Um dos traços mais característicos do pensamento católico ao longo dos séculos sempre foi a ênfase na razão. A mente do homem, de acordo com esta tradição, é capaz de apreender e compreender toda a ordem que existe no mundo, ordem essa que está fora de sua mente. O homem é capaz de abstrair “pressupostos universais” de uma miríade de objetos e dar um sentido aos vários fenômenos que lhe rodeiam. Com isso, ele é capaz de encontrar ordem no caos dos dados dispersos ao seu redor. Neste aspecto, o ser humano se difere dos animais, que não têm essa capacidade racional.
Para um católico, Deus e a Bíblia são teleológicos, o que significa dizer que, segundo ambos, as coisas têm propósitos. Por exemplo, não cabe ao homem definir, de acordo com suas vontades arbitrárias, os propósitos do casamento e da sexualidade. Deus pune aqueles homens que ignoram, em nome de seus próprios caprichos, a ordem e o propósito que Ele construiu em Sua criação. Católicos, em geral, nunca foram nominalistas: eles não consideravam a vontade de Deus como sendo algo absolutamente impenetrável, e nem Suas leis morais como sendo essencialmente arbitrárias. Determinadas ações não se tornavam boas só porque Deus havia dito que eram boas; Deus havia dito que eram boas porque elas eram boas. Assim, desde o mundo físico até o mundo dos preceitos morais, Deus se mostrava perfeitamente racional e metódico.
O mercado e a mão de Deus
Ao longo da história da Igreja, vários pensadores escolásticos viam as mãos da divina providência na bela ordem e harmonia criada pelo livre mercado e pela divisão do trabalho — um acréscimo, devo dizer, àquela ordem existente no âmbito físico que São Paulo e a teologia católica como um todo sempre apontaram como evidência da existência de Deus e de sua bondade.
O cardeal jesuíta Juan de Lugo, perguntando-se qual seria o preço de equilíbrio, já no ano 1643 chegou à conclusão de que o equilíbrio dependia de um número tão grande de circunstâncias específicas que apenas Deus seria capaz de sabê-lo (“Pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum”). Outro jesuíta, Juan de Salas, referindo-se às possibilidades de saber informações específicas do mercado, chegou à conclusão de que todo o mercado era tão complexo que “quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum” (somente Deus, e não o homem, pode entendê-lo exatamente).
Os pensadores iluministas viam a regularidade dos fenômenos naturais como sendo uma emanação dos decretos da Providência, e quando esses mesmos pensadores descobriram uma regularidade semelhante na ação humana e na esfera econômica, eles interpretaram essa realidade como sendo mais uma evidência do zelo paternal do Criador do universo. Os liberais diziam que o funcionamento do mercado livre, no qual o consumidor — isto é, qualquer cidadão — é o soberano, produz melhores resultados do que os decretos de governantes sagrados. Observem o funcionamento do sistema de mercado, diziam eles, e lá descobrirão a mão de Deus.
O grande economista liberal clássico (e católico) do século XIX Frédéric Bastiat descreveu as consequências desta constatação em sua obra publicada postumamente Economic Harmonies:
Se existem leis gerais que agem de maneira independente das leis escritas, e se o único poder das leis escritas é decretar se elas são legais ou não, então é imperativo estudarmos estas leis gerais. Se elas podem ser objeto de investigação científica, então existe algo que pode ser chamado de ciência econômica.
Por outro lado, se a sociedade é uma invenção humana, se os homens são meras matérias inertes, e se um grande gênio — como disse Rousseau — tem de transmitir sentimento e vontade, movimento e vida a estes homens, então não pode haver algo chamado ciência econômica: existe apenas um indefinido número de arranjos possíveis e casuais, e o destino das nações dependerá exclusivamente do pai fundador a quem a população, por puro acaso, incumbir seu destino.
O problema com a Doutrina Social da Igreja
A principal dificuldade com boa parte daquilo que passou a ser chamado de ‘Doutrina Social da Igreja’ desde a publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, é que tal conjunto de ensinamentos pressupõe que a vontade humana é o suficiente para resolver questões econômicas, e que os ensinamentos e as conclusões das leis econômicas podem ser tranquilamente ignorados.
