em forte segredo e eram sempre camufladas como “visitas entre amigos”, “férias” e “visitas de cortesia”. O Banco da Inglaterra nessas ocasiões dava a Strong uma mesa e uma secretária particular, assim como o Banco da França e o Reichsbank alemão. Essas consultas não entravam nos relatórios feitos ao Conselho do Federal Reserve em Washington.[11] Além disso, o Federal Reserve Bank de Nova York e o Banco da Inglaterra mantinham-se sempre próximos por meio de uma troca semanal de telegramas.

Como afirmou Charles Rist, eminente economista francês que representou o Banco da França em algumas das importantes conferências dos Bancos Centrais:

A ideia de cooperação entre os bancos centrais de diversos países a fim de chegar a uma política monetária comum nasceu logo depois da guerra. Antes disso, essa cooperação havia sido apenas excepcional e esporádica.[12]

Já em 1916 Strong havia iniciado relações por correspondência privada com o Banco da Inglaterra, e também com outros bancos centrais europeus. No verão de 1919, Strong já contemplava uma conferência secreta de banqueiros centrais, e, mais ainda, já preocupado porque as taxas de juros americanas eram mais altas do que as britânicas, e pensava em combinações com o Banco da Inglaterra que remediassem essa condição, prenunciando assim os acordos posteriores de causar inflação nos Estados Unidos para ajudar a Grã-Bretanha.[13] Em novembro de 1921, Strong ofereceu a Norman um esquema para a estabilização do dólar, no qual o Federal Reserve emprestaria dólares à Inglaterra, à Holanda, à Escandinávia, ao Japão e à Suíça; Norman, porém, recusou a proposta.[14]

Em 1925, ano em que a Grã-Bretanha retornou ao padrão ouro, os Estados Unidos ajudaram-na enormemente. Uma medida direta foi a oferta do Federal Reserve Bank de Nova York à Grã-Bretanha de uma linha de crédito para ouro de até US$ 200 milhões.[15] Ao mesmo tempo, a J. P. Morgan and Company autorizaram um crédito similar de US$ 100 milhões ao governo britânico, empréstimo esse que teria sido subsidiado (se algum dia fosse usado) pelo Federal Reserve. Ambos os empréstimos foram preparados por Strong e por Norman no começo de janeiro de 1925, e foram calorosamente aprovados por Mellon, secretário do Tesouro, pelo governador Crissinaer, e, unanimemente, pelo Conselho do Federal Reserve.[16] Linhas similares de crédito foram oferecidas para reforçar os bancos centrais da Bélgica (US$ 10 milhões em 1926), da Polônia (US$ 5 milhões em 1927) e da Itália (US$ 15 milhões em 1927).

Mais insidioso e prejudicial foi ajudar a Grã-Bretanha causando inflação nos EUA. A expansão de 1924 nos Estados Unidos foi muito mais do que uma coincidência com os preparativos da Grã-Bretanha para retornar ao ouro. Afinal, a libra esterlina havia caído para US$ 4,44 em meados de 1922, e em meados de 1924 ela estava em condição bem pior, a US$ 4,34. Àquela altura,

houve uma virada decisiva. Os preços americanos começaram a subir [por causa da inflação americana]. (…) Nos mercados de câmbio, havia a expectativa de um retorno ao ouro na antiga paridade. O câmbio libra-dólar subiu de US$ 4,34 para US$ 4,78. Na primavera de 1925, portanto, julgava-se que o ajuste entre os preços da libra e do ouro estava suficientemente próximo para justificar que se retomassem os pagamentos em ouro na antiga paridade.[17]

Fica claro que esse resultado foi causado deliberadamente por meio da expansão de crédito nos EUA a partir de uma carta de Strong para Mellon na primavera de 1924, que delineava a necessidade de subir os níveis de preços americanos em relação aos da Grã-Bretanha, e de reduzir as taxas de juros americanas a fim de permitir que a Grã-Bretanha voltasse ao ouro, porque níveis mais elevados de preços nos EUA desviariam os saldos de comércio exterior dos Estados Unidos para a Inglaterra, enquanto as taxas de juros mais baixas, analogamente, desviaram os saldos de capital. Como as taxas de juros mais baixas são um resultado mais imediato da expansão do crédito, elas receberam mais atenção. Strong concluiu sua carta da seguinte maneira:

o ônus desse reajuste tem de recair mais amplamente sobre nós do que sobre eles [a Grã-Bretanha]. Será mais difícil, política e socialmente, pedir ao governo britânico e ao Banco da Inglaterra que enfrentem uma liquidação de preços na Inglaterra… diante do fato de que seu comércio é pouco e que eles têm mais de um milhão de desempregados recebendo assistência.[18]

Está claro que, ao fim de 1924, o mercado de câmbio viu que os Estados Unidos estavam causando inflação a fim de ajudar a Grã-Bretanha, e, antecipando o sucesso, subiram a libra quase até seu valor nominal de antes da guerra — apreciação essa que foi causada pela ação do governo e não por realidades econômicas fundamentais. O Federal Reserve certamente manteve sua parte nessa barganha deveras unilateral. Se ao longo de 1922 e de 1923 a taxa de juros sobre notas em Nova York ficou acima da taxa em Londres, o Federal Reserve conseguiu empurrar essas taxas abaixo daquelas de Londres em meados de 1924. O resultado foi que o influxo de ouro para os Estados Unidos, 40% do qual vinha da Grã-Bretanha, foi por algum tempo freado.[19]Como vimos, os empréstimos estrangeiros dos EUA também foram fortemente estimulados, assim fornecendo à Europa fundos de prazo mais longo.

Medidas inflacionárias para ajudar governos estrangeiros também incentivaram as exportações agrícolas, já que os países estrangeiros agora podiam expandir suas compras de produtos agrícolas americanos. Os preços de produtos agrícolas subiram na segunda metade de 1924, e o valor das exportações agrícolas subiu mais de 20% em 1923—1924 para 1924—1925. Contudo, apesar de toda a ajuda, não podemos dizer que o setor agrícola  tenha se beneficiado particularmente das políticas econômicas exteriores da década de 1920 como um todo, uma vez que a tarifa protecionista prejudicava a demanda estrangeira por produtos americanos.

Em vez de ser gratos aos EUA por sua política monetária, a Europa choramingou o tempo inteiro durante a década de 1920 porque a inflação americana não era o bastante. Mesmo na íntima parceria entre Norman e Strong, fica claro que, sobretudo nos primeiros anos, Norman tentava repetidamente levar Strong a uma postura mais inflacionária. Na era 1919—1920, antes de a política inflacionária conjunta começar, Basil Blackett, colega de Norman no Tesouro, instou Strong a deixar os preços americanos “subir mais um pouquinho” — e isso no meio de um boom nos Estados Unidos do pós-guerra. Posteriormente, os britânicos instaram os EUA a afrouxar as condições do crédito, mas Strong passou esse período inicial deveras relutante.

