InícioUncategorizedA Ciência Econômica e o Método Austríaco

A Ciência Econômica e o Método Austríaco

4. A praxeologia e os fundamentos praxeológicos da epistemologia II

Voltemo-nos a solução de Mises. Qual é a condição lógica de uma típica proposição econômica como a lei da utilidade marginal (que sempre que a oferta de um bem, cujas unidades são consideradas de utilidade homogênea por uma pessoa, aumenta em uma unidade, o valor agregado a esta unidade deve diminuir pois ela só pode ser usada como um meio para se alcançar um objetivo que é considerado menos valioso do que o último objetivo alcançado anteriormente por uma unidade deste bem); ou da teoria quantitativa da moeda (que sempre que a quantidade de moeda é aumentada enquanto a demanda por moeda para ser mantida em encaixe permanece a mesma, o poder de compra da moeda irá diminuir)?

Ao formular sua resposta, Mises enfrentou um duplo desafio. Por um lado, havia a resposta oferecida pelos empiristas modernos. A Viena que Ludwig Von Mises conhecia era na verdade um dos núcleos pioneiros do movimento empirista: um movimento que se encontrava na iminência de estabelecer-se como a filosofia acadêmica dominante no mundo ocidental, uma predominância que duraria por muitas décadas, e que mesmo nos dias de hoje exerce grande influência na imagem que uma esmagadora maioria de economistas faz de sua própria disciplina. [41]

O empirismo considera a natureza e as ciências naturais seus modelos. De acordo com o empirismo, os exemplos de proposições econômicas mencionados acima possuem a mesma condição lógica das leis da natureza: Assim como as leis da natureza elas expressam relações hipotéticas entre dois ou mais eventos, basicamente na forma de declarações do tipo se/então. E assim como as hipóteses das ciências naturais, as proposições da ciência econômica requerem contínuos testes vis-à-vis experiência. Uma proposição referente a relação entre eventos econômicos jamais pode ser absolutamente validada de uma vez por todas. Ao invés disso, ela está eternamente sujeita ao resultado de possíveis experiências futuras. Estas experiências podem confirmar a hipótese. Mas isto não provaria que a hipótese é verdadeira, já que a proposição econômica teria usado termos gerais (na terminologia filosófica: universais) em sua descrição dos eventos relatados, e, portanto, se aplicaria a um número indefinido de casos ou exemplos, deste modo sempre deixando margem para que futuras experiências as refutem. Tudo que uma confirmação provaria é que ainda não foi revelado que a hipótese é falsa. Por outro lado, a experiência pode refutar a hipótese. Isto certamente provaria que alguma coisa estava errada com a hipótese da maneira que ela foi elaborada. Mas isto não provaria que as relações hipotetizadas entre os eventos descritos jamais poderiam ser encontradas.  Isto apenas mostraria que levando em conta e controlando durante as observações apenas o que até então tenha sido realmente levado em conta e controlado, a relação ainda não foi revelada. No entanto, não pode ser descartado que ela poderia ser revelada tão logo alguma outra circunstância venha a ser controlada.

A postura que esta filosofia incentiva, e que de fato se tornou característica da maioria dos economistas contemporâneos e de seus modos de conduzir suas tarefas, é uma de ceticismo: o lema é “não se pode ter certeza de que nada seja impossível no campo dos fenômenos econômicos”. Mais precisamente, uma vez que o empirismo considera que os fenômenos econômicos são dados objetivos, estendendo-se no espaço e sujeitos a medições quantificáveis-numa analogia perfeita aos fenômenos das ciências naturais-o ceticismo peculiar dos economistas empiristas pode ser descrito como o de um engenheiro social que não dará certeza de nada. [42]

O outro desafio veio por parte da escola historicista. Na verdade, durante o período que Mises morou na Áustria e na Suíça, a filosofia historicista era a ideologia dominante das universidades de língua alemã e de suas elites acadêmicas. Com a ascensão do empirismo, esta proeminência se reduziu consideravelmente. Porém, mais ou menos na última década o historicismo ganhou força novamente no mundo acadêmico ocidental. Hoje ele nos acompanha em toda parte sob nomes como hermenêutica, retórica, desconstrucionismo e anarquismo epistemológico.[43]