Com efeito, assim como a Escola Historicista Alemã à qual Ludwig von Mises se opôs, os proponentes da doutrina social efetivamente negam a própria existência de leis econômicas. Por conseguinte, as pessoas que seguem tal corpo de pensamento rejeitam por completo o papel da razão em avaliar as consequências de políticas econômicas “progressistas” e em compreender a ordem e a harmonia que podem existir em fenômenos complexos (neste caso, nos fenômenos de mercado).
Esta atitude é contraditória porque vai diretamente contra toda a tradição intelectual católica, segundo a qual o homem deve adequar suas ações à realidade, e não embarcar na impossível e tola tarefa de forçar o mundo a se adequar aos seus desejos. Os seguidores deste corpo de pensamento desejam obrigar a realidade a apresentar resultados que não podem ser efetivados apenas pela vontade.
Consequentemente, um seguidor da doutrina social da Igreja irá fornecer declarações do tipo: “É bom que as famílias prosperem. Consequentemente, a adoção de tal política [aumento da tributação sobre os mais ricos, aumento do salário mínimo, legislação antitruste, mais regulamentações etc.] é moralmente obrigatória.” Em outras palavras, queremos X, portanto devemos fazer Y. (A conexão entre X e Y muitas vezes é apenas implícita, mas está lá). Mas e se 1) Y afastar você de X; 2) houver melhores maneiras de se chegar a X sem usar Y; ou ambos?
O corpo da doutrina social católica é repleto de tais declarações, de tal forma que não é fácil fazer uma distinção entre princípios básicos e recomendações. O problema, naturalmente, é que todas estas recomendações são contestáveis, muito embora um grande número de proponentes da doutrina social passe a lamentável impressão de que todas elas já foram decididas, e que apenas alguns teimosos, por algum motivo egoísta, obstinadamente se recusam a assentir.
Assim, por exemplo, a ideia de que todo homem deve ganhar um salário alto o bastante que lhe permita sustentar sua família e dar a ela um razoável conforto representa um objetivo social desejável. Já a sugestão de que tal resultado pode ser criado por decreto — isto é, a sugestão de que a vontade do homem pode estabelecer tal situação simplesmente porque ele quer que isso aconteça, e que as leis econômicas não são válidas para ajudar a prever o provável resultado de tais medidas — é totalmente ilógica. Tal postura é tão intelectualmente defensável quanto a sugestão de que o desejo humano de voar torna supérflua qualquer necessidade de levar em consideração a lei da gravidade.
Defender a estipulação de um valor salarial mínimo que permita o consumo de vários bens tido como essenciais para uma família é uma das bandeiras da doutrina social da Igreja. A alegação é que isso irá ajudar as famílias mais pobres e que, de quebra, o aumento do consumo delas irá “estimular o crescimento econômico” — como se simplesmente sair consumindo coisas pudesse tornar a sociedade mais próspera, ou como se mais gastos em consumo fosse exatamente o que o estado devesse estimular.
É claro que tal política salarial é recomendada com a genuína intenção de melhorar a vida das pessoas. Porém, se sabemos que tal política sugerida tenderá a piorar a situação geral, pois ela irá (entre outras coisas) aumentar o desemprego, então não apenas é lícito, como também é moralmente obrigatório do ponto de vista da obediência católica, se opor a ela.
Adicionalmente, se sabemos que o funcionamento normal de uma economia de livre mercado baseada na propriedade privada já possui uma inerente tendência natural a gerar contínuos aumentos salariais (ver aqui,aqui e aqui), então certamente este é mais um argumento em favor de se rejeitar a ideia de imposição de um determinado valor salarial mínimo e de se defender um arranjo de livre mercado baseado na propriedade privada (arranjo este em que ninguém tem a permissão de roubar ou de agredir inocentes).
E há ainda outras situações paradoxais. Sempre que você defende a economia de livre mercado dizendo que tal arranjo é o mais condizente a gerar prosperidade, os adeptos da doutrina social são rápidos em dizer criticamente que a prosperidade material não é tudo. No entanto, quando alguns bispos progressistas divulgam aqueles seus pavorosos manifestos contendo “sugestões” de políticas econômicas, eles deixam perfeitamente claro que estão advogando políticas que visam a melhorar a situação material das pessoas. Eles acreditam que a intervenção estatal irá deixar as pessoas em uma situação materialmente melhor. Sendo assim, se somos “materialistas”, então todo defensor da doutrina social também o é. Nada contra. O debate, portanto, deve se concentrar na abordagem econômica dos bispos. Se ela irá ou não gerar a prosperidade prometida.