Em fevereiro de 1922, Norman louvou a política de crédito fácil nos Estados Unidos durante os meses anteriores, e instou a uma nova queda inflacionária nas taxas de juros que fosse ao encontro da crescente expansão do crédito na Grã-Bretanha. Naquele momento, Strong recusou-se a inflacionar mais, e Norman continuou a castigar Strong em 1922 e em 1923 com expressões de desgosto porque os Estados Unidos não expandiam o crédito. Mas, em 1924, com a ajuda do canto de sereia da volta da Grã-Bretanha ao “padrão ouro” e por uma leve recessão doméstica, Strong capitulou, e assim em outubro Norman descontraidamente dizia a Strong: “Você tem de continuar com o dinheiro fácil e com os empréstimos estrangeiros e temos de ficar firmes até sabermos… qual será a política deste país”[20]. E, mesmo assim, Norman não ficou inteiramente satisfeito com seu servo americano. Em privado, ele se uniu à opinião europeia geral, que criticava os Estados Unidos por ter violado as supostas “regras do jogo do padrão ouro”, ao não inflar numa proporção múltipla à do ouro que corria para seus cofres.[21]

Esse argumento padrão, contudo, traz uma concepção inteiramente equivocada do papel e da função do padrão ouro e da responsabilidade do governo que o adota. O padrão ouro não é uma espécie de “jogo” a ser jogado por diversos países de acordo com “regras” míticas. O ouro é simplesmente o meio monetário, e o dever do governo é deixar que as pessoas tenham a liberdade de fazer com o ouro aquilo que quiserem. Segue-se portanto o dever de não inflar a reserva monetária além do estoque de ouro, e de não estimular nem incentivar essa inflação. Se a oferta monetária já está inflada, é responsabilidade do governo pelo menos não inflá-la ainda mais. Se o dinheiro deve ser deflacionado até voltar ao nível do ouro é uma questão mais complexa, que não nos cabe discutir aqui. Se o ouro entra num país, o governo deveria aproveitar a oportunidade de elevar as proporções de depósitos em ouro, e assim reduzir a proporção de moeda falsificada na oferta monetária da nação. Os países “perdem ouro” (como a fuga é voluntária, a “perda” não é verdadeira) em consequência de políticas inflacionárias dos governos. Essas políticas levam a fortes gastos domésticos no exterior (necessariamente em ouro) e desincentivam as exportações da nação. Se os países europeus não gostavam de perder ouro para os Estados Unidos, seus governos deveriam ter contraído a oferta monetária em vez de inflacioná-la. Certamente é absurdo, ainda que conveniente, colocar a culpa pelas consequências das políticas insustentáveis de um governo nas políticas relativamente mais sólidas de outro governo.

A nobreza do objetivo americano de ajudar a Europa a retornar ao padrão ouro torna-se ainda mais questionável quando se percebe que a Europa nunca voltou ao padrão ouro pleno. Em vez disso, ela adotou um padrão de “barras de ouro”, que proibia a cunhagem de moedas de ouro, restringindo assim a conversibilidade de pesadas barras, adequadas apenas a grandes transações internacionais. Muitas vezes ela escolheu um padrão “câmbio-ouro”, em que um país mantenha suas reservas não em ouro, mas numa moeda “forte”, como o dólar. Assim, ela só resgata suas unidades monetárias na moeda mais forte do outro país. Claro está que esse sistema permite uma “pirâmide” internacional da inflação a partir do estoque de ouro do mundo. Tanto no padrão ouro-em-barras quanto no padrão câmbio-ouro, a moeda é na prática fiduciária de curso forçado, já que as pessoas são de facto proibidas de usar o ouro como meio de troca. O uso do termo “padrão ouro” por governos estrangeiros na década de 1920 era portanto mais uma fraude do que qualquer outra coisa. Era uma tentativa de atrair para o governo o prestígio de adotar o padrão ouro, ao mesmo tempo em que esse governo não se prendia às limitações e às exigências desse padrão. A Grã-Bretanha, no fim da década de 1920, adotava um padrão de ouro-em-barras, e a maioria dos demais “países do padrão-ouro” seguia o padrão câmbio-ouro, mantendo seus títulos em ouro em Londres ou em Nova York. A posição britânica, por sua vez, dependia dos recursos e das linhas de crédito americanas, porque só os Estados Unidos seguiam o verdadeiro padrão-ouro.

Assim, a íntima colaboração internacional de bancos centrais da década de 1920 criou uma era de prosperidade aparentemente sólida que mascarava uma perigosa inflação mundial. Como declarou o Dr. Palyi, “O padrão ouro da Nova Era era controlado o bastante para permitir o alongamento e a sustentação artificiais do boom, mas era também automático o bastante para que seu colapso chegasse inevitavelmente.”[22] O padrão anterior à guerra, observa Palyi, era autônomo; o novo padrão ouro se baseava na cooperação política dos bancos centrais, que “impacientemente mantinham um volume de fluxo de crédito sem dar atenção a seus resultados econômicos”. E o Dr. Hardy concluiu, com justiça: “A cooperação internacional para a manutenção do padrão ouro… é a manutenção de uma política de dinheiro barato sem que haja perda de ouro.”[23]

A fonte e a inspiração do mundo financeiro da década de 1920 era a Grã-Bretanha. Foi o governo britânico que concebeu o sistema de cooperação entre os Bancos Centrais, e que convenceu os Estados Unidos a segui-lo. A Grã-Bretanha deu origem a essa política como meio de fugir (temporariamente) a seus dilemas econômicos, ainda que a proclamasse em nome da “reconstrução humanitária”. A Inglaterra, assim como os Estados Unidos, também usou o crédito barato para fazer amplos empréstimos à Europa continental e desse modo promover seus próprio mercado decadente de exportações, aleijado pelos altos custos impostos pelos salários excessivos dos sindicatos.

Além disso, a Grã-Bretanha convenceu outros países estrangeiros a adotar o padrão câmbio-ouro a fim de promover o seu próprio “imperialismo econômico”, isso é, de incentivar as exportações britânicas para o continente induzindo outros países a retornar ao ouro a taxas supervalorizadas. Se outros países supervalorizassem suas moedas em relação à libra esterlina, então as exportações britânicas poderiam ser estimuladas. Se os outros países supervalorizassem suas moedas frente à libra esterlina, então as exportações britânicas seriam estimuladas. (A Grã-Bretanha não mostrou grande preocupação com o fato de que sua atitude prejudicaria as exportações do continente.) O padrão câmbio-ouro, inflacionário e abortivo, permitiu que os países retornassem ao ouro (ao menos nominalmente) mais cedo e a uma taxa de câmbio mais alta do que aquela que outros meios teriam permitido.[24] Outros países foram pressionados pela Grã-Bretanha a permanecer no padrão ouro-em-barras, como ela estava, em vez de ir adiante e restaurar um padrão-ouro pleno. A fim de cooperar com a inflação internacional, era necessário impedir a circulação doméstica do ouro, entesourando-o nos cofres dos bancos centrais. Como escreveu o Dr. Brown:

Em certos países, a relutância em adotar o padrão ouro-em-barras era tão grande que alguma pressão exterior foi necessária para que ela fosse superada (…) isso é, fortes argumentos por parte do Banco da Inglaterra de que essa ação contribuiria para o sucesso geral do esforço de estabilização como um todo. Sem a pressão informal (…) diversos esforços para retornar em um passo ao padrão ouro pleno sem dúvida teriam sido dados.[25]

Um exemplo importante dessa pressão, que também contou com a força de Benjamin Strong, ocorreu na primavera de 1926, quando Norman induziu Strong a apoiá-lo na firme oposição ao plano de Sir Basil Blackett de estabelecer um padrão de ouro-em-moedas pleno na Índia. Strong chegou a dar-se ao trabalho de viajar à Inglaterra para dar seu testemunho contra a medida, e teve o apoio de Andrew Mellon e a assessoria dos economistas Oliver M. W. Sprague, de Harvard, de Jacob Hollander, de Johns Hopkins, e de Randolph Burgess e de Robert Warren, do New York Reserve Bank. Os especialistas americanos avisaram que a contínua fuga do ouro para a Índia provocaria deflação em outros países (isso é, revelaria sua superinflação), e sugeriram a adoção do padrão câmbio-ouro e a “economia” doméstica do ouro (isso é, economizar para expandir o crédito). Além disso, eles insistiram que a Índia criasse mais instalações bancárias e de bancos centrais (isso é, mais inflação na Índia), e defenderam que a Índia mantivesse seu padrão prata para que os interesses em prata americanos não fossem perturbados em caso de a Índia abandonar a prata e assim reduzir seu preço no mercado mundial.[26]

Norman agradeceu a seu amigo Strong por ter ajudado a derrotar o plano Blackett para um padrão ouro pleno na Índia. Diante das objeções de alguns membros do Conselho do Federal Reserve à interferência de Strong em questões puramente estrangeiras, o formidável secretário Mellon encerrou a discussão dizendo que havia pedido pessoalmente a Strong que fosse à Inglaterra dar seu testemunho.

