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A ética da liberdade

28. F.A. Hayek e o conceito de coerção [1]

Em seu monumental trabalho Os Fundamentos da Liberdade, F.A. Hayek tenta estabelecer uma filosofia política sistemática em prol da liberdade individual.[1] Ele começa muito bem, definindo a liberdade como a ausência de coerção, defendendo, deste modo, a “liberdade negativa” de forma mais convincente do que Isaiah Berlin. Infelizmente, a falha grave e fundamental no sistema de Hayek aparece quando ele começa a definir “coerção”. Pois, ao invés de definir coerção como se faz neste livro, como o uso invasivo de violência física ou a ameaça da mesma contra a pessoa ou propriedade (justa) de outro, Hayek define coerção de maneira muito mais confusa e desorganizada: e.g., como o “o controle exercido sobre uma pessoa por outra em termos de ambiente ou de circunstâncias, a ponto de, para evitar maiores danos, aquela ser forçada a agir para servir aos objetivos desta e não de acordo com um plano coerente que ela própria”; e novamente: “A coerção ocorre quando um indivíduo é obrigado a colocar suas ações a serviço da vontade de outro, não para alcançar seus próprios objetivos mas para buscar os da pessoa a quem serve.”[2]
Para Hayek, “coerção” inclui, logicamente, o uso agressivo de violência física, porém, infelizmente, o termo também engloba ações pacíficas e não agressivas. Deste modo, Hayek declara que “a ameaça do uso de força ou violência é a mais importante forma de coerção. Eles não são, entretanto, sinônimos de coerção, pois a ameaça de força física não é a única forma pela qual a coerção é exercida”.[3]

Então quais as outras “formas” não violentas pelas quais Hayek acredita que a coerção pode ser exercida? Algumas delas são formas de interação puramente voluntárias, como a de “um marido rabugento” ou de “uma esposa irritante”, que podem tornar “a vida de alguém insuportável a menos que todas as suas vontades sejam obedecidas”. Neste ponto, Hayek admite que seria um absurdo defender a condenação legal do mau humor ou do aborrecimento; mas ele o faz baseando-se no falho fundamento de que esta condenação implicaria em uma “coerção ainda maior”. Mas a “coerção”, na verdade, não é uma grandeza cumulativa; como é que podemos comparar quantitativamente os diferentes “graus” de coerção, principalmente quando eles envolvem comparações entre diferentes pessoas? Será que não há nenhuma diferença qualitativa fundamental, uma diferença de tipo, entre uma esposa irritante e o uso do aparato da violência física para condenar ou restringir este aborrecimento? Parece claro que o problema fundamental é que Hayek usa o termo “coerção” como um termo portmanteau para englobar não só a violência física como também as ações voluntárias, não violentas e não invasivas, como o aborrecimento. Logicamente, a questão é que a esposa ou o marido é livre para deixar o parceiro ofensivo, e que permanecer junto é uma escolha voluntária de parte dele ou dela. O aborrecimento pode ser estética ou moralmente deplorável, mas ele certamente não é “coercivo” em um sentido similar ao uso da violência física.

Tratar os dois tipos de ação juntos apenas causa confusão.

Todavia, não somente confusão, mas também autocontradição, pois Hayek engloba no conceito de “coerção” não só a violência física invasiva, i.e., uma ação ou troca compulsória, mas também certas formas pacíficas e voluntárias de recusa de se realizar trocas. Com certeza, a liberdade de realizar uma troca implica necessariamente na liberdade equivalente de não realizar uma troca. Não obstante, Hayek cognomina de “coercivas” certas formas de recusa pacífica de se realizar uma troca, aglutinando-as, deste modo, com trocas compulsórias. Hayek afirma especificamente que

Há, inegavelmente, ocasiões em que as condições do mercado de trabalho criam oportunidades de verdadeira coerção. Em períodos de desemprego generalizado, a ameaça de demissão pode ser utilizada para compelir o empregado a desempenhar tarefas diferentes das estipuladas no contrato original. Numa pequena cidade mineira, o gerente da mina pode exercer por capricho uma pressão arbitrária sobre alguém com quem não simpatize.[4]