Para o historicismo, e isto é ainda mais fácil de ser notado em suas versões contemporâneas, o modelo não é a natureza e sim um texto literário. Os fenômenos econômicos, segundo a doutrina historicista, não são magnitudes objetivas que possam ser medidas. Ao invés disso, elas são expressões e interpretações subjetivas desenrolando-se na história para serem compreendidas e interpretadas pelo economista do mesmo modo que um texto literário desenrola-se diante de seus leitores e é interpretado por eles. Sendo criações subjetivas, a sequência de seus eventos não segue nenhuma lei objetiva. Tanto em textos literários quanto na sequência de expressões e interpretações históricas, nada é regido por relações constantes. Logicamente, certos textos literários realmente existem, do mesmo modo que certas sequências de eventos históricos também existem. Mas isto de maneira alguma quer dizer que nada deveria ter acontecido da maneira que aconteceu. Simplesmente aconteceu. Do mesmo modo que alguém sempre pode inventar histórias literárias diferentes, a história e a sequência de eventos históricos também poderiam ter acontecido de uma maneira completamente diferente. Além disso, segundo o historicismo, sendo ainda mais visível em suas versões hermenêuticas modernas, a formação destas expressões humanas e suas interpretações sempre relacionadas por acaso, também não são regidas por nenhuma lei objetiva.  Na produção literária qualquer coisa pode ser expressada ou interpretada; e, seguindo a mesma linha, eventos históricos e econômicos podem ser qualquer coisa que alguém expresse ou interprete que eles sejam, e, portanto suas descrições feitas pelo historiador e economista podem ser qualquer coisa que ele expresse ou interprete que estes eventos passados subjetivos tenham sido.

A postura que a filosofia historicista suscita é a do relativismo. Seu lema é “tudo é possível”. Sem ser limitada por nenhuma lei objetiva, pois a história e a ciência econômica historicista-hermenêutica, juntamente com a crítica literária, são questões de estética. E consequentemente, seu resultado toma a forma de averiguações a respeito do que alguém sente em relação ao que acha que foi experimentado por outra pessoa-uma forma literária que só estamos acostumados a ver em campos como da sociologia e das ciências políticas.[44]

Acredito que intuitivamente seja possível perceber que tem alguma coisa muito errada tanto na filosofia empirista quanto na historicista. Suas considerações epistemológicas sequer parecem se conformar com os modelos propostos por elas mesmas: a natureza por um lado e os textos literários por outro. E de qualquer modo, com relação a proposições econômicas tais como a lei da utilidade marginal ou da teoria quantitativa da moeda, suas considerações parecem completamente absurdas. Certamente, ninguém considera que a lei da utilidade marginal seja uma lei hipotética, eternamente sujeita a ter sua validação confirmando ou desconfirmando experiências que apareçam por ai. E é algo totalmente ridículo imaginar que o fenômeno referido na lei seja de magnitudes quantificáveis. Ainda pior é a interpretação historicista. É absurdo achar que a relação entre os eventos referidos na teoria quantitativa da moeda possa ser desfeita se alguém assim desejar. E igualmente absurda é a idéia de que conceitos como moeda, demanda por moeda e poder de compra são formados sem nenhuma restrição objetiva e se referem apenas a criações subjetivas volúveis. Ao invés disso, contrário a doutrina empirista, os dois exemplos de proposições econômicas aparentam ser logicamente verdadeiros e se referir a eventos que são subjetivos na natureza. E ao contrário do que afirma o historicismo, pareceria que o que eles declaram seria impossível de ser desfeito em toda a história e conteria distinções conceituais que, enquanto se referem a eventos subjetivos, seriam, no entanto objetivamente restritos, e incorporariam conhecimento universalmente válido.

