A Europa está imersa em confusão mais uma vez. A crise da dívida soberana ameaça se espalhar da Irlanda para Portugal e Espanha. Tudo começou com a crise financeira. Antes da crise financeira, vários governos da Zona do Euro, mais notavelmente os de Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha (PIIGS), vinham conseguindo financiar seus déficits a taxas de juros artificialmente baixas. Alguns já tinham acumulado níveis insustentáveis de endividamento público.
Esse imprudente comportamento fiscal só havia sido possível porque os mercados partiram do princípio de que, se as situações desses países piorassem, seus governos seriam socorridos pelos outros países da Zona do Euro, com o intuito de evitar um colapso do euro. Em outras palavras, o euro foi criado com uma implícita garantia de socorro, o que permitiu que os governos se entregassem gostosamente ao endividamento. A garantia implícita estava e ainda está arraigada em interesses políticos. Um fracasso do euro seria interpretado como um fracasso da ideia de centralização européia — isto é, um fracasso da União Européia. Esse fracasso é considerado algo politicamente inaceitável.
Munidos dessa garantia implícita, muitos governos não atacaram os problemas estruturais de suas economias, tais como mercados de trabalho pouco competitivos ou sistemas assistencialistas insustentáveis. Eles simplesmente encobriram esses problemas com déficits orçamentários. Quando veio a crise financeira, os déficits aumentaram acentuadamente em decorrência do aumento dos gastos públicos e da queda nas receitas. Os déficits explodiram não apenas nos PIIGS (os candidatos a receber os pacotes de socorro), mas também nos países que supostamente deveriam pagar os custos do socorro aos governos dos PIIGS (principalmente a Alemanha).
Foi nesse ponto que os participantes do mercado quiseram ver algo mais do que promessas implícitas. Eles começaram a duvidar de que a Alemanha e os outros países seriam capazes de socorrer os governos dos PIIGS, muito menos de que estivessem dispostos a tal. As taxas de juros pagas pelos títulos das dívidas dos PIIGS dispararam. Finalmente, em maio de 2010, os governos da Zona do Euro tiveram de transformar a implícita garantia de socorro em algo explícito. Eles então criaram um fundo de resgate de 750 bilhões de euros.
Causas
O fundo de resgate possui um período limitado a três anos. No final de outubro, a chanceler alemã Angela Merkel deixou claro que o período seria estendido apenas se houvesse uma reforma que fizesse com que os detentores das dívidas dos governos participassem nos custos do futuro socorro. Em outras palavras, a Alemanha ameaçou retirar parte da garantia explícita de socorro que havia dado aos investidores privados que haviam comprado os títulos das dívidas dos governos. Os investidores poderiam sofrer perdas nos socorros que viessem após 2013. Como consequência dessa medida, os investidores começaram a vender os títulos dos governos dos PIIGS. Os juros aumentaram.
A atenção do mercado voltou-se para a Irlanda. Estima-se que o governo irlandês terá um déficit de incríveis 32,5% do PIB em 2010, e a dívida total do governo já está em 80% do PIB após seguidos aumentos nos gastos públicos com o intuito de amparar seu insolvente sistema bancário.
Embora seu déficit seja monstruoso, os problemas irlandeses são um tanto distintos dos problemas fiscais que assolam os outros governos dos PIIGS. Estes sofrem com altos déficits públicos estruturais causados por insustentáveis gastos assistencialistas e por um mercado de fatores de produção (principalmente mão-de-obra) pouco competitivo, engessado por leis trabalhistas rigorosas. Os governos, mais nitidamente o grego, incorreram em déficits orçamentários para estimular artificialmente o padrão de vida de sua população. Os déficits financiaram os desempregados, os funcionários públicos e os pensionistas; e toda essa gastança serviu para sustentar seus inflexíveis mercados de trabalho.