Entretanto, a “demissão” é simplesmente uma recusa do empregador dono do capital de realizar quaisquer trocas adicionais com uma ou mais pessoas. Um empregador pode se recusar a realizar tais trocas por muitas razões e não existe nenhum critério que não seja subjetivo que possibilite a Hayek o uso do termo “arbitrário”. Por que seria uma razão mais “arbitrária” que a outra? Se Hayek quis insinuar que qualquer razão diferente da maximização o lucro monetário é “arbitrária”, então ele ignora a revelação da Escola Austríaca de que as pessoas, mesmo nos negócios, agem para maximizar seus lucros “psíquicos” ao invés de monetários e que estes lucros psíquicos podem englobar todos os tipos de valores, nenhum dos quais é mais ou menos arbitrário do que o outro. Além disso, Hayek parece estar insinuando que os empregados possuem algum tipo de “direito” a continuar empregado, um “direito” que está em evidente contradição com os direitos de propriedade dos empregadores sobre seu próprio dinheiro. Hayek reconhece que a demissão normalmente é não “coerciva”; então por que ela haveria de ser coerciva em condições “críticas de desemprego” (em nenhum caso criadas pelo empregador) ou em uma cidade de mineração? Mais uma vez, os mineiros mudaram-se voluntariamente para a cidade minera e são livres para irem embora em qualquer hora que desejarem.

Hayek comete um erro parecido quando lida com a recusa de troca feita por um “monopolista” (o possuidor exclusivo de um recurso). Ele admite que “se . . . eu quisesse muito ser retratado por um famoso artista e se ele se recusasse a me retratar por menos de uma taxa muito elevada [ou se recusasse completamente?], claramente seria um absurdo dizer que eu estou sendo coagido”. Entretanto, ele de fato aplica o conceito de coerção em um caso onde o monopolista possui a água em um Oásis. Suponha, diz ele, que as pessoas “se instalassem no local, supondo que a água tivesse sempre disponível a um preço razoável”, que então as outras fontes de água secaram, e que as pessoas “não teriam outra escolha, para sobreviver, senão aceitar todas as condições impostas pelo dono da fonte. Este seria um caso evidente de coerção”,[5] já que o bem ou serviço em questão é “crucial para a vida [deles]”. Porém, já que o dono da nascente não envenenou agressivamente as nascentes concorrentes, ele certamente não está sendo “coercivo”; na verdade, ele está fornecendo um serviço vital e deveria ter o direito tanto de se recusar a vender quanto de cobrar qualquer coisa que os consumidores pagassem. A situação pode muito bem ser lastimável para os consumidores, assim como são muitas situações na vida, mas o fornecedor de um serviço extremamente vital e escasso está longe de ser “coercivo” ao se recusar a vender ou por estabelecer um preço que os compradores não estão dispostos a pagar. As duas ações estão dentro de seus direitos enquanto homem livre e enquanto dono de uma propriedade justa. O dono do Oásis é responsável somente pela existência de suas próprias ações e de sua própria propriedade; ele não é responsável pela existência do deserto ou pelo fato de que as outras nascentes secaram.[6]

Avaliemos outra situação. Suponha que exista apenas um médico em uma comunidade e que uma epidemia se alastre; somente ele pode salvar a vida de muitos de seus concidadãos — com certeza uma ação crucial para a vida deles. Será que ele os estaria “coagindo” caso (a) se recusasse a fazer qualquer coisa, ou deixasse a cidade; ou caso (b) cobrasse um preço muito alto pelos seus serviços médicos de cura? Com certeza não. Antes de qualquer coisa, não há nada de errado em um homem cobrar de seus consumidores o valor de seus serviços, i.e., aquilo que eles estão dispostos a pagar. Ademais, ele tem todo o direito de se recusar a fazer qualquer coisa. Embora ele possa ser criticado moral ou esteticamente, como um autoproprietário de seu próprio corpo ele tem todo o direito de se recusar a curar ou de fazer isso por um preço alto; dizer que ele está sendo “coercivo” é além de tudo insinuar que é apropriado e não coercivo que seus clientes ou seus representantes forcem o médico a tratar deles: resumindo, isso é justificar a sua escravidão. Contudo, com certeza a escravidão, o trabalho forçado, deve ser considerada “coerciva” em qualquer significado sensato que o termo possa ter.

