O mundo assiste atentamente enquanto milhares de egípcios tomam as ruas da capital exigindo amplas reformas e, principalmente, que Hosni Mubarak renuncie a seu posto de quase 30 anos na presidência do país. Entusiasmados pela recente destituição do poder do ditador tunisiano, mas, acima de tudo, cansados de um governo opressivo e corrupto, de condições econômicas precárias e de pouca perspectiva de um futuro melhor, cidadãos egípcios parecem ter atingido o limite da tolerância.
Para entender a causa dos recentes protestos observados na cidade do Cairo, não é essencial ser um estudioso geopolítico. O domínio dos fundamentos de economia e teoria monetária já servirá de base para entender boa parte das causas principais por trás do ambiente político instável visível em boa parte do Oriente Médio.
Logicamente, um bom conhecimento dos fatos históricos, bem como de política internacional, ajudarão na compreensão dos recentes eventos em específico e da situação política em geral, em grande parte do mundo.
Situação política no Oriente Médio
O Egito tem sido, nas últimas décadas, conjuntamente com Israel, um dos maiores recebedores de ajuda econômica e militar dos Estados Unidos, o chamado foreign aid. A lógica da política externa americana empregada é simples: já que o apoio incondicional ao estado de Israel é inegociável, uma das formas mais fáceis de garantir um ambiente menos hostil ao estado judeu é subornando e apoiando militarmente governos ilegítimos. A inda que possivelmente tais líderes não aprovem o estado de Israel, a ajuda externa assegura “aliados estratégicos” no Oriente Médio a tolerar os excessos do governo israelita, contanto que a permanência destes no poder seja, em contrapartida, apoiada política, econômica e militarmente pelos EUA.[1]
No Oriente Médio, somente o Egito e a Jordânia reconhecem e possuem relações diplomáticas com o estado de Israel. A Arábia Saudita, apesar de sua posição anti-Israel, adota uma política de “boa vizinhança”, logicamente abençoada pela presença militar americana na península arábica. Esta é a situação da maioria dos países nesta região, alguns em maior ou menor medida, onde os EUA mantêm — quando não instituem um “fantoche” seu — déspotas que governam com mão de ferro uma população majoritariamente muçulmana. Em tais países, a opressão é visível, a dissidência é calada, o mercantilismo é louvado e a democracia é inexistente. Adicione na receita reservas de petróleo e gás e obtemos regimes autocráticos com nocivo poderio econômico.
Desgraçadamente, as ações dos Estados Unidos no Oriente Médio falam muito mais alto do que as belas palavras e promessas de seus presidentes. Na visão do mundo islâmico, democracia, liberdade e prosperidade são termos vazios e sem sentido quando proferidos por autoridades americanas. A realidade nunca esteve tão distante do discurso.
Esta é a situação na maioria das ditaduras ou monarquias, xerifados etc. no Oriente Médio, líderes subservientes aos interesses dos EUA e lamentavelmente alheios aos interesses de seus cidadãos.
Situação econômica no Oriente Médio
Apesar de as questões políticas serem de extrema importância e somarem-se ao sofrimento de um povo oprimido, a situação econômica é o fator definitivo e determinante, capaz de unir e motivar um povo a revoltar-se e a lutar por mudanças drásticas e imediatas.
Poucas pessoas têm aspirações políticas. Algumas não dariam a vida por liberdade de expressão; mas certamente todas lutariam pela própria sobrevivência. Nem todas almejam riqueza material. Mas ninguém consegue viver sem poder alimentar a si e a própria família.
A inflação estimada no Egito em 2009 foi de 11,9%, e de 12,8% em 2010. Ademais, o nível de desempregados se encontra na faixa dos 10%. Analisando outros países muçulmanos, o quadro verificado se torna uma tendência. Na Tunísia, estima-se que 14% da população esteja desocupada. Já na Arábia Saudita, este índice encontra-se em aproximadamente 11%. E a lista segue com 13,4% na Jordânia, e Irã com 14,6% de cidadãos sem um emprego.[2]
Grande parte dos muçulmanos acaba, infelizmente, culpando a influência perniciosa dos EUA tanto por sua situação política quanto econômica. No entanto, esta é consequência das políticas adotadas por seus próprios governos. Concentrar-se a repudiar o imperialismo americano não trará prosperidade. É necessário repudiar as prejudiciais políticas socialistas que abundam nestas nações.