O dr. Hjalmar Shacht tem grande mérito por, além de opor-se a nossos empréstimos imorais aos governos locais da Alemanha, também criticou severamente o novo modelo de padrão ouro. Schacht em vão clamou por um retorno ao verdadeiro padrão ouro de antigamente, em que as exportações de capital eram financiadas pela poupança voluntária genuína, e não pelo crédito bancário fiduciário de curso forçado.[27]

Uma visão cáustica mas perspicaz do imperialismo financeiro da Grã-Bretanha na década de 1920 foi expressada na seguinte entrada do diário de Emile Moreau, presidente do Banco da França:

A Inglaterra, tendo sido o primeiro país europeu a restabelecer uma moeda estável e segura, usou essa vantagem para estabelecer uma base para colocar a Europa sob uma verdadeira dominação financeira. O Comitê Financeiro [da Liga das Nações] em Genebra foi o instrumento dessa política. Seu método consiste em forçar todos os países em dificuldades monetárias a submeter-se ao Comitê de Genebra, que está sob controle britânico. Os remédios prescritos sempre envolvem a instalação no banco central de um supervisor estrangeiro que é britânico ou escolhido pelo Banco da Inglaterra, e o depósito de parte da reserva do banco central no Banco da Inglaterra, o que serve tanto para fortalecer a libra quanto para fortalecer a influência britânica. A fim de prevenir-se contra qualquer dificuldade eles tomam o cuidado de assegurar a cooperação do Federal Reserve Bank de Nova York. Além disso, eles passam aos Estados Unidos a tarefa de fazer alguns dos empréstimos estrangeiros se eles parecerem pesados demais, mas eles sempre mantêm, nessas operações, a vantagem política.

Assim, a Inglaterra está completa ou parcialmente entrincheirada na Áustria, na Hungria, na Bélgica, na Noruega e na Itália. Ela está se entrincheirando agora na Grécia e em Portugal… As moedas [da Europa] ficarão divididas em duas classes. As de primeira classe, o dólar e a libra, baseadas em ouro, e as de segunda classe, baseadas na libra e no dólar — com parte de suas reservas em ouro em poder do Banco da Inglaterra e do Federal Reserve Bank de Nova York, essas moedas terão perdido sua independência.[28]

Os motivos da inflação americana de 1924, então, foram a ajuda à Grã-Bretanha, ao setor agrícola e, de passagem, aos banqueiros de investimento, e, por fim, a ajuda a reeleger o governo nas eleições de 1924. As famosas palavras do presidente Coolidge sobre a segurança das taxas baixas de desconto tipificavam o fim político em vista. E certamente a inflação foi incentivada pela existência de uma branda recessão em 1923—1924, durante a qual a economia estava tentando se ajustar à inflação anterior de 1922. Inicialmente, a expansão de 1924 atingiu o objetivo premeditado — o influxo de ouro para os Estados Unidos foi substituído por uma fuga do ouro, os preços americanos subiram, os empréstimos estrangeiros foram estimulados, e o presidente Coolidge teve uma reeleição triunfal. Logo, porém, com a exceção da reeleição, os efeitos da expansão dissiparam-se, e os preços nos Estados Unidos voltaram a cair, o ouro voltou a entrar com força etc. Os preços dos produtos agrícolas americanos, que haviam subido de um índice de 100 em 1924 para 110 no ano seguinte, caíram de volta para 100 em 1926. As exportações de produtos agrícolas e alimentícios, que haviam atingido um pico em 1925, também caíram violentamente no ano seguinte. Em suma, a economia americana entrou em outra recessão branda no outono de 1926, que continuou em 1927. A Inglaterra estava particularmente em apuros, viciada em crédito barato, e sofrendo de desemprego crônico e de contínuas fugas de ouro. Mas a Grã-Bretanha insistiu em continuar sua política de dinheiro barato e de expansão do crédito — por insistência do governo britânico, e não de seus banqueiros privados.[29]

O problema imediato da Grã-Bretanha vinha diretamente de sua insistência em manter o dinheiro barato. O Banco da Inglaterra havia reduzido sua taxa de descontos de 5% para 4,5% em abril de 1927, numa vã tentativa de estimular a indústria britânica.[30] Isso enfraqueceu ainda mais a libra esterlina, e a Grã-Bretanha perdeu US$ 11 milhões de dólares em ouro durante os dois meses seguintes, e o Banco da França, na posição de um forte credor, tentou resgatar suas libras em ouro.[31] Em vez de restringir o crédito e de elevar fortemente as taxas de juros para enfrentar essa fuga do ouro, como ditavam os cânones de uma política monetária austera, a Grã-Bretanha foi atrás de seu velho parceiro inflacionário, o Federal Reserve System. O cenário outra vez estava claramente preparado, segundo a lógica dos gerentes monetários americanos e ingleses, para outra grande dose de expansão do crédito nos Estados Unidos.

Assim, o presidente Montagu Norman, o Mefistófeles da inflação da década de 1920, reuniu-se com Strong e com Moreau, do Banco da França, em Paris. Ele pressionou o Banco da França de diversas maneiras em 1927 para que ele não resgatasse por ouro seus saldos em libras esterlinas — saldos, que, afinal, pouca utilidade tinham para os franceses.[32] Norman também tentou induzir os franceses a causarem eles mesmos alguma inflação, mas Moreau não era um Benjamin Strong. Em vez disso, ele não só permaneceu firme, como ainda insistiu que Norman permitisse que a perda de ouro por parte da Inglaterra levasse à restrição do crédito e à elevação das taxas de juros em Londres (freando assim a compra de francos pela Grã-Bretanha). Norman, porém, estava comprometido com sua política de dinheiro barato.

Strong, por outro lado, correu para ajudar a Inglaterra. Numa tentativa de estimular a libra esterlina, ele usou o ouro americano para diminuir o ágio sobre o ouro na Inglaterra e também comprou algumas notas de libras para ajudar seu aliado. E, além disso, Strong e Norman organizaram a famosa conferência de bancos centrais em julho de 1927 em Nova York. A conferência aconteceu em privado, e contou com Norman, com Strong e com representantes do Banco da França e do Reichsbank alemão: respectivamente, o vice-presidente Charles Rist, e o dr. Schacht. Strong dirigiu o lado americano com mão de ferro, e chegou até a recusar-se a permitir que o sr. Gates McGarrah, presidente do Conselho do Federal Reserve Bank de Nova York, participasse do encontro. O Conselho do Federal Reserve em Washington não pôde tomar conhecimento de nada, só podendo receber uma breve visita de cortesia dos distintos convidados. A conferência aconteceu nas propriedades de Long Island de Ogden Mills, subsecretário do Tesouro, e da sra. Ruth Pratt, da rica família dona da Standard Oil.