Mas não foi bem isso que ocorreu na Irlanda. De certa forma, a Irlanda era competitiva até demais. A Irlanda possui a menor alíquota de imposto de renda de pessoa jurídica em toda a União Econômica e Monetária Européia, de meros 12,5%. A carga tributária atraiu bancos de todo o mundo para a ilha, onde eles expandiram seus negócios. Como consequência, o setor bancário da Irlanda expandiu-se substancialmente. Durante os anos de bonança, os bancos auferiram enormes lucros em decorrência do privilégio de poderem expandir o crédito através de suas reservas fracionárias, além de contarem com o implícito apoio do governo, que garantia socorro em caso de problemas. Como resultado da expansão do crédito, uma bolha imobiliária irlandesa foi criada. E seu subsequente estouro provocou substanciais prejuízos e até mesmo a insolvência de vários bancos irlandeses.
Ao passo que os lucros bancários durante a bonança eram privados, seus prejuízos foram socializados no dia 30 de setembro de 2008, quando o governo irlandês deu garantias a todos os passivos bancários. Agora no final de 2010, a Irlanda injetou aproximadamente 50 bilhões de euros em seu sistema bancário. Os problemas irlandeses foram criados não por um excessivo estado assistencialista, mas sim pela socialização dos prejuízos de um privilegiado sistema bancário.
O socorro ao governo irlandês
O socorro irlandês irá custar 85 bilhões de euros a uma subsidiada taxa de juros de 5,8%. Parte disso poderá ser utilizada para criar um fundo para o sistema bancário irlandês. O socorro fará com que o cidadão irlandês, por meio de seus impostos, seja responsável por pagar por empréstimos que servirão para cobrir os prejuízos dos bancos. A população irlandesa, obviamente, se opôs a isso. Os irlandeses entenderam que o dinheiro do resgate servirá principalmente para sustentar não o padrão de vida dos funcionários públicos, dos desempregados ou dos pensionistas — como é o caso da Grécia —, mas sim para sustentar o padrão de vida dos banqueiros.
Devido à resistência, o governo irlandês decidiu adiar as eleições gerais para somente depois que o orçamento já tiver sido aprovado. O orçamento inclui um aumento no imposto sobre vendas, de 21 para 23%. Efetivamente, a população irlandesa está obrigada a assumir as dívidas dos bancos, tendo de quitá-las ao longo dos anos vindouros. Nenhum voto democrático sobre a questão constará nas cédulas, pois os irlandeses certamente iriam votar contra.
Por que os governos da Zona do Euro pressionaram a Irlanda para pedir o socorro?
Primeiro, os juros sobre os títulos dos PIIGS estavam aumentando. Após o anúncio dos planos de reforma da chanceler alemã Merkel, os investidores começaram a temer que teriam prejuízos com esses títulos. Os governos da Zona do Euro acreditavam que, ao socorrerem a Irlanda e mostrarem determinação, eles retirariam a pressão sobre Portugal. Portugal — com problemas estruturais similares ao da Grécia — é uma peça chave porque os bancos espanhóis investiram grandes somas em Portugal. Se Portugal caísse, o sistema bancário espanhol cairia junto. Se a situação chegasse a esse ponto, o fundo de resgate já estaria exaurido e a situação, incontrolável. Com o intuito de interromper essa reação em cadeia, a Irlanda foi pressionada a aceitar o socorro.
Segundo, era importante socorrer os bancos irlandeses porque os bancos ingleses, franceses e alemães haviam investido somas vultosas na Irlanda. Os prejuízos irlandeses poderiam destruir o capital dos bancos europeus e derrubar todo o sistema bancário europeu — e, por conseguinte, seus governos.
Porém, como o governo irlandês poderia ser “convencido” a aceitar o socorro, mesmo sabendo que a população irlandesa era radicalmente contra? Por que o governo irlandês iria pedir socorro mesmo tendo anunciado ter fundos suficientes para até meados de 2011? Havia dois instrumentos com os quais pressionar o governo irlandês.
O primeiro é o financiamento que os bancos irlandeses recebem do Banco Central Europeu (BCE). Desde a crise financeira, os bancos irlandeses passaram a depender de empréstimos feitos pelo BCE. Sem esses empréstimos, os bancos irlandeses iriam à falência, o que implicaria tremendas perdas para o governo irlandês, o qual sempre garantiu os empréstimos de seus bancos. Com efeito, Jean-Claude Trichet, presidente do BCE, mencionou — durante os dias em que o governo irlandês ainda resistia a um socorro — que o BCE não estava disposto a ficar estendendo para sempre os empréstimos emergenciais aos bancos irlandeses.