Como a maioria dos mais proeminentes economistas antes dele, Mises também compartilhava destas intuições. [45] Todavia, na busca das fundamentações da ciência econômica, Mises vai além da intuição. Ele enfrenta o desafio proposto pelo empirismo e pelo historicismo de reconstruir sistematicamente as bases pelas quais essas intuições possam ser entendidas como corretas e justificadas. Ele não pretende com isso colaborar com o surgimento de uma nova disciplina econômica. Porém, ao explicar o que até então era apenas entendido intuitivamente, Mises vai muito além do que qualquer coisa que já tinha sido feita antes. Ao reconstruir as fundamentações racionais das intuições dos economistas, ele nos garante o caminho apropriado para qualquer desenvolvimento futuro na ciência econômica e nos protege de erros intelectuais sistemáticos.

Logo no início de sua reconstrução Mises nota que o empirismo e o historicismo são doutrinas autocontraditórias.[46] A idéia empirista de que todos os eventos, naturais ou econômicos, são relacionados apenas hipoteticamente é negada pela própria mensagem desta  proposição empirista básica: Pois se esta própria proposição fosse apenas hipoteticamente considerada verdadeira, i.e., uma proposição hipoteticamente verdadeira relativa a proposições hipoteticamente verdadeiras, ela sequer poderia ser considerada um pronunciamento epistemológico. Pois deste modo ela não forneceria nenhuma justificação para a alegação de que as proposições econômicas não são, e nem podem ser, categoricamente, ou a priori, verdadeiras, da maneira que nossa intuição nos diz que elas são.  No entanto, se assumíssemos que a própria premissa básica empirista fosse categoricamente verdadeira, i.e., se assumíssemos que podemos dizer alguma coisa verdadeira a priori sobre a maneira que os eventos são relacionados, então isto iria contradizer a própria tese de que o conhecimento empírico deve ser invariavelmente um conhecimento hipotético, criando assim condições para que uma disciplina como a ciência econômica reivindique produzir conhecimento empírico válido a priori. Além disto, a tese empirista de que os fenômenos econômicos devem ser concebidos como magnitudes observáveis e mensuráveis-análogos àqueles das ciências naturais-torna-se inconcludente, igualmente devido a suas próprias implicações: Pois, obviamente, o empirismo pretende nos fornecer um conhecimento empírico significativo quando ele nos diz que nossos conceitos econômicos são baseados em observações. Não obstante, os próprios conceitos de observação e medição, os quais os empiristas devem empregar ao reivindicar suas afirmações, obviamente não são derivados de experiências que fazem uso de observações, no sentido que galinhas e ovos ou maças e peras são. Não se pode observar alguém fazendo uma observação ou uma medição. Ao invés disto, deve-se primeiro entender o que são observações e medições para aí sim ser capaz de interpretar certos fenômenos observáveis como um ato de observação ou de medição. Deste modo, contrariando sua própria doutrina, o empirismo é obrigado a admitir que existe conhecimento empírico baseado em entendimento-assim como, em conformidade com nossas intuições, as proposições econômicas reivindicam ser baseadas em entendimento-ao invés de em observações.[47]