Tudo isto realça a natureza gravemente autocontraditória de se incluir uma troca ou atividade forçada e a recusa de alguém realizar uma troca no mesmo sentido de “coerção”.

Conforme escrevi em outro lugar:

Um tipo bem conhecido de “coerção privada” é o impreciso, porém ameaçador, “poder econômico”. Um dos exemplos prediletos do exercício deste “poder” é o caso de um trabalhador demitido de seu emprego. . . .

Analisemos minuciosamente esta situação. O que exatamente o empregador fez? Ele se recusou a continuar a realizar determinada troca, a qual o trabalhador preferia ter continuado a realizar. Mais especificamente, A, o empregador, recusa-se a vender certa quantia de dinheiro em troca da compra dos serviços do trabalho de B. B gostaria de realizar certa troca; A não gostaria. O mesmo princípio pode ser aplicado a todas as trocas que a economia abrange. . . .

O “poder econômico”, então, é simplesmente o direito de se recusar livremente a realizar uma troca. Todo homem tem este poder. Todo homem tem igualmente o direito de realizar uma troca oferecida.

Assim sendo, deveria ficar claro que o estatista do “caminho do meio”, que reconhece o mal da violência, mas que acrescenta que, às vezes, a violência do governo é necessária para contrabalançar a “coerção privada do poder econômico”, cai em uma contradição inescapável. A recusa-se a realizar uma troca com B. O que deveríamos dizer, ou o que o governo deveria fazer, se B brandisse uma arma e ordenasse que A realizasse a troca? Esta é a questão crucial. Há somente dois posicionamentos que podemos assumir nesta questão: ou B está cometendo um ato de violência e deveria ser impedido imediatamente, ou é perfeitamente justificável que B tome esta atitude porque ele está simplesmente “contrabalançando a coerção sutil” do poder econômico exercida por A. Ou a agência de defesa deve se apressar em defender A, ou deve se recusar deliberadamente a fazer isso, talvez até ajudando B (ou executando a tarefa de B por ele). Não existe meio termo!

B está cometendo um ato de violência; não há dúvidas em relação a isso. Nos termos das duas doutrinas (da argumentação “do poder econômico” e da libertária), esta violência ou é invasiva e, por conseguinte, injusta, ou defensiva e, por conseguinte, justa. Se adotarmos o argumento do “poder econômico”, devemos escolher o segundo posicionamento; se o rejeitarmos, devemos adotar o primeiro. Se selecionarmos o conceito de “poder econômico”, devemos utilizar violência para combater qualquer recusa de troca; se o rejeitarmos, utilizamos a violência para impedir qualquer imposição violenta de troca. Não há como escapar dessas duas escolhas, é uma ou outra. Os estatistas “do caminho do meio” não possuem maneiras lógicas de dizer que existem “muitas formas” de coerção injustificável. Ele deve escolher uma ou outra e tomar sua posição pelo mesmo critério. Ou ele deve dizer que existe apenas uma forma de coerção ilegal — a violência física manifesta — ou ele deve dizer que existe apenas uma forma de coerção ilegal — a recusa de troca.[7]

Além disso, criminalizar a recusa de se trabalhar equivale a criar uma sociedade de escravidão generalizada. Consideremos outro exemplo que Hayek apressadamente rejeita por ser não coercivo: “Não haverá coerção, por exemplo, se um convite para uma festa estiver condicionado a determinados padrões de conduta ou de indumentária”.[8] No entanto, como o professor Hamowy demonstrou, este caso pode muito bem ser considerado “coerção” segundo o próprio critério de Hayek. Pois,

pode ser que eu seja uma pessoa extremamente apegada à minha reputação social e minha ausência nesta festa ameaçaria muito minha posição social. Ademais, meu paletó está na lavanderia e não ficará pronto nesta semana . . . porém, a festa é amanhã. Sob estas condições, não poderia ser dito que a atitude do anfitrião de exigir que eu use os meus trajes formais como o preço para entrar em sua casa é, na verdade, uma atitude coerciva, visto que ela claramente ameaça a preservação de uma das coisas que eu mais valorizo, o meu prestígio social?

