A economia austríaca é superior ao marxismo em todos os aspectos, inclusive em suas radicais rixas internas. Sempre que nós austríacos sentimos que o momento é adequado para mais uma sangria — emagrecer o gado de vez em quando é algo que nos mantém fortes —, decidimos debater sobre o sistema bancário de reservas fracionárias.
Se você nunca teve o prazer o de assistir a tais “explosões”, veja essa recente postagem de Joe Salerno no blog do Mises Institute; há links suficientes para lhe deixar inteirado de tudo rapidamente. No presente artigo, quero fornecer um exemplo simples porém capaz de fazer todo mundo entender exatamente por que alguns de nós creem que o sistema bancário de reservas fracionárias é algo claramente bizarro.
É óbvio que esquisitice não é prova de dubiedade, muito menos de fraude; mas os bancos que praticam reservas fracionárias de fato “criam dinheiro do nada”. E fazem isso de uma maneira que, creio eu, poucas pessoas — inclusive comentaristas econômicos — de fato percebem. A intenção deste artigo é a de, no mínimo, esclarecer qual é o problema ostensivo com esse arranjo.
Um exemplo simples
Imagine que um adolescente, Fernando, está vistoriando o sótão de sua casa e encontra $1.000 em cédulas que estavam guardadas em um cofre. Fernando fica extasiado e corre até o banco mais próximo, onde ele abre uma conta-corrente e nela deposita os pedaços de papel pintado que achou.
Sob um sistema bancário com 100% de reservas, esse seria o final da história. Ao fazer o depósito, a quantidade de dinheiro em posse de Fernando iria diminuir em $1.000, ao passo que seu dinheiro em conta-corrente iria aumentar $1.000. O ato de colocar dinheiro no banco não iria afetar a quantidade total de dinheiro na economia.
Entretanto, no atual sistema monetário, o banco de Fernando veria aí uma nova oportunidade de lucro. Após o banco colocar os $1.000 de papel-moeda em seu cofre, suas reservas aumentariam nessa mesma quantia, ao mesmo tempo em que seu passivo também aumentaria em $1.000 (a nova conta-corrente aberta por Fernando). Supondo que nesse país os bancos estão sujeitos a um compulsório de 10%, esse banco teria agora reservas em excesso totalizando $900 (dos $1.000 depositados, $100 ficam retidos no Banco Central e $900 ficam livres para o banco fazer o que quiser).
Se o banco encontrar um tomador de empréstimos (mutuário) confiável, ele poderia legalmente conceder-lhe um empréstimo nessa quantia ($900).
Suponha que o banco encontre uma mutuária, Juliana, e lhe cobre 5% de juros por um empréstimo de 12 meses. Supondo que ela pague o empréstimo corretamente, veja como ficaria o balancete do banco ao longo das várias etapas do processo:
I. Balancete do Banco após o depósito de Fernando |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.000 em dinheiro no cofre | $1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando) |
II. Balancete do Banco após o empréstimo concedido a Juliana |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.000 em dinheiro no cofre
$900 empréstimo para Juliana a 5% por 12 meses |
$1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando)
$900 (conta-corrente recém-criada de Juliana) |
III. Balancete do Banco após Juliana gastar seu empréstimo com seus empreendimentos |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$100 em dinheiro no cofre
$900 empréstimo para Juliana a 5% por 12 meses |
$1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando) |
IV. Balancete do Banco após Juliana vender seus produtos por $1.000 em dinheiro e depositar a receita em sua conta |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.100 em dinheiro no cofre
$900 empréstimo para Juliana a 5% por 12 meses |
$1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando)
$1.000 (saldo da conta-corrente de Juliana) |
V. Balancete do Banco após Juliana quitar seu empréstimo mais os juros |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.100 em dinheiro no cofre | $1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando)
$55 (saldo da conta-corrente de Juliana) $45 em patrimônio dos acionistas do banco |
Como nosso exemplo hipotético[1] deixa claro, com o poder do sistema bancário de reservas fracionárias, os bancos podem aparentemente obter renda absolutamente do nada! Enquanto Fernando mantiver seu dinheiro depositado no banco, e enquanto Juliana for capaz de, com seus empreendimentos, obter receitas suficientes para pagar seu empréstimo, não dando calote, os acionistas desse banco ganharão, após os 12 meses, $45 oriundos da comunidade econômica local, livres e limpos.
Vale frisar: o banco não apontou uma arma para ninguém, e os proprietários originais desses $45 deram voluntariamente essa quantia para Juliana em troca dos bens ou serviços que ela produziu, quaisquer que tenham sido eles. Contudo, algo parece um pouco estranho: o banco criou $900 em dinheiro novo, ganhou $45 em dinheiro “velho” que estava em posse da comunidade local, e então destruiu os $900 quando Juliana quitou seu empréstimo.
Incidentalmente, é exatamente por causa dessas estranhas maquinações que muitos críticos do atual sistema financeiro descrevem-no como “dinheiro baseado em dívidas”. Para falar a verdade, se as pessoas parassem de pegar novos empréstimos (com os bancos) e quitassem todos os empréstimos pendentes, a quantidade total de dinheiro iria encolher drasticamente. Em minha opinião, isso seria algo bom — principalmente se os políticos e o banco central deixassem isso acontecer —, porém, ainda assim, trata-se de uma característica bastanteesquisita do nosso atual sistema.
Criando dinheiro do nada?