E as autocontradições do historicismo são tão evidentes quanto. Pois se, como afirma o historicismo, os eventos históricos e econômicos-os quais ele entende como sequências de eventos subjetivamente compreendidos ao invés de eventos observáveis-não são governados por nenhuma relação constante e intemporal, então esta própria proposição também não pode reivindicar dizer alguma coisa constantemente verdadeira sobre historia e economia. Ao contrário, ela seria uma proposição com um valor veritativo, por assim dizer, efêmero: ela pode ser verdadeira agora, se assim desejarmos, porém pode ser falsa num próximo momento, caso não desejarmos mais, com ninguém nunca sabendo o que desejaremos. No entanto, se fosse esta a condição da premissa historicista básica, ela obviamente também não poderia ser considerada uma epistemologia. O historicismo não teria nos fornecido nenhuma justificativa do porquê deveríamos acreditar nele. Porém, se a proposição básica do historicismo fosse considerada invariavelmente verdadeira, então esta proposição a respeito da natureza constante de fenômenos históricos e econômicos iria contradizer sua própria doutrina que rejeita qualquer tipo de constantes. Além disso, a afirmação dos historicistas-e mais ainda a de seus sucessores modernos, os hermenêuticos-de que os eventos históricos e econômicos não passam de criações subjetivas, não limitadas por nenhum fator objetivo, é demonstrada ser falsa pelo próprio enunciado que a forma. Pois evidentemente, um historicista deve assumir que esta afirmação seja verdadeira e significativa; ele deve presumir dizer algo específico sobre alguma coisa, ao invés de apenas pronunciar sons sem sentido como abracadabra. Não obstante, se for isso, então, claramente, deve-se assumir que sua afirmação é limitada por algo fora do âmbito das criações arbitrarias subjetivas. Obviamente, posso dizer aquilo que o historicista diz em inglês, alemão ou chinês, ou em qualquer outro idioma que eu queira, contanto que expressões e interpretações históricas e econômicas possam ser consideradas meras criações subjetivas. Mas qualquer coisa que eu diga, qualquer que seja o idioma, deve-se assumir que seja limitado por algum significado proposicional implícito em minha declaração, que é o mesmo para todos os idiomas, e sua existência é completamente independente de qualquer forma linguística peculiar que possa ser expressada. E ao contrário da crença historicista, a existência deste limitante não quer dizer que seja possível fazer uso dele como se desejar. Ao invés disso, ele é objetivo naquilo que podemos entender que seja a pressuposição logicamente necessária para se dizer qualquer coisa com algum significado, em oposição a apenas produzir sons sem sentido. O historicista não poderia alegar dizer nada se não fosse pelo fato de que suas expressões e interpretações são realmente limitadas por leis de lógica como a própria pressuposição de declarações significativas como esta. [48]

Com esta refutação do empirismo e do historicismo, observa Mises, as afirmações da filosofia racionalista são restabelecidas com sucesso, e fica justificada a possibilidade de declarações verdadeiras a priori, como parecem ser as da ciência econômica. Na verdade, Mises literalmente considera que suas próprias investigações epistemológicas são a continuação da obra da filosofia racionalista ocidental. Com Leibniz e Kant ele se coloca contra a tradição de Locke e Hume. [49] Ele fica ao lado de Leibniz quando replica o famoso pronunciamento de Locke de que “não existe nada no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” com o seu igualmente famoso “exceto o próprio intelecto”. E ele reconhece que sua tarefa como um filósofo da ciência econômica é absolutamente análoga a de Kant como um filósofo da razão pura, i.e., da epistemologia. Assim como Kant, Mises pretende demonstrar a existência de proposições sintéticas verdadeiras a priori, ou, proposições das quais os valores veritativos possam ser estabelecidos definitivamente, mesmo que para se chegar a isso os meios da lógica formal sejam insuficientes e as observações sejam desnecessárias.

Minha crítica ao empirismo e ao historicismo confirmou a reivindicação geral racionalista. Ela demonstrou que nós realmente possuímos um conhecimento que não é derivado da observação e ainda é limitado por leis objetivas. Na verdade, nossa refutação do empirismo e do historicismo é dotada deste conhecimento sintético a priori. Porém, de que maneira seria possível cumprir a importante tarefa de mostrar que as proposições da ciência econômica-tais como a lei da utilidade marginal e a teoria quantitativa da moeda-podem ser consideradas um conhecimento deste tipo?  Para cumprir esta missão, observa Mises em conformidade com a rigidez formulada tradicionalmente pelos filósofos racionalistas, as proposições econômicas devem obedecer dois pré-requisitos: Primeiro, deve ser possível demonstrar que elas não sejam derivadas de evidências baseadas em observações, pois estas evidências só podem revelar as coisas ao acaso; elas não contêm nada que possa indicar porque as coisas devem ser como elas são. Ao invés disso, deve-se demonstrar que as proposições econômicas são baseadas na cognição refletiva, em nosso entendimento de nós mesmos como seres inteligentes. E segundo, este entendimento refletivo deve capitular certas proposições como axiomas materiais autoevidentes. Não no sentido de que estes axiomas teriam que ser autoevidentes no sentido psicológico, ou seja, que eles teriam que ser percebidos imediatamente ou que suas veracidades dependessem de um sentimento psicológico de convicção. Pelo contrário, assim como Kant antes dele, Mises deu extrema importância ao fato de que é geralmente muito mais trabalhoso descobrir estes axiomas do que descobrir algumas verdades através de observações como a de que as folhas das árvores são verdes ou que eu tenha 1,89 metros de altura. [50] Ao invés disso, o que fazem deles axiomas materiais autoevidentes é o fato de que ninguém pode negar suas validades sem se autocontradizer, porque ao tentar negá-los alguém já estaria pressupondo sua validade.