Além disso, Hamowy indica que, caso o anfitrião demandasse, como um preço para ser convidado à festa, “que eu limpasse toda a prataria e a louça usadas na festa”, Hayek, ainda mais evidentemente, teria que chamar este contrato voluntário de “coercivo” segundo seu próprio critério.[9]

Numa tentativa de refutar a crítica incisiva de Hamowy, Hayek acrescentou posteriormente que “para constituir coerção, também seria necessário que a ação do repressor colocasse o coagido em uma posição que ele considere pior do que aquela em que estaria sem aquela ação”.[10] Porém, conforme salienta Hamowy em sua resposta, isto não salva a recusa ilógica, por parte de Hayek, em adotar o óbvio disparate de se chamar um convite condicional a uma festa de “coercivo”. Pois,

o caso que acabou de ser descrito parece igualmente satisfazer essas condições; pois, enquanto é verdade que, em certo sentido, o meu suposto anfitrião expandiu o meu campo de alternativas por meio de seu convite, a situação como um todo (que deve incluir a minha incapacidade de adquirir um traje formal e a minha consequente frustração) do meu ponto de vista é pior do que a situação que prevalecia antes do convite, com certeza pior do que a que prevalecia antes de o meu suposto anfitrião decidir dar uma festa exatamente naquela data.[11]

Consequentemente, Hayek e o resto de nós somos obrigados a fazer uma de duas coisas: ou restringir rigorosamente o conceito de “coerção” à invasão da pessoa ou propriedade de outro por meio do uso ou ameaça de violência física; ou riscar completamente do mapa o termo “coerção” e simplesmente definir “liberdade” não como a “ausência de coerção”, mas como a “ausência de violência física agressiva ou da ameaça dela”. Hayek de fato reconhece que “a coerção pode ser de tal modo definida que se transforma em um fenômeno universal e inevitável”.[12] Infelizmente, sua deficiência “de caminho do meio” de não restringir a coerção estritamente à violência provoca uma rachadura que se espalha por todo o seu sistema de filosofia política. Ele não pode salvar este sistema ao tentar distinguir, apenas quantitativamente, entre formas de coerção “suaves” e “mais severas”.

Outra falácia fundamental do sistema de Hayek não é só a sua definição de coerção além do campo da violência física, mas também não ter conseguido distinguir entre coerção ou violência “agressiva” e “defensiva”. Há toda uma diferença de gênero entre violência agressiva — assalto ou roubo — contra outra pessoa e o uso de violência para alguém se defender ou defender sua propriedade dessa agressão. A violência agressiva é criminosa e injusta; a violência defensiva é totalmente justa e apropriada; a primeira invade os direitos da pessoa e de propriedade, a segunda defende contra esta invasão. Porém, Hayek mais uma vez deixa de fazer esta crucial distinção qualitativa. Para ele, existem apenas graus relativos, ou quantidades, de “coerção”. Deste modo, Hayek declara que “a coerção, de qualquer modo, não pode ser completamente evitada porque a única maneira de impedi-la é pela ameaça de coerção”.[13]

A partir disso, ele continua agravando o erro ao acrescentar que “A sociedade livre tem resolvido esse problema conferindo o monopólio da coerção ao estado e tentando limitar esse poder a circunstancias em a ação do estado é necessária para impedir a coerção exercida pelos indivíduos”.[14] Todavia, não estamos comparando aqui diferentes graus de uma massa indefinida que pode ser chamada de “coerção” (mesmo se a definirmos como “violência física”). Pois nós podemos evitar completamente a violência agressiva prevenindo-a por meio da compra de serviços de agências de defesa que são autorizadas a usar somente a violência defensiva. Nós não ficaremos abandonados aos martírios da “coerção” se definirmos tal coerção somente como violência agressiva (ou, alternativamente, se abandonarmos o termo “coerção” por completo e mantivermos a distinção entre violência agressiva e defensiva).