A encíclica Populorum Progressio (1967) do Papa Paulo VI, por exemplo, foi além das observações morais que se pode fazer sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo e passou a de fato sugerir recomendações políticas, colocando dessa forma os católicos na injusta posição de aparentar “dissidência” em relação ao Papa ao proporem alternativas. Peter Bauer, o profético economista que alertou durante décadas sobre os efeitos perniciosos que os programas de ajuda internacional teriam sobre as nações do Terceiro Mundo, observou que não havia nada de particularmente católico, ou mesmo cristão, na encíclica, e que ela estava meramente repetindo, com algumas nuanças religiosas, o pensamento convencional.
Hoje sabemos o quão desastrosas foram as recomendações da Populorum: as ajudas internacionais fortificaram os piores regimes políticos , atrasaram indefinidamente as reformas necessárias e destroçaram dezenas de países, com vários grupos étnicos e raciais recorrendo à violência para tentar se apropriar de parte do dinheiro das ajudas internacionais. A própria ideia da ajuda internacional introduziu incentivos perversos a essas sociedades; tornou-se insensato criar coisas que satisfizessem os desejos de seus conterrâneos, pois era mais racional dedicar esforços improdutivos para fazer campanhas que lhe garantissem mais dinheiro externo. Por outro lado, Hong Kong, Chile e Coréia do Sul só se tornaram prósperos depois que a ajuda internacional foi interrompida e eles foram forçados a adotar políticas econômicas racionais e sensatas.
Paulo VI também adotou a badalada tese de Raul Prebisch e Hans Singer, que dizia que uma deterioração secular dos termos de troca entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento — sempre em detrimento deste último — era uma inevitabilidade, pois havia a suposta tendência de os preços dos bens manufaturados (especialidade dos países desenvolvidos) subirem e, ao mesmo tempo, os preços das commodities (especialidade dos países em desenvolvimento) caírem. Entretanto, essa suposta deterioração dos termos de troca nunca ocorreu, como o economista Gottfried Haberler já vinha argumentando dez anos antes da Populorum Progressio, se alguém se deu ao trabalho de escutar. Mas foi baseando-se nessa tese errônea que Paulo VI condenou o livre comércio, negando que este fosse um caminho para a prosperidade do mundo em desenvolvimento. (Curiosamente, hoje são os países desenvolvidos que condenam o livre comércio, argumentando que ele é prejudicial para os países ricos e benéfico para os países pobres). Os países que seguiram a tese Prebisch/Singer ficaram muito atrás daqueles que se integraram à divisão internacional do trabalho. Não há como negar isso.
Teria sido uma “dissidência” dizer que o erro factual do Papa acerca dos termos de troca era realmente um erro factual? Seria “dissidência” ter apontado que essas recomendações não lograriam o efeito a que se propunham? Deveríamos acreditar que a autoridade papal sobre assuntos de fé e moral se estende também a análises de causa e efeito aplicadas a programas de ajuda internacional? Essas perguntas se respondem a si próprias.
É um dever moral apontar os erros e corrigi-los
A infalibilidade papal é válida para questões de moral e fé, e não para questões econômicas. Um católico não deve negar a autoridade moral do Papa, mas ele também não tem de levar a ferro e fogo toda e qualquer recomendação econômica da Santa Sé. Por um bom tempo, vários católicos sofreram com a ideia de que não concordar com algumas sugestões de política econômica emitidas pela Santa Sé ou por prelados ao redor do mundo seria uma espécie de desobediência aos ensinamentos da Igreja.
Nenhum católico deve apoiar uma política que seja intrinsecamente má. A ideia é simplesmente que, quando existem várias alternativas moralmente lícitas, escolher uma delas é uma questão de inteligência, de bom juízo e de exercício adequado da razão. Se eu posso recomendar um método de se alcançar um determinado fim, e se este método não for inerentemente imoral e for muito mais efetivo do que qualquer alternativa sugerida por alguns líderes católicos (sendo que cada uma delas iria piorar a situação), então não há nada de especialmente subversivo em se oferecer esta sugestão.