Mises observa que ambos os pré-requisitos são obedecidos por aquilo que ele denomina como axioma da ação, i.e., a proposição de que os homens agem, de que eles manifestam um comportamento proposital.[51] Obviamente, este axioma não é derivado de observações-existem apenas movimentos corporais para serem observados e não “ações”-mas originam-se a partir do entendimento refletivo. E este entendimento é na verdade um entendimento de proposição autoevidente. Pois sua veracidade não pode ser negada, já que a própria negação teria que ser considerada uma ação. Mas isto não seria apenas uma trivialidade? E o que a ciência econômica tem a ver com isso? Logicamente, já havia sido admitido que conceitos econômicos como preços, custos, produção, moeda, crédito, etc., estavam relacionados com o fato de que havia pessoas agindo. Mas dizer que toda a ciência econômica está baseada neste tipo de proposições triviais e que pode ser reconstruída a partir delas é algo que certamente não é óbvio. Uma das maiores realizações de Mises foi ter demonstrado exatamente isto: que há insights implícitos nestes axiomas de ação triviais no sentido psicológico que não eram autoevidentes psicologicamente; e que são estes insights que fornecem a fundamentação para os teoremas da ciência econômica como proposições sintéticas verdadeiras a priori.

Com certeza não é psicologicamente evidente que um agente busca um objetivo em toda ação; e qualquer que seja este objetivo, o fato de que ele foi buscado por um agente revela que ele deve ter valorizado este objetivo relativamente mais do que qualquer outro que ele tenha considerado no momento que começou a agir. Não é evidente que, para atingir seu objetivo mais altamente valorizado, um agente deve interferir ou decidir não interferir-o que, logicamente, também é uma interferência proposital-algum momento antes a fim de produzir um resultado posterior; nem é óbvio que esta interferência implica no uso de alguns meios escassos-no mínimo o corpo do agente, o lugar que ele esteja e o tempo consumido pela ação. Não é autoevidente que, por conseguinte, estes meios também devem ter valor para um agente-um valor derivado do valor do objetivo-porque o agente deve considerar a necessidade de usá-los para efetivamente atingir o objetivo; e estas ações só podem ser executadas em uma sequência, sempre envolvendo uma escolha, i.e., adotando um curso de ação que em algum dado momento assegure os resultados mais altamente valorizados para o agente e excluindo ao mesmo tempo a busca de outros objetivos menos valorizados. Não é automaticamente evidente que como uma consequência de ter escolhido e dado preferência a um objetivo ao invés de outro-de não ser capaz de realizar todos os objetivos simultaneamente-toda e qualquer ação implica em custos, i.e., abrir mão do valor agregado ao objetivo alternativo mais valorizado que não pode ser realizado ou cuja realização deve ser adiada, porque os meios necessários para alcançá-lo estão comprometidos na produção de outro objetivo ainda mais valorizado. E finalmente, não é evidente que no seu ponto de partida, todo objetivo de uma ação deve ser considerado ter mais valor para o agente do que seus custos e ser apto a proporcionar um lucro, i.e., um resultado cujo valor é maior do que o valor da oportunidade antecedente, e ainda que toda ação também invariavelmente corre o risco de resultar em um prejuízo se um agente descobrir, em retrospecto, que ao contrário de suas expectativas o resultado que foi alcançado na prática, na verdade possui um valor menor do que o valor que a alternativa abdicada teria proporcionado.