A segunda frase crucial de Hayek no parágrafo acima agrava muito mais o seu erro. Em primeiro lugar, em todo e qualquer acontecimento histórico, a “sociedade livre” nunca “conferiu” qualquer monopólio de coerção ao estado; jamais existiu qualquer forma de “contrato social” voluntário. Em todos os acontecimentos históricos, o estado se apoderou, por meio do uso da violência agressiva e da conquista, deste monopólio da violência na sociedade. E mais, o que o estado tem não é tanto um monopólio de “coerção”, mas sim de violência agressiva (assim como defensiva), e este monopólio é estabelecido e mantido por meio do emprego sistemático de duas formas específicas de violência agressiva: imposto para a obtenção da renda do estado e a criminalização compulsória de agências de violência defensivas concorrentes dentro da extensão territorial conquistada pelo estado. Então, uma vez que a liberdade requer a eliminação da violência agressiva na sociedade (ao passo que preserva a violência defensiva contra possíveis invasores), jamais se pode justificar que o estado é um defensor da liberdade. Pois o estado sobrevive em virtude de seu emprego predominante e duplo da violência agressiva contra a verdadeira liberdade e propriedade dos indivíduos que ele supostamente deveria defender. O estado é qualitativamente injustificado e injustificável.

Deste modo, a justificação de Hayek para a existência do estado bem como o seu uso do imposto e outras medidas de violência agressiva baseiam-se em sua indefensável eliminação da distinção entre violência agressiva e defensiva e em sua aglutinação de todas as ações violentas com a rubrica única de graus variados de “coerção”. Mas isto não é tudo. Pois, no decorrer da elaboração de sua defesa do estado e da ação estatal, Hayek não apenas amplia o conceito de coerção para além da violência física; ele também limita injustificadamente o conceito de coerção de modo a excluir certas formas de violência física agressiva. A fim de “limitar” a coerção do estado (i.e., para justificar a ação do estado dentro destes limites), Hayek declara que a coerção é minimizada ou até mesmo deixa de existir se os decretos sustentados na violência não são pessoais e arbitrários, mas se são promulgados sob a forma de regras gerais e universais, conhecidas por todos com antecedência (o “império da lei”). Assim, Hayek afirma que

A coerção que um governo ainda precisará usar . . . é reduzida ao mínimo, tornando-se tão inócua quanto possível, graças às restrições impostas por normas gerais conhecidas, de maneira que um indivíduo, na maioria das vezes, nunca precisará sofrer coerção, a não ser que se coloque numa situação em que saiba que será coagido. Mesmo quando não se pode evitar a coerção, ela é privada de seus efeitos mais prejudiciais quando se restringe a deveres limitados e previsíveis ou, pelo menos, quando é independente da vontade arbitrária de outra pessoa. Tornando-se essa coerção impessoal e dependente de normas gerais abstratas, cujos efeitos sobre os indivíduos não podem ser previstos na época em que as normas são estabelecidas, até os atos coercivos do governo se transformam em dados pelos quais o indivíduo pode pautar seus próprios planos.[15]

O critério da “possibilidade de ser evitada” de Hayek para ações alegadamente “não coercivas”, embora violentas, é exposto sem rodeios como se segue:

Desde que tenha prévio conhecimento de que, ao agir de determinada maneira, sofrerei coerção, e desde que possa evitar tal conduta, nunca serei coagido. Pelo menos na medida em que as normas coercitivas não visem à minha pessoa, mas sejam formuladas de modo a ser igualmente aplicáveis a todos os cidadãos em situações semelhantes, elas não se distinguem de qualquer obstáculo natural que possa afetar meus planos.[16]

Mas, conforme o professor Hamowy salienta vigorosamente:

Resulta disso que, se o Senhor X me avisa que ele irá me matar se eu comprar alguma coisa do Senhor Y, e se os produtos disponíveis na loja do Senhor Y também estão disponíveis em outro local (provavelmente na loja do Senhor X), esta ação da parte do Senhor X não é coerciva!