Algumas pessoas negam que os bancos comerciais “criam dinheiro do nada”. Elas concordam que o banco centralfaz isso quando compra ativos em posse dos bancos (como títulos públicos) e apenas acrescenta dinheiro na conta destes bancos, sem que este tenha saído de alguma outra conta. Entretanto, no nosso exemplo acima, parece que o banco em questão está, na pior das hipóteses, pegando $900 do “dinheiro de Fernando” e entregando-o para Juliana. Claro, tal atitude pode ser dúbia, mas pelo menos não é tão flagrante quanto o banco central literalmente criar cifras do nada, certo?
Em verdade, creio que essa explicação típica dos manuais de macroeconomia — na qual cada banco cria em sequência novos empréstimos iguais a 90% do novo depósito recebido — é um tanto quanto enganosa. Não há nada no compulsório estabelecido pelo banco central para impedir que os bancos façam novos empréstimos que sejam grandes múltiplos de um novo depósito. Ao contrário, é a prudência da parte dos bancos que impõe essa contenção.
Para vermos isso, vamos repetir a história acima, mas dessa vez com o banco fazendo um empréstimo muito mais volumoso para Juliana:
I. Balancete do Banco após o depósito de Fernando |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.000 em dinheiro no cofre | $1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando) |
II. Balancete do Banco após o empréstimo concedido a Juliana |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
$1.000 em dinheiro no cofre
$9.000 empréstimo para Juliana a 5% por 12 meses |
$1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando)
$9.000 (conta-corrente recém-criada de Juliana) |
Paremos nesse ponto. Vamos considerar o que aconteceu. O balancete do banco ainda está fechando — $10.000 em ativos e $10.000 em passivo. Portanto, a cabeça do contador não irá explodir em decorrência do vultoso empréstimo concedido a Juliana.
Entretanto, será que nesse cenário atualizado o banco está desrespeitando o compulsório de 10% estabelecido pelo banco central? Novamente, não — quando o ocorre o empréstimo a Juliana, o saldo total nas contas-correntes dos (dois) clientes desse banco é de $10.000, e o banco possui $1.000 em dinheiro físico em seu cofre, “lastreando” essas contas-correntes. Portanto, o banco está satisfazendo os 10% determinados pelo compulsório.
Para entender por que o banco teria de ser tolo para fazer esse empréstimo de $10.000 para Juliana após receber os $1.000 em dinheiro de Fernando, precisamos olhar um passo adiante:
III. Balancete do Banco após Juliana gastar seu empréstimo com seus empreendimentos |
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Ativos | Passivos + Patrimônio dos Acionistas |
– $8.000 em dinheiro no cofre
$9.000 empréstimo para Juliana a 5% por 12 meses |
$1.000 (saldo da conta-corrente de Fernando)
$0 (saldo da conta-corrente de Juliana) |
Agora vemos o problema: presumivelmente, Juliana não irá pegar $9.000 emprestado a juros apenas para deixar essa quantia parada em sua conta-corrente. Ela certamente irá gastar o dinheiro, sacando-o por meio de cheques ou cartão de débito. As pessoas que receberem esses cheques irão depositá-los em suas respectivas contas-correntes, o mesmo ocorrendo para o uso do cartão de débito. E, durante as rotineiras operações de compensação interbancária, o banco original irá receber pedidos para transferir $9.000 de suas reservas.
Aqui podemos entender por que os livros-texto padrão de macroeconomia mostram os bancos fazendo somente novos empréstimos iguais a 90% da quantia recém-depositada. A suposição é a de que o novo depositante não irá sacar seu dinheiro em um futuro próximo, mas que o novo mutuário (ou seja, a pessoa pegando empréstimo)irá retirar esse dinheiro muito brevemente.
Sejamos claros, portanto, quanto à moral da história: nesse segundo cenário — o qual não viola o compulsório estabelecido pelo banco central (embora possa violar as exigências de capital da Basiléia ou outras regulamentações) —, o banco está de maneira bastante óbvia “criando dinheiro do nada”.
Considere: o banco recebeu $1.000 em cédulas de dinheiro de Fernando. Ato contínuo, fez um empréstimo de $9.000 para Juliana. Esse novo dinheiro não veio de algum lugar específico; ele surgiu tão logo o bancário alterou os números nos registros contábeis do banco. Juliana, que até então tinha $0 em sua conta-corrente, passou a ter $9.000 de um instante para o outro, ao simples apertar de um botão.
Conclusão
Neste artigo, trilhamos um simples exemplo para ilustrar a estranha natureza do sistema bancário de reservas fracionárias. Em um sentido real, esse processo cria dinheiro do nada. Essa observação, por si só, não prova sua ilegitimidade, tampouco sua conexão com os ciclos econômicos. Porém, ela deveria ser suficiente para causar alguma hesitação naqueles que não veem nada de errado com essa prática.
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Notas
[1] Nas tabelas acima, tecnicamente, com a passagem do tempo, o valor de mercado do empréstimo concedido a Juliana aumentaria em relação a seu valor inicial de $900. Quando o empréstimo fosse quitado, sua apreciação seria compensada por um igual aumento no patrimônio dos acionistas no lado direito do balancete. (Em outras palavras, o patrimônio dos acionistas iria aumentar gradualmente para $45 ao longo do ano; ele não iria repentinamente pular de $0 para $45 quando Juliana quitasse o empréstimo.) Mas essa complicação foi negligenciada para que o exemplo acima pudesse ser mantido o mais simples possível.