Todas estas categorias que sabemos se tratar do próprio âmago da ciência econômica-valores, fins, meios, escolha, preferência, custo, lucro e prejuízo-estão implícitas no axioma da ação. Como o próprio axioma, elas não são derivadas da observação. Ao invés disso, o fato de sermos capazes de interpretar as observações em termos de categorias como estas requer que já tenhamos a consciência do que significa agir. Alguém que não seja um agente jamais poderia compreendê-las, pois elas não são “dados”, prontos para serem observados, mas a experiência que faz uso de observações é moldada nestes termos do jeito que é interpretada por um agente. E ao passo que elas e suas inter-relações não estavam claramente implícitas no axioma da ação, uma vez que ficou explícito que elas estavam implícitas, e de que maneira, ninguém tem mais nenhuma dificuldade em reconhecer que elas são verdadeiras a priori, no mesmo sentido que o próprio axioma. Pois qualquer tentativa de refutar a validade do que Mises restabeleceu como implícito no próprio conceito de ação teria que visar um objetivo, necessitar de meios, excluir outros cursos de ação, incorrer em custos, sujeitar o agente a possibilidade de atingir ou não o objetivo desejado e resultando assim em um lucro ou em um prejuízo. Deste modo, é inequivocamente impossível questionar ou refutar a validade dos insights de Mises. Na verdade, uma situação na qual as categorias de ação deixassem de possuir uma existência real jamais poderia ser observada ou relatada, uma vez que fazer uma observação e falar são ações.

Todas as proposições econômicas verdadeiras, e é exatamente disso que trata a praxeologia e o que consiste o grande insight de Mises, podem ser deduzidas por meio da lógica formal a partir deste conhecimento material incontestavelmente verdadeiro relativo ao significado de ação e suas categorias. Mais especificamente, todos os teoremas econômicos verdadeiros consistem de (a) um entendimento do significado de ação, (b) uma situação ou alteração de situação-que é considerada dada ou identificada como dada-e descrita em termos destas categorias de ação, e (c) uma dedução lógica das consequências-novamente em termos destas categorias-que devem ocorrer para um agente a partir desta situação ou alteração de situação. A lei da utilidade marginal, por exemplo,[52] resulta de nosso conhecimento indiscutível do fato de que todo agente invariavelmente prefere o que o satisfaz mais àquilo que o satisfaz menos, somado-se a suposição de que ele se depara com um aumento na oferta de um bem (um meio escasso) cujas unidades ele considera possuir uma utilidade homogênea, em uma unidade. Disto se segue com necessidade lógica que esta unidade adicional só pode ser utilizada como um meio para a remoção de um desconforto que é considerado menos urgente do que o objetivo menos valorizado já alcançado anteriormente por uma unidade deste bem. Contanto que não tenha nenhum erro no processo de dedução, as conclusões que podem ser obtidas pela teorização econômica, que não diferem no caso da lei da utilidade marginal ou no caso de qualquer outra proposição econômica, devem ser válidas a priori. A validade destas proposições podem ter suas origens investigadas até se chegar em última análise ao indisputável axioma da ação. Fazer como os empiristas, afirmando que estas proposições requerem testes empíricos contínuos para serem confirmadas, é um absurdo, e um sinal de uma completa confusão mental. É tão absurdo e confuso quanto dizer o que diz o historicismo, que a ciência econômica não tem nada a dizer sobre relações constantes e invariáveis e que ela somente lida com eventos que ocorrem por acaso ao longo da história. Dizer isso significa provar que esta declaração é falsa, pois querer dizer qualquer coisa que faça sentido já pressupõe ação e um conhecimento do significado das categorias da ação.

[41] Sobre o Círculo de Viena veja V. Kraft, Der Wiener Kreis (Vienna: Springer, 1968); para interpretações empiristas-positivistas da ciência econômica veja obras características como Terence W Hutchison, The Significance and Basic Postulates of Economic Theory [Hutchison, um adepto da variante popperiana de empirismo, desde então ficou muito menos esperançoso com relação a possibilidade de uma ciência econômica baseada em Popper-veja, por exemplo, seu Knowledge and Ignorance in Economics-embora ele ainda não enxergue nenhuma outra alternativa a não ser apegar-se à falseabilidade de Popper, seja como for]; Milton Friedman, “The Methodology of Positive Economics,” em idem, Essays in Positive Economics; Mark Blaug, The Methodology of Economics; uma descrição positivista feita por um participante dos Seminários Privados de Mises em Viena é E. Kaufmann, Methodology of the Social Sciences; a predominância do empirismo na economia está documentada pelo fato de que provavelmente não existe um único livro texto que não classifique a ciência econômica explicitamente como-e de que outra forma seria?-uma ciência empírica (a posteriori).