Pois comprar do Senhor Y é “evitável”. Hamowy continua:

A possibilidade de se evitar a ação é suficiente, de acordo com este critério, para estabelecer uma situação teoricamente idêntica a uma em que uma ameaça simplesmente não ocorre. A parte ameaçada não está menos livre do que ela estava antes de a ameaça ter sido feita se ela pode evitar a ação daquele que o ameaçou. De acordo com a estrutura lógica deste argumento, “ameaçar coerção” não é uma ação coerciva. Assim, se eu sei com antecedência que serei atacado por uma gangue se eu passar por certa vizinhança, e se eu posso evitar aquela vizinhança, então eu nunca fui coagido pela gangue. . . . Consequentemente, alguém poderia considerar a vizinhança dominada pela gangue. . . algo similar a um pântano infestado por pragas, ambos obstáculos evitáveis, nenhum visando pessoalmente a mim . . .

— e portanto, para Hayek não “coercivos”.[17]

Deste modo, o critério da “possibilidade de ser evitada” de Hayek para determinar se existe ou não coerção leva a um enfraquecimento evidentemente absurdo do conceito de “coerção” e à inclusão de ações agressivas e evidentemente coercivas sob uma rubrica não coerciva benigna. E, mesmo assim, Hayek está até disposto a excluir o seu próprio critério deficiente da “possibilidade de ser evitada” em relação ao governo; pois ele reconhece que o imposto e o serviço militar, por exemplo, são, e deveriam ser, “inevitáveis”. Mas eles também se tornam “não coercivos” porque:

Tais atos são pelo menos previsíveis, visto que o estado os impõe independentemente de outros planos que o indivíduo tenha quanto ao emprego de suas energias; o que os isenta, em grande parte, da natureza malévola da coerção. Se a conhecida necessidade do pagamento de uma certa porcentagem de impostos se tornar um parâmetro pelo qual eu possa traçar meus planos, se o serviço militar for um período previsível de minha existência, então poderei programar minha vida e ser tão independente da vontade de outros indivíduos quanto se tornou possível em sociedade.[18]

O disparate de se considerar regras gerais, universais (“igualmente aplicáveis”) e previsíveis como sendo um critério, ou uma defesa para a liberdade individual, quase nunca foi revelada tão incisivamente.[19] Pois isto significa que, e.g., se existe uma lei governamental geral em que todas as pessoas devem ser escravizadas por um ano a cada três anos, então esta escravidão universal não é de forma alguma “coerciva”. Então, em que sentido as regras gerais hayekianas são superiores ou mais libertárias do que qualquer caso concebível de normas impostas por caprichos arbitrários? Vamos pressupor, por exemplo, duas possíveis sociedades. Uma é regida por uma vasta rede de leis gerais hayekianas, igualmente aplicáveis a todos, e.g., leis como: todos devem ser escravizados a cada três anos; ninguém pode criticar o governo, sob pena de morte; ninguém pode beber bebidas alcoólicas; todos devem se ajoelhar virados para Meca três vezes ao dia em determinadas horas; todos devem usar determinado uniforme verde etc. É evidente que esta sociedade, embora satisfaça totalmente o critério de Hayek de um império da lei não- coercivo, é completamente despótica e totalitária. Em contraste, vamos pressupor uma segunda sociedade que é totalmente livre, onde toda pessoa é livre para empregar sua pessoa e propriedade, realizar trocas etc. da maneira que ela achar melhor, exceto que, uma vez por ano, o monarca (que não faz absolutamente nada o resto do ano), comete um ato de invasão arbitrária contra um indivíduo que ele escolhe. Qual sociedade deve ser considerada mais livre, mais libertária?[20]