Norman e Strong tentaram com todas as forças induzir Rist e Schacht a seguir o plano de uma inflação geral em quatro países, mas eles vigorosamente se recusaram. Schacht continuou sua determinada oposição à inflação e ao dinheiro artificialmente barateado, expressando sua preocupação com a tendência inflacionária. Rist também apresentou suas objeções, e ambos voltaram para suas casas. Rist concordou, porém, em comprar ouro de Nova York e não de Londres, aliviando assim a pressão sobre o Banco da Inglaterra para resgatar suas obrigações. O Reserve Bank de Nova York, por sua vez, concordou em oferecer à França ouro a uma taxa subsidiada: ao mesmo preço da Inglaterra, apesar dos maiores custos de transporte.

Tendo alongado sua estadia para forjar seu pacto inflacionário, Norman e Strong concordaram em iniciar uma vasta onda inflacionária nos Estados Unidos, reduzindo as taxas de juros e expandido o crédito — acordo esse que, segundo Rist, foi concluído antes mesmo de a conferência das quatro potências sequer ter começado. Strong tinha brincado com Rist, dizendo que ia dar “um golinho de uísque para a bolsa de valores”[33]. Strong também concordou em comprar mais US$ 60 milhões em libras esterlinas do Banco da Inglaterra.

A imprensa britânica ficou felicíssima com esse fruto da leal amizade entre Norman e Strong, e cobriu Strong de elogios. Já em meados de 1926, The Banker, influente revista inglesa, disse que não existia “melhor amigo da Inglaterra” do que Strong, e louvou “a energia e a habilidade que dedicou em serviço da Inglaterra”, exultando que “seu nome deveria ser associado com o do sr. [Walter Hines] Page como amigo da Inglaterra na hora de sua maior necessidade.”[34]

Em resposta ao acordo, o Federal Reserve imediatamente causou um grande surto de inflação e de crédito barato na segunda metade de 1927. A Tabela 8 mostra que a taxa de aumento das reservas bancárias foi a maior da década de 1920, sobretudo por causa das compras em mercado aberto de títulos do governo e de aceitações bancárias. As taxas de redesconto também foram reduzidas. O Federal Reserve Bank de Chicago, que não estava sob o domínio do Banco da Inglaterra, resistiu bravamente a reduzir sua taxa, mas foi forçado a fazê-lo em setembro pelo Conselho do Federal Reserve. O Chicago Tribune iradamente clamou pela demissão de Strong, afirmando que as taxas de desconto estavam sendo reduzidas para servir aos interesses da Grã-Bretanha. Strong disse aos Reserve Banks regionais que o novo surto de dinheiro barato tinha como objetivo ajudar o setor agrícola e não a Inglaterra, e foi essa a razão proclamada pelo primeiro banco a reduzir sua taxa de desconto — não o de Nova York, mas o de Kansas City. O Kansas City Bank tinha sido escolhido por Strong para dar um sabor o mais “americano” possível a todo o procedimento. O governador Bailey, do Kansas City Bank, sequer suspeitava  que a motivação para a nova política era ajudar à Grã-Bretanha, e Strong não fez o menor esforço para esclarecê-lo.[35]

Talvez o maior crítico das políticas inflacionárias no governo Coolidge tenha sido o secretário Hoover, que em privado fez o que podia para frear a inflação a partir de 1924, chegando mesmo ao ponto de acusar Strong de ser um “anexo mental da Europa”. Hoover foi vencido por Strong, Coolidge e Mellon, sendo que este último acusou Hoover de “alarmismo” e de interferência. Mellon foi o maior defensor de Strong no governo ao longo de todo esse período. Infelizmente para os acontecimentos posteriores, Hoover— como a maior parte dos críticos acadêmicos de Strong — atacou apenas a expansão de crédito para o mercado de ações e não a expansão em si mesma.

Não há melhor descrição das razões dos métodos ardilosos e secretos de Strong, assim como os motivos de suas políticas inflacionárias, do que aquela que aparece neste memorando privado de um membro da equipe de Strong. Na primavera de 1928, Strong rejeitou firmemente a ideia de uma conferência aberta e formal dos bancos centrais do mundo, e, nas palavras de seu assistente:

Ele [Strong] tinha a obrigação de considerar o ponto de vista do povo americano, que decidira manter o país fora da Liga das Nações a fim de evitar a interferência de outras nações em seus assuntos domésticos, e que seriam igualmente contrários a que os chefes de seu banco central participassem de alguma conferência ou organização dos bancos mundiais relevantes… Para ilustrar o quão perigosa pode se tornar essa posição no futuro, como resultado das decisões a que se chegou no momento presente, e a facilidade com que a opinião pública ou política poderia inflamar-se quando os resultados de decisões passadas tornarem-se evidentes, o governador Strong citou os protestos contra os excessos especulativos a que a bolsa de valores de Nova York vem se entregando… Ele disse que muito poucas pessoas de fato percebem que agora estamos pagando o preço da decisão, tomada ainda em 1924, de ajudar o resto do mundo a retornar a uma base monetária e financeira mais sólida.[36]

Em suma, em nossa pretensa democracia, se o povo pudesse ter ideia das transações feitas em seu nome, e dos preços que depois foram forçados a pagar, ele se revoltaria em fúria. Melhor deixar o povo na ignorância. Essa, é claro, é a atitude comum de todo burocrata no poder. Mas há ainda a questão fundamental que isso levanta para a própria democracia: como pode o povo decidir a respeito das questões, ou julgar seus supostos representantes, se estes insistem em esconder do povo informações essenciais?

Além disso, nem mesmo Strong havia percebido o tamanho do preço que o público americano seria forçado a pagar em 1929. Ele morreu antes que a crise chegasse. Se o público ao menos tivesse conhecido a verdade das ações de Strong e de suas consequências, talvez, durante a depressão, ele tivesse “se inflamado” contra a intervenção inflacionária do governo, e não contra o sistema capitalista.

Após ter gerado a inflação de 1927, o Federal Reserve Bank de Nova York, pelos dois anos seguintes, comprou pesadamente notas comerciais de primeira linha de países estrangeiros, notas endossadas por bancos centrais estrangeiros. O propósito era estimular as moedas estrangeiras, e impedir um influxo de ouro para os Estados Unidos. O Federal Reserve Bank de Nova York descreveu essa política com toda a franqueza:

Queremos apoiar o câmbio com nossas compras, e assim não apenas impedir a retirada de novas quantidades de ouro da Europa, como também, ao melhorar a posição do câmbio estrangeiro, melhorar ou estabilizar a capacidade europeia de comprar nossas exportações.