O segundo instrumento foi a ameaça alemã de retirar todas as suas garantias. Tão logo a Alemanha retire suas garantias para governos da Zona do Euro excessivamente endividados, esses governos certamente irão à bancarrota em decorrência do inevitável aumento que haverá nos juros dos títulos de sua dívida. Desta forma a Alemanha pode pressionar países periféricos a fazer reformas ou aceitar pacotes de socorro.
Efeitos
Pode o socorro irlandês interromper a reação em cadeia? Não parece. Os juros dos títulos portugueses e espanhóis continuam subindo. Se a Irlanda for socorrida, alguém terá de pagar a conta. Os governos da Zona do Euro terão de pagar juros ainda maiores sobre suas próprias dívidas em decorrência do fardo adicional causado pelos empréstimos à Irlanda. Desde que o socorro se tornou iminente, até mesmo os juros sobre os títulos do governo alemão aumentaram.
O socorro irlandês na verdade irá enfraquecer os países remanescentes. Um socorro à Irlanda aumenta as obrigações de Portugal (e, por conseguinte, os juros sobre suas dívidas) e poderia desencadear um socorro português. Um socorro a Portugal, por sua vez, iria aumentar o peso da dívida da Espanha e de outros países, o que poderia desencadear um socorro à Espanha. E assim por diante, até o ponto em que os investidores parassem de acreditar que os países remanescentes podem ou estão dispostos a arcar com os pacotes de socorro.
Outro efeito importante do socorro é o declínio da democracia na Irlanda. O governo irlandês foi pressionado a aceitar o socorro. A população irlandesa foi proibida de votar contra.
Finalmente, o socorro levará à centralização do poder na União Européia. Os políticos europeus já determinam, indiretamente, qual deve ser o orçamento irlandês. Por exemplo, eles dão ordens ao governo irlandês para aumentar impostos, como o imposto sobre vendas. Eles também vêm colocando enorme pressão sobre o governo irlandês para que ele abandone sua política de baixos impostos sobre pessoa jurídica, política essa que vários políticos europeus classificam como sendo “dumping fiscal”. Nesse ponto, pelo menos, o governo irlandês vem resistindo.
No curto prazo, é possível ver alguns aspectos positivos no fato de se ter um arranjo em que as políticas fiscais são determinadas por Bruxelas ou indiretamente pela Alemanha. Quando a Alemanha ou Bruxelas dizem à Espanha, à Grécia ou à Irlanda para reduzirem seus déficits, o resultado para as pessoas que vivem nesses países pode ser uma redução no tamanho do governo — no curto prazo. Porém, tal centralização de poder na UE provavelmente se comprovará desastrosa para a liberdade no longo prazo. Os intervencionistas europeus hoje alegam que, pelo fato de haver um banco central para todos, é preciso haver uma política econômica para todos.
Um fator que frequentemente atrapalha as tentativas dos governos de aumentar seus poderes via aumentos nos impostos ou nas regulamentações é o fato de ainda haver concorrência de outros governos. Se os impostos ficarem muito altos em um país, os agentes econômicos irão fugir para outros países com impostos mais baixos (como a Irlanda, com seu baixo imposto de renda de pessoa jurídica). Porém, se a política econômica for toda centralizada na União Européia, essa limitação sobre o poder dos governos será eliminada. Os políticos europeus já estão falando sobre uma harmonização das políticas fiscais e sobre referenciais para alíquotas de impostos. Se as políticas fiscais forem harmonizadas, haverá uma tendência rumo a um aumento do poder de Bruxelas e, por conseguinte, um aumento das alíquotas de impostos por toda a Zona do Euro.
O euro pode ser salvo, mas ao custo de se construir um estado europeu forte e centralizado, com as decisões políticas sendo transferidas para Bruxelas em troca de pacotes de socorro. A turbulência produzida pelo euro terá então servido como um instrumento para a criação de um poderoso estado central na Europa.