Recentemente, a revista inglesa The Economist publicou um artigo sobre a mudança gradual no estado sírio, de uma economia centralmente planejada a uma orientada ao livre mercado. O artigo enfoca justamente as políticas que levarão a Síria a deixar de ser uma economia socialista planejada e transformar-se em uma de “mercado social”[?], o que significa reduzir vastos subsídios que vão desde eletricidade e combustível até água, alimentos e transporte.
Políticas econômicas ruins não são uma imposição imperialista americana; são escolhas do próprio governo, democrático ou não. Em última instância, é a liberdade econômica que definirá a derrocada de qualquer regime de governo, seja no Oriente Médio ou em qualquer lugar do mundo. O barril de pólvora desta região está repleto de falta de liberdade política, da prejudicial política externa americana, de opressão, de corrupção, de desemprego e de inflação. Alguém terá de ceder.
Padrão-ouro: limite aos governos
O atual arranjo monetário mundial permite que países inclinados a uma alta dose de intervenção estatal ponham em prática seus planos ambiciosos sem necessidade de muita cautela. Em outras palavras, governos socialistas, social-democratas e afins gozam de financiamento quase ilimitado devido ao sistema monetário vigente: moedas fiduciárias com banca de reserva fracionária. É este sistema que possibilita as aspirações de qualquer governo — sejam elas bem intencionadas ou não, sejam seus governantes genuinamente benevolentes ou não.
O padrão-ouro impõe limites. Simples assim.
O padrão-ouro com 100% de reservas impõe ainda mais limites.
Para os suspeitos usuais, este é seu maior defeito. Para qualquer defensor da liberdade individual, sua mais sagrada qualidade.
Entretanto, os limites não são impostos ao desenvolvimento econômico, mas sim à expansão governamental. Desenvolvimento econômico se obtém através do livre mercado. Expansão governamental se obtém através da supressão do mesmo.
Governos são limitados por sua capacidade de taxar seus cidadãos e endividar-se. Impostos em demasia inviabilizarão que a economia se desenvolva, expropriando recursos da iniciativa privada. Alto endividamento priva o setor privado da poupança necessária à acumulação de capital e do consequente crescimento econômico que ela gera.
Um indivíduo, uma família ou uma empresa não podem gastar mais do que ganham, endividando-se indefinidamente. Cedo ou tarde chegará o inevitável dia de ou declarar falência ou reestruturar a dívida, retornando a uma atividade sustentável — isto é, viver com os seus próprios meios.
Por mais que teoria macroeconômica mainstream não o reconheça, governos também são regidos pela mesma regra, do império Romano ao governo dos EUA, sem exceção. Seja qual for a justificativa — estado do bem estar, justiça social, guerras ou obras faraônicas —, tal restrição foi sempre um incômodo à expansão dos governos e suas ambições.
O primeiro passo foi monopolizar a emissão, ou cunhagem, de moeda. Tal monopólio permitiu aos governos falsificarem moeda diluindo a quantidade de ouro ou prata contida nelas, mas mantendo a denominação inalterada, e logo criando leis de curso forçado que obrigavam os cidadãos a aceitarem essa moeda adulterada. Logo, com a evolução da atividade dos depósitos bancários, vieram os substitutos de dinheiro, como certificados de depósitos e notas de banco. Em pouco tempo, o sistema bancário passava a utilizar um coeficiente de reservas abaixo do necessário para honrar 100% dos depósitos à vista. E assim nascia o sistema de reservas fracionárias.
A instabilidade e a insolvência de tal sistema levaram governos a conceder privilégios ao setor bancário, em que os bancos eram eximidos de sua obrigação contratual de resgatar em espécie seus certificados ou notas emitidas. Crise após crise, e o instável sistema bancário clamava cada vez mais por uma entidade que pudesse salvá-los em momentos de apuros, um banco dos bancos.
Surgia então a figura do banco central, uma entidade capaz de orquestrar a expansão de depósitos do sistema bancário (inflação) e de ser prestador de última instância. O objetivo último era impedir que crises bancárias se formassem.