O próprio Papa Leão XIII reconheceu isto quando disse que,
Se eu tivesse de me pronunciar sobre qualquer aspecto de um problema econômico vigente, estaria interferindo na liberdade de os homens lidarem com seus próprios afazeres. Determinados casos devem ser resolvidos no campo dos fatos, caso por caso, na medida em que vão ocorrendo…. [O]s homens precisam realizar tais afazeres por meio de suas próprias obras, e este princípio está além de qualquer questionamento…. [E]ssas coisas devem ser solucionadas ao longo do tempo e da experiência.
Deixe-me ser bem claro: aqueles católicos que são seguidores das teorias da Escola Austríaca de economia, como eu, não estão exigindo que os papas façam pregações sobre economia austríaca desde a Cátedra de Pedro. Ninguém que conheça a evolução do pensamento econômico dos membros da igreja ao longo dos séculos ousaria afirmar que há apenas uma visão que constitui a “visão católica da economia”. Contra aqueles que sugerem que um católico deve abordar assuntos econômicos de apenas uma maneira, o professor Daniel Villey nos lembra que “a teologia católica não exclui o pluralismo de opiniões a respeito de assuntos profanos”. Católicos austríacos não dizem que “a nossa ciência econômica é a única católica”; apenas dizemos que aquilo que defendemos e ensinamos não apenas não vai contra o catolicismo tradicional, como na verdade é profundamente compatível com ele.
Existe uma profunda semelhança filosófica entre o catolicismo e o brilhante edifício de verdades encontrado na Escola Austríaca de economia. O método austríaco da praxeologia deveria ser especialmente atraente para o católico. Carl Menger e principalmente Mises e seus seguidores procuraram fundamentar princípios econômicos baseando-se em verdades absolutas, verdades perceptíveis por meio de uma reflexão sobre a natureza da realidade. O que, dentre tudo o que existe nas ciências sociais, poderia ser mais compatível à mente católica do que isto?
Igualmente, a economia austríaca nos revela um universo de ordem, cuja estrutura podemos compreender por meio de nossa razão. Como explicou o professor Jeffrey Herbener, “Uma abordagem causal-realista da economia surgiu no meio cristão porque era somente naquele meio que os estudiosos concebiam a natureza como uma ordem interconectada, uma ordem criada no fluxo do tempo por Deus, uma ordem criada do nada e governada por leis naturais determinadas pelo próprio Deus, leis estas que o intelecto humano seria capaz de descobrir e utilizar para entender a natureza com o objetivo de dominá-la para a glória de Deus.” A alternativa seria aquele mundo de John Stuart Mill, que postulou ser perfeitamente possível encontrar algum lugar no universo onde dois mais dois não fossem quatro — uma visão que, nas palavras de Herbener, “está fundamentada na ideia metafísica de que o universo não é uma criação sistemática e ordeira.” Qual destas duas visões é a mais compatível com o catolicismo não é difícil de ser discernido.
Conclusão
Grande parte dos conselhos econômicos apresentados como sendo parte integrante da doutrina social da Igreja ao longo do último século sofre de sérios defeitos de lógica e possui assertivas factualmente errôneas. Tal posição, independente de seus proponentes perceberem ou não, representa o triunfo da vontade sobre o intelecto, a substituição da análise racional das leis da interação social pela vontade arbitrária, além de ignorar as inevitáveis consequências da violenta interferência sobre esta interação social. Tal postura, além dos danos que ela causa à riqueza vigente na economia, é completamente estranha à Igreja Católica, uma instituição que sempre enfatizou a capacidade da mente de perceber a (e se deleitar com a) regularidade e a sistematicidade do mundo criado por Deus e de saber se adequar a esta criação divina.
A verdade, dizem os catecismos católicos, consiste na adequação da mente à realidade. A “doutrina social” católica, por outro lado, demanda com grande frequência que o homem permita que seus meros desejos e sentimentos formem seu juízo a respeito de questões econômicas. Avaliar as consequências de medidas econômicas com o auxílio das leis econômicas, e olhar para o âmbito econômico reconhecendo nele a ordem e a regularidade que a própria Igreja diz serem reflexos da perfeição do próprio Deus — esta é a postura católica.
Santo Agostinho certa vez disse: “In fide, unitas; in dubiis, libertas; in omnibus, caritas” (na fé, unidade; em questões incertas, liberdade; em todas as coisas, caridade). A demanda por caridade e o desejo de ajudar ao próximo tornam imperativo que não defendamos políticas econômicas insensatas que só irão prejudicar justamente aqueles a quem queremos ajudar.