Essas decisões foram tomadas pelo Federal Reserve Bank de Nova York sozinho, e as notas estrangeiras foram depois distribuídas pro rata para os outros Reserve Banks.[37]

Se o Federal Reserve Bank de Nova York era o principal gerador de inflação e de crédito barato, o Tesouro também fez sua parte. Já em março de 1927, o secretário Mellon assegurava a todos que “uma fonte abundante de dinheiro fácil” estava disponível — e, em janeiro de 1928, o Tesouro anunciou que amortizaria um Liberty Bond de 4,25%, que venceria em setembro, em notas de 3,5%.[38]

Outra vez, a política inflacionária teve um sucesso temporário na consecução de seus objetivos. A libra esterlina foi fortalecida, o influxo de ouro para os Estados Unidos foi amplamente invertido, e o ouro passou a fluir para fora. Os preços dos produtos agrícolas subiram de 99 em 1927 para 106 no ano seguinte. As exportações agrícolas e alimentícias cresceram rapidamente, e os empréstimos estrangeiros, estimulados, atingiram novos cumes, chegando ao pico em meados de 1928.[39] Mas, no verão de 1928, a libra esterlina voltou a fraquejar. Os preços agrícolas tiveram uma leve queda em 1929, e o valor das exportações agrícolas também caiu no mesmo ano. Os empréstimos estrangeiros despencaram, porque fundos tanto domésticos quanto estrangeiros jorravam no florescente mercado de ações americano. As taxas de juros mais altas, causadas pelo boom, não poderiam mais ficar abaixo das da Europa, a menos que o FRS estivesse disposto a continuar inflacionando, talvez numa taxa acelerada. Em vez disso, como veremos a seguir, ele tentou conter o boom. O resultado foi que os fundos foram atraídos para os Estados Unidos e, em meados de 1928, o ouro começou a refluir novamente do estrangeiro. E, a essa altura, a Inglaterra tinha voltado aos apuros que já conhecia, só que agora muito mais agravados do que antes.

 

Aproxima-se a crise

Esse era o momento em que ocorria a fase final do grande boom americano, puxado pelo mercado de ações. Se um empréstimo para o mercado de ações não é mais inflacionário do que qualquer outro tipo de empréstimo à economia, ele é igualmente inflacionário, e portanto a expansão do crédito no mercado de ações é tão digno de censura, e do mesmo tipo de censura, que qualquer outra quantidade de crédito inflacionado. Daí o ardiloso efeito inflacionário das declarações de 1927 de Coolidge e de Mellon, que eram os “capeadores” da alta do mercado. Também vimos que o Federal Reserve Bank de Nova York efetivamente estabelecia as taxas de empréstimos em conta margem para o mercado de ações, em cooperação com o comitê monetário da Bolsa de Valores de Nova York: sua política consistia em poder oferecer quaisquer fundos que fossem necessários para que os bancos pudessem prontamente fazer empréstimos ao mercado. O Federal Reserve Bank de Nova York, em suma, usou os bancos de Wall Street para derramar fundos no mercado de ações. A taxa de empréstimos para conta margem, como vimos, ficou muito abaixo dos níveis médios e dos picos de antes da guerra.

Preocupado com o crescimento do boom, e com o aumento de 20% dos preços das ações na segunda metade de 1927, o Fed inverteu sua política na primavera de 1928, e tentou conter o boom. Do fim de dezembro de 1927 ao fim de julho de 1928, o Federal Reserve reduziu o total de reservas em R$261 milhões. Até o fim de junho, o total de depósitos à vista de todos os bancos caiu US$ 471 milhões. Contudo, os bancos conseguiram passar para os depósitos a prazo e até fazer uma compensação excessiva, elevando-os em US$ 1,15 bilhão. O resultado foi que a oferta monetária ainda subiu R$ 1,51 bilhão na primeira metade de 1928, mas esse aumento foi relativamente moderado. (Foi um aumento de 4,4% por ano na última metade de 1927, em comparação com um aumento de 8,1% por ano na última metade de 1927, quando a oferta monetária subiu US$ 2,70 bilhões.) Uma contração mais forte por parte do Federal Reserve — aplicada, por exemplo, por meio de uma taxa “de penalidade” de desconto nos empréstimos do Federal Reserve aos bancos — teria encerrado o boom e levado a uma depressão muito mais branda do que aquela que enfim aconteceu. De fato, foi só em maio que a contração nas reservas teve efeito, porque até então a redução no crédito do Federal Reserve mal conseguia vencer o retorno sazonal da moeda da circulação. Assim, as restrições do Federal Reserve só seguraram o boom entre maio e julho.

Porém, mesmo assim, as fortes vendas em mercado aberto de títulos e a queda nas aceitações tolheram a inflação. Os preços de ações subiram apenas 10% entre janeiro e julho.[40] Em meados de 1928, a fuga do ouro foi invertida, e voltou a ocorrer um leve influxo. Se o Federal Reserve simplesmente não tivesse feito nada na última metade de 1928, as reservas teriam se contraído moderadamente, por causa do aumento sazonal normal da moeda em circulação.

Nesse momento aconteceu a tragédia. Exatamente quando podia dominar o boom, o FRS viu-se elevado por sua própria política de aceitações. Sabendo que o Fed prometera comprar todas as aceitações oferecidas, o mercado aumentou sua emissão de aceitações, e o Fed comprou mais de R$300 milhões em aceitações na segunda metade de 1928, alimentando outra vez o boom. As reservas aumentaram em R$122 milhões, e a oferta monetária aumentou em quase US$ 1,9 bilhão, atingindo praticamente seu pico no fim de dezembro de 1928. A essa altura, a oferta monetária total havia atingido US$73 bilhões, mais do que em qualquer momento desde o início da inflação. Os preços das ações, que na realidade haviam diminuído 5% entre maio e julho, agora começaram a disparar, aumentando 20% entre julho e dezembro. Diante desses desenvolvimentos estarrecedores, o Federal Reserve nada fez para neutralizar suas compras de aceitações. Se antes ele havia ousadamente subido as taxas de redesconto de 3,5% no começo de 1928 para 5% em julho, agora ele teimosamente se recusava a elevar ainda mais a taxa de redesconto, e ela permaneceu constante até o fim do boom. O resultado foi que os descontos para os bancos aumentaram um pouco, em vez de cair. Além disso, o Federal Reserve não vendeu nada de seu estoque de US$ 200 milhões de títulos do governo; em vez disso, comprou um pouco em saldo líquido na segunda metade de 1928.

Por que a política do Federal Reserve foi tão pusilânime na segunda metade de 1928? Uma razão era que a Europa, como notamos, via que já se dissipavam os benefícios da inflação de 1927, e a opinião europeia agora gritava contra qualquer restrição monetária nos Estados Unidos.[41] O afrouxamento do fim de 1928 impediu que os influxos de ouro para os EUA ficassem grandes demais. A Grã-Bretanha voltava a perder ouro e a libra esterlina outra vez enfraquecia. Os Estados Unidos curvaram-se novamente a seu desejo prioritário de que a Europa evitasse as consequências de suas próprias políticas inflacionárias. O governador Strong, doente desde o começo de 1928, tinha perdido o controle da política do Federal Reserve. Mas enquanto alguns discípulos de Strong afirmam que ele teria lutado por medidas mais restritivas na segunda metade do ano, pesquisas recentes indicam que ele achava que até as medidas restritivas mais modestas, aplicadas em 1928, eram severas demais. Essa descoberta, é claro, é muito mais coerente com o histórico de Strong.[42]

Outra razão para a fraqueza da política do Federal Reserve era a pressão política por dinheiro fácil. A inflação é sempre mais popular do ponto de vista político do que a recessão, e não esqueçamos de que estávamos em ano de eleição presidencial. Além disso, o Federal Reserve já tinha começado a adotar a visão perigosamente qualitativista de que era possível tolher o crédito para ações ao mesmo tempo em que se estimulava o crédito para aceitações.[43]

A inflação da década de 1920 já tinha efetivamente acabado no fim de 1928. A oferta monetária total em 31 de dezembro de 1928 era de 73 bilhões. Em 29 de junho de 1929, era de US$ 73,26 bilhões, um aumento de apenas 0,7% por ano. Assim, a inflação monetária estava praticamente completa ao fim de 1928. Daquele momento em diante, a oferta monetária permaneceu estável, elevando-se apenas em quantidades desprezíveis. E, portanto, daquele momento em diante, uma depressão que ajustasse a economia era inevitável. Como poucos americanos conheciam a teoria “austríaca” dos ciclos econômicos, poucos perceberam o que ia acontecer.