[42] Sobre as consequências relativísticas do positivismo-empirista veja também Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, capítulo 6; idem, “The Intellectual Cover for Socialism.”

[43] Veja Ludwig Von Mises, The Historical Setting of the Austrian School of Economics (Auburn, Ala.:Ludwig von Mises Institute, 1984); idem, Erinnerungen (Stuttgart: Gustav Fischer, 1978); idem Theory and History , capítulo 10; Murray N. Rothbard, Ludwig von Mises: Scholar, Creator Hero (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1988); para uma pesquisa crucial das idéias historicistas veja também Karl Popper, The Poverty of Historicism; para um representante de uma versão mais antiga de uma interpretação historicista da economia veja Werner Sombart, Die drei National?konomien (Munich: Duncker & Humblot, 1930); para a moderna  guinada hermenêutica, Donald McCloskey, The Rhetoric of Economics (Madison: University of Wisconsin Press, 1985); Ludwig Lachmann, “From Mises to Shackle: An Essay on Austrian Economics and the Kaleidic Socicty,” Journal of Economic Literature (1976).

[44] Sobre o relativismo extremo do historicismo-hermenêutico veja Hoppe“In Defense of Extreme Rationalism,” [in .PDF]Review of Austrian Economics 3 (1988); Murray N. Rothbard, “The Hermeneutical Invasion of Philosophy and Economics[in .PDF] Review of Austrian Economics (1988); Henry Veatch, “Deconstruction in Philosophy: Has Rorty Made it the Denouement of Contemporary Analytical Philosophy,”Review of Metaphysics (1985); Jonathan Barnes, “A Kind of Integrity,” Austrian Economics Newsletter(Summer 1987); David Gordon, Hermeneutics vs. Austrian Economics (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, Occasional Paper Series, 1987); Para uma crítica brilhante da sociologia contemporânea veja St. Andreski, Social Science as Sorcery (New York: St. Martin’s Press, 1973).

[45] Com relação as visões epistemológicas de predecessores como J. B. Say, Nassau W. Senior, J. E. Caimes, John Stuart Mill, Carl Menger, and Friedrich von Wieser veja Ludwig von Mises, Epistemological Problems of Economics, págs. 17-23; também Murray N. Rothbard, “Praxeology: The Methodology of Austrian Economics,” em Edwin Dolan, ed., The Foundations of Modern Austrian Economics (Kansas City: Sheed and Ward, 1976).

[46] Em complemento as obras de Mises citadas no início deste capítulo e a literatura mencionada na nota 40, veja Murray N. Rothbard, Individualism and the Philosophy of the Social Sciences (San Francisco: Cato Institute, 1979); para uma crítica filosófica esplêndida da economia empirista veja Hollis and Nell, Rational Economic Man; como uma defesa geral particularmente valiosa do racionalismo contrapondo o empirismo e o relativismo-no entanto sem fazer referência a ciência econômica-veja Blanshard, Reason and Analysis; Kambartel, Erfahrung und Struktur.

[47] Para uma defesa elaborada do dualismo epistemológico veja também Apel, Transformation der Philosophie, 2 vols. e Habermas, Zur Logik der Sozialwissenschaften.

[48] Sobre isso especificamente veja Hoppe, “In Defense of Extreme Rationalism,” [em .PDF] Review of Austrian Economics 3 (1988).

[49] Veja Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science, pág. 12.

[50] Veja Kant, Kritik der reinen Vernunft, pág. 45; Mises Human Action. , pág. 38.

[51] Sobre o seguinte veja em particular Mises, Human Action. , capítulo 4; Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Los Angeles: Nash, 1962), capítulo 1.

[52] Sobre a lei da utilidade marginal veja Mises, Human Action. , págs. 119-27 e Rothbard, Man, Economy, and State, págs. 268-71.

 

Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo e A Economia e a Ética da Propriedade Privada.
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