Assim, vemos que Os Fundamentos da Liberdade de Hayek não podem de maneira alguma fornecer o critério ou o princípio fundamental para um sistema de liberdade individual. Além das definições de “coerção” gravemente defeituosas, uma falha fundamental na teoria de direitos individuais de Hayek, como salienta Hamowy, é que eles não se originam em uma teoria moral ou em “algum acordo social não governamental independente”, mas, ao contrário, eles emanam do próprio governo. Para Hayek, o governo — e o seu império — da lei cria direitos, ao invés de ratificá-los ou defendê-los.[21] Não é de se admirar que, no decorrer de seu livro, Hayek endosse uma longa lista de ações governamentais que claramente invadem os direitos e as liberdades dos cidadãos individuais.[22]
[1] F.A. Hayek, Os Fundamentos da Liberdade (Editora Visão Ltda. – Editora Universidade de Brasília, 1983).

[2] Ibid., págs. 17,145–146.

[3] Ibid., pág. 148.

[4] Ibid., pp. 149–50.

[5] Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, pág. 149.

[6] Além disto, conforme o professor Ronald Hamowy demonstra em uma crítica brilhante do conceito de coerção de Hayek, e do “império da lei”,

nos deparamos com o que parece ser um problema insuperável — o que seria um preço “razoável”? Por “razoável” Hayek pode querer dizer “competitivo”. Mas como é possível determinar qual o preço competitivo na ausência de competição? A ciência econômica não pode prever a magnitude cardinal de nenhum preço de mercado na ausência de um mercado. Qual é então o preço que devemos considerar “razoável”, ou, indo direto ao ponto, em que preço o contrato altera a sua natureza e se torna um caso de “coerção”? É de um centavo por litro, de um dólar por litro, de dez dólares por litro? E se o dono da nascente não exigisse nada além da amizade dos colonos? Este “preço” é coercivo? Através de que princípio podemos decidir quando o acordo é um contratual simples e quando ele não é?

Além do mais, conforme afirma Hamowy,

devemos enfrentar ainda uma dificuldade adicional. Será que o dono estaria agindo coercivamente caso se recusasse a vender sua água a qualquer preço? Suponha que ele considere sua nascente sagrada e sua água, santa. Oferecer a água aos colonos contrariaria suas profundas crenças religiosas. Aí está uma situação que não se enquadra na definição de coerção de Hayek, já que o dono da nascente não força nenhuma ação aos colonos. Contudo, ficaria parecendo que, dentro da própria estrutura de Hayek, esta é uma situação muito pior, já que a única “escolha” que resta agora aos colonos é morrer de sede.

Ronald Hamowy “Freedom and the Rule of Law in F.A. Hayek,” Il Politico (1971–72): 355–56. Veja também Hamowy, “Hayek’s Concept of Freedom: A Critique,” New Individualist Review (abril 1961): 28–31.

Para o último trabalho sobre este assunto, veja Hamowy, “Law and the Liberal Society: F.A. Hayek’s Constitution of Liberty,” Journal of Libertarian Studies 2 (inverno 1978): 287-97; e John N. Gray, “F.A. Hayek on Liberty and Tradition,” Journal of Libertarian Studies 4 (outono 1980).

[7] Murray N. Rothbard, Power and Market, 2nd ed. (Kansas City: Sheed Andrews e McMeel, 1977), págs. 228–30.

[8] Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, págs. 148–49.

[9] Hamowy, “Freedom and the Rule of Law,” págs. 353–54.

[10] F.A. Hayek, “Freedom and Coercion: Some Comments on a Critique by Mr. Ronald Hamowy,” Studies in Philosophy, Politics, and Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1967), pág. 349.

[11] Hamowy, “Freedom and the Rule of Law,” pág. 354n.

[12] Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, pág.152.

[13] Ibid., pág. 21. Uma falácia de Hayek aqui é defender que, se a coerção injusta é errada, então ela deveria ser minimizada. Ao invés disto, sendo imoral e criminosa, a coerção injusta deveria ser completamente proibida. Quer dizer, a questão não é minimizar certa quantidade (coerção injusta) por qualquer meio possível, incluindo novos atos de coerção injusta; a questão é impor uma rigorosa atitude restritiva a todas as ações. Para esta distinção, veja Robert Nozick, “Moral Complications and Moral Structures,” Natural Law Forum (1968): lff.