Uma economia grande não reage instantaneamente às mudanças. Portanto, era preciso algum tempo antes que o fim da inflação pudesse revelar os mal-investimentos na economia, antes que as indústrias de bens de capital se mostrassem excessivamente ampliadas etc. O ponto de virada aconteceu por volta de julho, e foi em julho que começou a grande depressão.

O mercado de ações havia sido o mais exuberante de todos os mercados — isso em conformidade com a teoria de que o boom gera especialmente uma expansão excessiva nas indústrias de bens de capital, porque o mercado de ações é o mercado dos preços de títulos de capital.[44] Surfando na onda de otimismo gerada pelo boom e pela expansão do crédito, o mercado de ações levou muitos meses depois de julho para despertar para as realidades da queda na atividade econômica. Mas esse despertar era inevitável, e em outubro o crash da bolsa fez com que todos percebessem que a depressão realmente tinha chegado.

A política monetária devida, mesmo durante uma depressão, é deflacionar ou ao menos não inflacionar mais. Como o mercado de ações continuou a expandir-se até outubro, a devida política moderadora seria uma deflação positiva. Mas o presidente Coolidge continuou a fazer papel de “capeadore” até o último minuto. Poucos dias antes de sair do governo em março, ele disse que a prosperidade americana era “absolutamente sólida” e que as ações estavam “baratas nos preços atuais”.[45] Hoover, o novo presidente, era um dos grandes defensores da súbita tentativa de “persuasão moral” da primeira metade de 1929, que fracassou de maneira inevitável e desastrosa. Tanto Hoover quanto o governador Roy Young, do Conselho do Federal Reserve, queriam negar crédito bancário ao mercado de ações ao mesmo tempo em que o mantinham abundante para o comércio e para a indústria. Assim que Hoover assumiu a presidência, começou a intimidar informalmente as empresas privadas, exatamente como fizera como secretário de Comércio.[46] Ele pediu um encontro dos principais editores e da imprensa para avisar a respeito dos preços altos das ações; mandou Henry M. Robinson, banqueiro de Los Angeles, como emissário para tentar restringir os empréstimos para compra de ações dos bancos de Nova York; tentou induzir Richard Whitney, presidente da Bolsa de Nova York, a conter a especulação. Como esses métodos não atacavam a raiz do problema, estavam fadados a não funcionar.

Outros críticos de destaque do mercado de ações em 1928 e em 1929 foram o dr. Adolph C. Miller, do Conselho do Federal Reserve, o senador Carter Glass (Democrata, eleito pela Virgínia), e diversos senadores republicanos “progressistas”. Assim, em janeiro de 1928, o senador LaFollette atacou a maldosa especulação de Wall Street e o aumento nos empréstimos para corretores. O senador Norbeck propôs uma política de persuasão moral um ano antes de ela ser adotada, e Charles S. Hamlin, membro do Conselho do Federal Reserve, convenceu o deputado Dickinson, eleito por Iowa, a apresentar uma lei que graduasse as reservas mínimas dos bancos em proporção aos empréstimos especulativos para compra de ações nos portifólios dos bancos. O senador Glass propôs um imposto de 5% sobre as vendas de ações cuja posse não durasse mais de 60 dias — o que, ao contrário das expectativas de Glass, teria elevado os preços das ações, porque assim os acionistas eram incentivados a não vendê-las até que dois meses se passassem.[47] Como estava, a lei federal desde 1921 impunha uma alíquota particularmente alta sobre ganhos de capital de ações e de títulos possuídos há menos de dois anos. Isso induzia os acionistas a ficar com as ações e a não vendê-las após comprá-las porque o imposto recaía sobre os ganhos de capital realizados, e não acumulados. O imposto contribuiu para elevar os preços das ações durante o boom.[48]

Por que o Federal Reserve adotou a política de “persuasão moral” quando ela não foi usada nos anos anteriores a 1929? Uma das principais razões foi a morte do governador Strong no fim de 1928. Os discípulos de Strong no Federal Reserve Bank de Nova York, reconhecendo a importância crucial da quantidade de moeda, lutaram por uma taxa de descontos mais alta em 1929. Por outro lado, o Conselho do Federal Reserve em Washington, e também o presidente Hoover, viam o crédito sob o ângulo da qualidade e não da quantidade. Mas o professor Beckhart acrescenta outro aspecto possível: que a política de “persuasão moral” — que conseguira evitar uma política de crédito mais restrita — foi adotada sob a influência de ninguém menos do que Montagu Norman.[49] Enfim, em junho, a persuasão moral foi abandonada, mas as taxas de desconto não foram elevadas, e o resultado foi que o boom do mercado de ações continuou a plena força, mesmo quando a economia em geral já estava silenciosa mas inexoravelmente caindo. O secretário Mellon trombeteou novamente nossa “prosperidade intacta e inquebrável”. Em agosto, o Conselho do Federal Reserve enfim consentiu em elevar a taxa de redesconto para 6%, mas qualquer efeito restritivo foi mais do que contrabalançado por uma redução simultânea da taxa de aceitações, e assim o mercado de aceitações foi outra vez estimulado. Em março, o Federal Reserve havia acabado com a ameaça das aceitações ao elevar sua taxa de compras de aceitações acima de sua taxa de desconto pela primeira vez desde 1920. O efeito líquido dessa dupla atitude, sem precedentes, foi estimular a alta do mercado a alturas ainda maiores. A redução da taxa de compra de aceitações por parte do Federal Reserve, de 5,25% para 5,125%, o mesmo nível do mercado aberto, estimulou as vendas do mercado de aceitações ao Federal Reserve. Se não fosse pelas compras de aceitações, as reservas totais teriam caído, entre o fim de junho e 23 de outubro (o dia anterior à quebra da bolsa), em US$ 267 milhões. Mas o Federal Reserve comprou US$ 297 milhões em aceitações durante esse período, elevando o total de reservas em US$ 21 milhões. A Tabela 9 conta a história desse período.

TABELA 9

FATORES DETERMINANTES DAS RESERVAS BANCÁRIAS

JULHO–OUTUBRO DE 1929

(em milhões de dólares)

 

 