Desde os primórdios, o fraudulento sistema monetário em que vivemos contou com a anuência dos governos, pois a expansão monetária em larga escala acabava por acomodar os crescentes gastos públicos, seja por meio de impressão direta de dinheiro por bancos públicos e/ou banco central, ou via compra de títulos soberanos pelo sistema bancário. Em ambos os casos, o resultado em nada se difere: possibilita a expansão governamental.
A disciplina imposta pelo padrão-ouro com 100% de reservas consiste no fato de que, neste sistema, não se pode mascarar e/ou manipular o nível de poupança disponível para investimentos e/ou financiamento do gasto público. Tampouco é possível criar moedas de ouro do nada para honrar compromissos correntes. Exatamente o oposto é verdadeiro para o sistema de moeda fiduciária com reservas fracionárias. No sistema monetário moderno, basta apertar alguns botões para magicamente criar a quantidade de dinheiro necessária a satisfazer as extravagâncias públicas, haja poupança ou não. O emaranhado de dívida em que vivemos é conseqüência direta da criação ex nihilo de dinheiro.
Nos dias atuais, o dinheiro, o setor bancário e o governo formam uma simbiose tão harmônica e obscura, que nem mesmo especialistas da área financeira e econômica sabem o conceito real de dinheiro e sua fundamental função na sociedade. Até mesmo o atual governador do Banco Central da Inglaterra, Mervyn King, admite que “de todas as várias formas de organizar o sistema bancário, a pior é a que temos hoje”.[3]
Um sistema monetário de livre mercado amparado pelos princípios tradicionais do direito evidencia a impossibilidade de sonhos socialistas. A inflação mascara temporariamente esta verdade. Durante este tempo, redistribui-se riqueza daqueles que produzem aos parasitas que tudo sugam.
O sistema monetário Islâmico
Infelizmente, egípcios e tunisianos, bem como outras nações do Oriente Médio, correm o risco de seus novos governos não serem islâmicos o suficiente. Provavelmente serão islâmicos para condenar a decadência moral do Ocidente, para protestar contra o apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel e para repudiar a cultura imperialista e consumista americana. Mas não serão islâmicos o suficiente para adotar um sistema monetário lastreado em ouro com 100% de reservas, seguindo os preceitos de seu código legal, a shariah.
Sim, o Islã condena o uso de reservas fracionárias.[4]
Qualquer empresário sabe que precisa honrar seus compromissos, pagar suas contas, devolver seus empréstimos, produzir e entregar seus produtos. Senão estará em apuros. Um banco não. Um banco é legalmente permitido a operar fora da lei. Confuso? Pois esta é a realidade de nosso sistema bancário. O que para qualquer empresa constitui fraude e crime é perfeitamente permitido a uma instituição bancária. A perversidade deste sistema, bem como sua faceta fraudulenta, foi desde cedo identificada pelo Islã.
Em um excelente discurso de 1998, no qual urgia pela volta da moeda de ouro dinar[5], Dean Ahmad[6] lembra que “muçulmanos não podem ignorar o fato de que o ouro é o nosso dinheiro. Mesmo que finjamos que não seja, continuamos a usá-lo para o cálculo do nisâb[7]. Ao invés de lutar contra a vontade de Alá, proponho que o aceitemos”.
Naquele ano, a então recente crise financeira asiática ainda preocupava o mundo. Dean Ahmad oportunamente recorda que “não foram os especuladores os causadores da crise na Malásia, mas sim a política monetária harâm[8] que fez do ringgit uma moeda não confiável”. Dean Ahmad segue:
Desde os tempos de Maomé, o ouro e a prata serviam a função de dinheiro, e assim continuou por mais de 400 anos. O ouro é a commodity monetária natural que Alá nos forneceu para uma política monetária imparcial e livre de manipulações arbitrárias e de interesses próprios de bancos centrais e políticos.
A dificuldade em torno do ajuste da oferta monetária é natural e controlada por Deus. Moedas flexíveis (papel, etc.) são todas muito sujeitas a manipulações de governos interessados em financiar déficits ou de banqueiros buscando um incremento de sua receita de juros através das reservas fracionárias.
A base para seguir nossa herança islâmica em tais questões é tanto moral quanto utilitarista. As dificuldades de se encontrar uma política monetária eficaz e segura são obviadas no Islã pelo regime monetário do dinar.