[14] Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, pág. 17.

[15] Ibid., pág. 18.

[16] Ibid., pág. 156.

[17] Hamowy, “Freedom and the Rule of Law,” págs. 356–57, n. 356. De fato, em Os Fundamentos da Liberdade, pág. 156, Hayek afirma categoricamente que

Quando diz respeito apenas a circunstâncias conhecidas que podem ser evitadas pelo objeto potencial de coerção, o tipo de coerção a que me refiro tem efeito muito diferente do da coerção verdadeira e inevitável. A grande maioria das ameaças de coerção a que uma sociedade livre tem de recorrer inclui-se neste tipo de coerção que pode ser evitada.

Conforme salienta o professor Watkins, de acordo com o critério que diz que uma situação não é coerciva quando ela é evitável, uma pessoa pode ser confrontada por uma

“lei geral abstrata, igualmente aplicável a todos” que proíba a viagem para o exterior; e suponha que ela tenha um pai doente no exterior que quer visitar antes que ele morra. Sob o argumento de Hayek, não existe nenhuma coerção nem perda de liberdade aqui. Este agente não está sob o domínio da vontade de ninguém. Ele está somente se confrontando com o fato de que, se ele tentar ir para o exterior, ele será detido e punido.

J.W.N. Watkins, “Philosophy,” em A. Seldon, ed., Agenda for a Free Society: Essays on Hayek’s The Constitution of Liberty (London: Institute for Economic Affairs, 1961), págs. 39–40.

[18] Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, pág. 156–57.

[19] Sobre o problema de a lei universal mudar conforme mais e mais tipos de circunstâncias específicas são incluídos na lei, veja G.E.M. Anscombe, “Modern Moral Philosophy” Philosophy 33 (1958): 2.

[20] Para uma crítica completa do critério da generalidade, igualdade de aplicação e previsibilidade do império da lei de Hayek, bem como as exceções admitidas pelo próprio Hayek, veja Hamowy, “Freedom and the Rule of Law,” págs. 359–76. Isto inclui a crítica fundamental de Bruno Leoni de que, dada a existência (a qual Hayek aceita) de uma legislatura que muda as leis diariamente, não existe nenhuma lei “previsível” ou fixa em qualquer dado momento; não existem certezas ao longo do tempo. Veja Bruno Leoni, Freedom and the Law (Princeton, N.J.: D. Van Nostrand, 1961), pág. 76.

[21] Veja Hamowy, “Freedom and the Rule of Law,” pág. 358.

[22] Em seu mais recente tratado, Hayek não lida com o problema da coerção ou da liberdade. Ele, no entanto, tenta, de passagem, fazer frente à crítica de Hamowy e de outros ao emendar seu conceito de leis gerais e certas para isentar atos e ações solitários que não são “direcionados a outros”. Enquanto o problema de leis religiosas pode ser evitado, a maioria dos problemas da discussão acima não envolve ações interpessoais e, portanto, continuam a impedir que o império da lei de Hayek seja um baluarte da liberdade individual. F.A. Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 1(Chicago: University of Chicago Press, 1973), págs. 101–2,170n. Em geral, o novo livro de Hayek é uma retratação bem-vinda da anterior fé na legislação e um retorno aos métodos de julgar encontrados na lei comum; no entanto, a analise é danificada gravemente por uma ênfase predominante dada ao propósito de a lei ser “realizadora de satisfações”, que ainda se concentra em fins sociais ao invés de na justiça dos direitos de propriedade. Aqui é relevante a discussão anterior da teoria de “transferência de títulos” VS. a teoria de contratos das expectativas; veja págs. 133–48 anteriores.

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Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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Maurício J. Melo on Bem-estar social fora do estado
Maurício J. Melo on A guerra do Ocidente contra Deus
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Ex-microempresario on O bombardeio do catolicismo japonês
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Marco Antônio F on Anarquia, Deus e o Papa Francisco
Carola Megalomaníco Defensor do Clero Totalitário Religioso on Política é tirania por procuração
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Francês on O mistério continua
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