29 de julho

23 de outubro

Mudança líquida

Crédito no Federal Reserve

1400

1374

-26

Notas descontadas

1037

796

-241

Notas compradas

82

379

297

Títulos do governo

216

136

-80

Todas as demais

65

63

-2

Notas do Tesouro

2019

2016

-3

Dinheiro no Tesouro

204

209

-5

Depósitos no Tesouro

36

16

20

Fundos de Capital Inesperados

374

393

-19

Estoque de Ouro Monetário

4037

4099

62

Moeda em Circulação

4459

4465

-6

Outros Depósitos

28

28

0

Reservas Controladas

206

Reservas Não-Controladas

-185

Reservas dos Bancos Membros

2356

2378

22

Qual foi a razão para essa política peculiarmente inflacionária que favorecia o mercado de aceitações? Ela se encaixava no viés qualitativo do governo, e era ostensivamente defendida como um esquema para ajudar o setor agrícola americano. Contudo, parece que o argumento de ajuda aos fazendeiros foi novamente usado como disfarce doméstico para políticas inflacionárias. Em primeiro lugar, o aumento na posse de aceitações, estava muito mais concentrado em aceitações puramente estrangeiras, e menos em aceitações baseadas em exportações americanas. Em segundo lugar, o setor agrícola já havia concluído seus empréstimos sazonais antes de agosto, de modo que ele não se beneficiou nem vagamente das taxas de aceitação inferiores. De fato, como observa Beckhart, a política inflacionária de aceitações foi reinstituída “logo após outra visita do presidente Norman”.[50] Assim, outra vez, a influência mefistofélica de Montagu Norman se fazia sentir no cenário americano, e pela última vez Norman pôde dar um novo ímpeto ao boom da década de 1920. A Grã-Bretanha também estava entrando numa depressão, e contudo suas políticas inflacionárias haviam resultado num forte fluxo de ouro para o exterior em junho e em julho. Norman então conseguiu obter uma linha de crédito de US$ 250 milhões de um consórcio de bancos de Nova York, mas o fluxo para fora continuou ao longo de setembro, sendo que boa parte do ouro ia para os Estados Unidos. Continuando a ajudar a Inglaterra, o Federal Reserve Bank de Nova York fez pesadas compras de libras esterlinas entre agosto e outubro. O novo subsídio do mercado de aceitações então permitiu uma nova ajuda à Grã-Bretanha por meio da compra de libras esterlinas. A política do Federal Reserve durante a última metade de 1928 e o ano de 1929 foi, em suma, marcada por um desejo de manter o crédito abundante em mercados preferenciais, como os de aceitações, e restringir o crédito em outras áreas, como o mercado de ações (por exemplo, pela “persuasão moral”). Vimos que essa política só poderia dar errado, e A. Wilfred May escreveu um excelente epitáfio para esses esforços:

Uma vez que o sistema de crédito foi infectado pelo dinheiro barato, ficou impossível reduzir as válvulas de escape desse crédito sem reduzir todo o crédito, porque é impossível manter espécies diferentes de dinheiro separados em compartimentos impermeáveis. Era impossível fazer com que o dinheiro ficasse escasso para os fins do mercado de ações, ao mesmo tempo em que ele permanecia barato para usos comerciais… Quando foi criado o crédito do Federal Reserve, não havia nenhum jeito de fazer com que seu emprego fosse direcionado para usos específicos depois que ele tivesse fluido, por meio dos bancos comerciais, para a corrente geral do crédito.[51]

E assim terminou o grande boom inflacionário da década de 1920. Deve ter ficado claro que a responsabilidade pela inflação é do governo federal — das autoridades do Federal Reserve em primeiro lugar, e do Tesouro e do governo em segundo.[52] O governo dos Estados Unidos havia semeado o vento e o povo americano colheu o furacão: a grande depressão.

 

 



[1] Seymour E. Harris, Twenty Years of Federal Reserve Policy (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1933), vol. 1, p. 94.

[2] Robert L. Sammons, “Capital Movements”, em Hal B. Lary and Associates, The United States in the World Economy (Washington, D.C.: Government Printing Office, 1943), p. 94.

[3] Ver Abraham Berglund, “The Tariff Act of 1922”, American Economic Review (março de 1923): 14–33.

[4] Ver Benjamin H. Beckhart, “The Basis of Money Market Funds”, em Beckhart, et al., The New York Money Market (Nova York: Columbia University Press, 1931), vol. 2, p. 70.

[5] Frank W. Fetter, “Tariff Policy and Foreign Trade”, em J. G. Smith, ed., Facing the Facts (Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1932), p. 83. Ver também George E. Putnam, “What Shall We Do About Depressions?” Journal of Business (abril de 1938): 130–42, e Winthrop W. Aldrich, The Causes of the Present Depression and Possible Remedies (Nova York, 1933), pp. 7–8.

[6] Jacob Viner, “Political Aspects of International Finance”, Journal of Business (abril de 1928): 170. Ver também Herbert Hoover, The Memoirs of Herbert Hoover (Nova York: Macmillan, 1952), vol. 2, pp. 80–86.

[7] Jacob Viner, “Political Aspects of International Finance, Part II”, Journal of Business (julho de 1928): 359.

[8] Harris Gaylord Warren, Herbert Hoover and the Great Depression (Nova York: Oxford University Press, 1959), p. 27.

[9] Como indicamos anteriormente, um terceiro motivo para a expansão de crédito de 1924 foi ajudar que a agricultura e a indústria se recuperassem da branda recessão de 1923.

[10] Ver Lionel Robbins, The Great Depression (Nova York: Macmillan, 1934), pp. 77–87; Sir William Beveridge, Unemployment, A Problem of Industry (Londres: Macmillan, 1930), cap. XVI; e Frederic Benham, British Monetary Policy (Londres: P. S. King and Son, 1932).

[11] Lawrence E. Clark, Central Banking Under the Federal Reserve System (Nova York: Macmillan, 1935), pp. 310ss.

[12] Charles Rist, “Notice Biographique”, Revue d’Économie Politique (novembro–dezembro de 1955): 1005. (Tradução minha.)

[13] Lester V. Chandler, Benjamin Strong, Central Banker (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1958), pp. 147–49.

[14] Sir Henry Clay, Lord Norman (Londres: Macmillan, 1957), pp. 140–41.

[15] Oscar T. Crosby, antigo secretário-assistente do Tesouro, argutamente atacou esse crédito à época, dizendo que ele estabelecia um perigoso precedente para os empréstimos intragovernamentais. Commercial and Financial Chronicle (9 de maio de 1925): 2537ss.

[16] O crédito da Morgan aparentemente foi instigado por Strong. Ver Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 284ss., 308ss., 312ss. As relações entre o Fed de Nova York e a Casa Morgan eram muito íntimas ao longo desse período. Strong havia trabalhado junto aos interesses da Morgan antes de assumir seu posto no Federal Reserve. Portanto, é significativo que “J. P. Morgan and Company têm sido os agentes fiscais de governos estrangeiros neste país e tiveram ‘íntimos acordos operacionais’ com o Federal Reserve Bank de Nova York”. Clark, Central Banking Under the Federal Reserve System, p. 329. A J. P. Morgan era, em particular, agente do Banco da Inglaterra. Ver também Rist, “Notice Biographique”. Contudo, é preciso dar à Morgan o crédito por ter-se recusado a seguir um esquema de Strong e de Norman de emprestar dinheiro ao governo belga, a fim de levar a taxa de câmbio a um nível supervalorizado, e assim subsidiar políticas inflacionárias belgas.

[17] Robbins, The Great Depression, p. 80.

[18] Carta de Strong para Mellon, 27 de maio de 1924. Citada em Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 283–84, 293ss.

[19] Ver Benjamin H. Beckhart, “Federal Reserve Policy and the Money Market, 1923–1931”, em The New York Money Market, vol. 4, p. 45.

[20] Carta de Norman para Strong, 16 de outubro de 1924. Citada em Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, p. 302.

[21] Carta de Norman para Hjalmar Schacht, 28 de dezembro de 1926. Citada em Clay, Lord Norman, p. 224.

[22] Melchior Palyi, “The Meaning of the Gold Standard”, Journal of Business (julho de 1941): 300–01. Ver também Aldrich, The Causes of the Present Depression and Possible Remedies, pp. 10–11.

[23] Palyi, “The Meaning of the Gold Standard”, p. 304; Charles O. Hardy, Credit Policies of the Federal Reserve System (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1932), pp. 113–17.