Uma proposta de reforma
Egípcios e tunisianos têm uma oportunidade única. Democracia per se não é capaz de limitar a expansão de um governo e trazer prosperidade. Ouro per se tampouco garante esta. No entanto, a disciplina que ele impõe aos governos faz do metal uma via muito mais fiável no caminho da prosperidade. Ademais, impede o avanço desordenado e prejudicial de um sistema bancário inerentemente instável.
Curiosamente, na questão monetária, há, nos dias de hoje, uma total falta de fundamentalismo islâmico. Muçulmanos precisam seguir os ensinamentos de seu profeta e as tradições de sua história. O povo deve exigir que seus governos abdiquem deste fraudulento sistema monetário e abracem de fato os preceitos do Islã.
Se democracia é o pior sistema à exceção de todos os outros, que pelo menos seus efeitos sejam limitados por um regime monetário condizente com a natureza humana, isto é, de livre mercado.
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Notas
[1] A opinião do autor com relação à política externa americana (e de qualquer país) é aquela defendida pelo congressista Ron Paul, baseada nas idéias de Thomas Jefferson: “Paz, comércio e amizade honesta com todas as nações, sem nos entrelaçarmos em alianças com nenhuma”. Assim como Ron Paul, consideramos a visão de Michael Scheuer extremamente acurada, no sentido de que a política externa dos EUA traz consequências não intencionadas, o chamado blowback. Discordo dos autores que consideram o petróleo como o ponto chave da região. A questão crucial é o apoio incondicional garantido ao estado de Israel, o que no longo prazo é prejudicial tanto para a segurança americana quanto para este estado a que se pretende proteger.
[2] Outros países islâmicos apresentam uma situação ainda mais precária. No entanto, isso implicaria analisar fatores que estão fora do escopo deste artigo. Dentre estes: Palestina, a qual sofre uma brutal opressão exercida pelo estado de Israel; Afeganistão, Iraque e Paquistão, países ainda envolvidos em uma guerra sem fim. Até certo ponto poderíamos incluir o Irã, por sofrer sanções econômicas que certamente prejudicam o seu desenvolvimento, mas que considero não ser fundamental para a atual situação econômica iraniana.
[3] Discurso de Mervyn King no Buttonwood Gathering, Nova York, 25 de Outubro de 2010: “Of all the many ways of organising banking, the worst is the one we have today”.
http://www.bankofengland.co.uk/publications/speeches/2010/speech455.pdf
[4] Ayub, Muhammad, Understanding Islamic Finance, 2007, John Wiley & Sons Ltd: Chichester,England.
[5] Tanto o ouro dinar quanto a prata dirham são moedas antigas do mundo Islâmico. Entretanto, há um movimento crescente visando reintroduzir tais moedas em circulação com o intuito de obter um sistema monetário lastreado em um dinheiro commodity. Na Malásia, os estados de Kelantan e Perak já ou introduziram ou anunciaram a intenção de introduzir estas moedas no mercado.
[6] Discurso proferido por Imad-ad-Dean Ahmad na American Muslim Social Scientists em Chicago, no dia 30 de Outubro de 1998. Dean Ahmad é um estudioso palestino-americano e presidente doMinaret of Freedom Institute, um think-tank libertário muçulmano.http://www.minaret.org/OLD/MONETARY.HTM
[7] Zakat, um dos pilares do Islã, é uma contribuição aos pobres e/ou necessitados. O Zakat é obrigatório quando a riqueza de uma pessoa ultrapassa certo valor, chamado nisâb, o qual foi estipulado em 20 dinars de ouro (90,8g de ouro) ou 200 dirhams de prata (594g de prata). De acordo com o Islã, o Zakat deve ser pago com dinheiro honesto ou algo material, e não com “uma promessa de pagamento” — daí o uso de ouro e prata. A lei Islâmica não permite o uso de uma “promessa de pagamento” como meio de troca. É interessante lembrar que, assim como o dólar, a libra etc., tanto dinar ou dirham são usados como nomes de papel-moeda. Dinar é utilizado no Bahrain, na Jordânia, no Kuwait e na Tunísia, enquanto o dirham foi adotado como nome para a o dinheiro emitido no Marrocos e nos Emirados Árabes. No entanto, hoje em dia são apenas nomes, e não apresentam nenhuma semelhança com as moedas de ouro dinar e prata dirham.
[8] Harâm é o termo arábico utilizado para designar algo ilegal, proibido, não permitido ou banido. É o oposto de Halal.