[24] “A facilidade com que se pode instituir um padrão câmbio-ouro, especialmente com moeda emprestada, levou muitas nações na década passada a “estabilizar”… a uma taxa alta demais.” H. Parker Willis, “The Breakdown of the Gold Exchange Standard and Its Financial Imperialism”, The Annalist (16 de outubro de 1931): 626s. Sobre o padrão câmbio-ouro, ver também William Adams Brown, Jr. The International Gold Standard Reinterpreted, 1914–1934 (Nova York: National Bureau of Economic Research, 1940), vol. 2, pp. 732–749.

[25] William Adamns Brown, Jr., The International Gold Standard Reinterpreted, 1914–1934 (Nova York: National Bureau of Economic Research, 1940), vol. 1, p. 355.

[26] Com isso não pretendemos endossar o Plano Blackett por inteiro, que também previa que os governos dos Estados Unidos e da Inglaterra fizessem um empréstimo de £ 100 milhões à Índia. Ver Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 356ss.

[27] Ver Beckhart, “The Basis of Money Market Funds”, p. 61.

[28] Entrada de 6 de fevereiro de 1928. Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 379–80. Contudo, Norman não insistiu no controle por parte da Liga das Nações quando ele e Strong concordaram, em dezembro de 1927, em financiar a estabilização da lira italiana, ao oferecer conjuntamente um crédito de US$ 75 milhões do Banco da Itália (US$ 30 milhões do Federal Reserve Bank de Nova York), junto com um crédito de US$ 25 milhões da Morgan, e mais um empréstimo de igual valor feito por banqueiros privados em Londres. O Conselho do Federal Reserve, assim como o secretário Mellon, aprovaram esses subsídios. Ibid., p. 388.

[29] Ver Benjamin M. Anderson, Economics and the Public Welfare (Nova York: D. Van Nostrand, 1949), p. 167.

[30] Durante o outono de 1925, Norman também tinha reduzido a Taxa Bancária. Àquela época, Strong o criticara, e também foi levado pelo boom americano a elevar as taxas de desconto domésticas. Em dezembro, a Taxa Bancária britânica foi elevada de volta ao nível anterior.

[31] Boa parte dos saldos em libras foram acumulados como resultado de uma forte expansão do crédito britânico em 1926.

[32] O Banco da França havia adquirido esses saldos em sua luta para estabilizar o franco a uma taxa excessivamente baixa, mas ainda sem declarar a conversibilidade em ouro. O último passo foi enfim dado em junho de 1928.

[33] Rist, “Notice Biographique”, pp. 1006ss.

[34] Ver Clark, Central Banking Under The Federal Reserve System, p. 315. O elogio de Paul Warburg a Strong foi ainda mais generoso. Warburg saudou Strong como o pioneiro e abridor de caminhos que “fundiu os bancos centrais num grupo íntimo”. Em sua conclusão, ele disse que “os membros do American Acceptance Council o recordariam com ternura”. Paul M. Warburg, The Federal Reserve System (Nova York: Macmillan, 1930), vol. 2, p. 870.

No outono de 1926, um grande banqueiro admitiu que consequências negativas viriam da política de dinheiro barato, mas disse: “não há como evitar isso. É o preço que temos de pagar para ajudar a Europa.” H. Parker Willis, “The Failure of the Federal Reserve”, North American Review (1929): 553.

[35] Ver Anderson, Economics and the Public Welfare, pp. 182–83; Beckhart, “Federal Reserve Policy and the Money Market”, pp. 67ff.; e Clark, Central Banking Under the Federal Reserve System, p. 314.

[36] De O. Ernest Moorte para Sir Arthur Salter, 25 de maio de 1928. Citado em Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 280–81.

[37] Clark, Central Banking Under the Federal Reserve System, p. 198. Também vimos que notas de libras foram compradas em quantidades consideráveis em 1927 e em 1929.

[38] Ver Harold L. Reed, Federal Reserve Policy, 1921–1930 (Nova York: McGraw–Hill, 1930), p. 32.

[39] Clark observa que o crédito barato teve sucesso particularmente em ajudar os bancos de financeiros e de investimentos, assim como os interesses especulativos aos quais Strong e seus colegas estavam associados. Clark, Central Banking Under the Federal Reserve System, p. 344.

[40] Anderson (Economics and the Public Welfare) certamente está errado ao inferir que o mercado de ações a essa altura já estava fora de controle, e que pouco havia que as autoridades ainda pudessem fazer. Um vigor maior teria encerrado o boom no ato.

[41] Ver Harris, Twenty Years of Federal Reserve Policy, vol. 2, pp. 436ss.; Charles Cortez Abbott, The New York Bond Market, 1920–1930 (Cambrigde, Mass.: Harvard University Press, 1937), pp. 117–30.

[42] Ver carta de Strong a Walter W. Stewart, 3 de agosto de 1928. Chandler, Benjamin Strong, Central Banker, pp. 459–65. Para uma visão contrária, ver Carl Snyder, Capitalism, the Creator (Nova York: Macmillan, 1940), pp. 227–28. Não custa observar que o dr. Stewart facilmente trocou seu posto como chefe da Divisão de Pesquisa do Federal Reserve System pelo de Assessor Econômico do Banco da Inglaterra alguns anos depois. Nesse posto, ele escreveu a Strong para avisá-lo de que as restrições ao crédito bancário americano estariam fortes demais.

[43] Ver Review of Economic Statistics, p. 13.

[44] O mercado imobiliário é o outro grande mercado de títulos de capital. Sobre o boom imobiliário da década de 1920, ver Homer Hoyt, “The Effect of Cyclical Fluctuations upon Real Estate Finance”, Journal of Finance (abril de 1947): 57.

[45] É significativo que o principal especulador da alta do mercado na época, William C. Durant, que sofreu perdas terríveis com o crash, tenha saudado Coolidge e Mellon como os grandes animadores do programa de dinheiro barato. Commercial and Financial Chronicle (20 de abril de 1929): 2557ss.

[46] Hoover, The Memoirs of Herbert Hoover, vol. 2, pp. 16ss.

[47] Ver Joseph Stagg Lawrence, Wall Street and Washington (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1929), pp. 7ss., e passim.

[48] Ver Irving Fisher, The Stock Market Crash – And After (Nova York: Macmillan, 1930), pp. 37ss.

[49] “A política de ‘persuasão moral’ foi inaugurada após uma visita do sr. Montagu Norman a este país.” Beckhart, “Federal Reserve Policy and the Money Market”, p. 127.

[50] Ibid., pp. 142ss.

[51] A. Wilfred May, “Inflation in Securities”, em H. Parker Willis e John M. Chapman, eds., The Economics of Inflation (Nova York: Columbia University Press, 1935), pp. 292–93. Ver também Charles O. Hardy, Credit Policies of the Federal Reserve System (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1932), pp. 124–77; e Oskar Morgenstern, “Developments in the Federal Reserve System”, Harvard Business Review (outubro de 1930): 2–3.

[52] Para uma discussão contemporânea excelente do Federal Reserve, e de sua remoção aos freios naturais da inflação dos bancos comerciais, ver Ralph W. Robey, “The Progress of Inflation and ‘Freezing’ of Assets in the National Banks”, The Annalist (27 de fevereiro de 1931): 427–29. Ver também C. A. Phillips, T. F. McManus, e R. W. Nelson, Banking and the Business Cycle (Nova York: Macmillan, 1937), pp. 140–42; e C. Reinold Noyes, “The Gold Inflation in the United States”, American Economic Review (junho de 1930): 191–97.

 

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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