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A brutalização da compaixão

Os céticos do lockdown lutaram desde o início com o que se poderia chamar de ‘questão da conspiração’. Até que ponto tudo isso – lockdown, distanciamento social, pressão por vacinação rápida e universal – foi coordenado e organizado, e havia outros motivos em ação além de um esforço ingênuo, mas bem-intencionado, para ‘parar a propagação?’

Dada a velocidade com que tudo aconteceu e a maneira como os líderes ao redor do mundo pareciam estar em sintonia, não apenas uns com os outros, mas com as das empresas de mídia social, a indústria farmacêutica e a academia, talvez seja natural que o os mais céticos sentissem que havia algo errado. Os historiadores do futuro provavelmente atribuirão a loucura da era Covid a algo muito mais prosaico e acidental: o poder das estatísticas para motivar a ação.

Lionel Trilling, o crítico literário, elucidou essa faceta de nossa natureza com eloquência característica. “Uma vez que tenhamos feito de nossos semelhantes os objetos de nosso interesse iluminado”, disse ele, algo dentro de nós nos leva a “seguir em frente e torná-los objetos de nossa piedade, depois de nossa sabedoria, em última análise, de nossa coerção”. É essa cadeia de causalidade – do conhecimento à compaixão, da compaixão à aplicação da experiência e da experiência à imposição do controle – que é mais importante para entender o lockdown e as medidas associadas. Vemos nele o padrão básico de tudo o que aconteceu naquela louca primavera de 2020.

Mas antes é importante recuar um pouco e colocar em diálogo dois pensadores que, aparentemente, têm pouco em comum: Gertrude Himmelfarb e Michel Foucault. Em sua série de palestras de 1977-78 proferidas no Collège de France, Foucault voltou sua atenção para o início do período moderno, aproximadamente 1500-1800, e a cristalização do estado moderno.

Caracteristicamente, ele adotou uma perspectiva distorcida sobre esse episódio da história. Seu interesse não estava nos eventos que levaram à formação dos primeiros estados, na Inglaterra, França e Portugal. Ele estava, antes, interessado nas condições intelectuais que tornavam possível às pessoas conceberem que algo como um estado pudesse existir em primeiro lugar. O que foi que levou as pessoas a olharem ao redor de si mesmas, notar o que havia surgido e atribuir a isso ‘soberania de estado’?

Claro que houve muitas dessas causas, mas uma das mais importantes foi a descoberta de que existia uma ‘população’ de um território – e, crucialmente, que a própria população poderia ser um campo de ação. Tinha, em outras palavras, características que poderiam ser melhoradas. Essa descoberta foi fundamental para criar o Estado, porque significava que, de repente, poderia haver interesse em governar – e a criação concomitante de muitos dos aparatos do governo moderno, como um serviço público.

Antes do início do período moderno, conta-nos Foucault, a cristandade medieval entendia o mundo como, essencialmente, um ponto de parada aguardando a Segunda Vinda, e a vida dentro dele, portanto, entendida como uma espécie de fase intermediária. Portanto, não havia interesse real em um governante melhorar a condição física das pessoas na Terra; o que realmente importava era a condição de suas almas. Mas quando a ciência e a medicina ocidentais começaram a substituir essa concepção religiosa do universo por uma concepção secular e racionalista, começou a emergir a ideia de que o mundo era de “historicidade aberta”: não era apenas um trampolim para o paraíso, mas um passado e um futuro que importavam por direito próprio. De repente, tornou-se possível conceber algo como melhoria e progresso no reino físico e, de fato, identificar neles as tarefas centrais de um governante.

Isso dependia, é claro, da ideia de que havia algo como a ‘população’ de um território e que havia características dessa população – sua taxa de pobreza, sua taxa de suicídio, sua saúde, sua alfabetização e assim por diante – que poderia ser melhorado. E dependente disso estava a emergente ciência da estatística. Por meio de estatísticas, o governante poderia não apenas identificar características da população, mas também medir como essas características mudaram ao longo do tempo – seu povo não tinha apenas uma taxa de pobreza (digamos, o número de pessoas com renda abaixo de um certo limite), mas tinha uma taxa de pobreza que poderia ser reduzida.

O desenvolvimento da estatística esteve vinculado, portanto, à concepção de população como algo que não existia apenas como uma espécie de ‘fenômeno natural’ – o conjunto de pessoas que por acaso vivia em um território –, mas que poderia ser aberto e exposto ao conhecimento do governante, que então agiria de modo a torná-la melhor. Isso levaria a uma explosão da burocracia, pois o governante procurava saber mais sobre a população e melhorar sua produtividade (mais impostos), sua saúde (melhores soldados) e assim por diante.

As estatísticas foram, portanto, primordiais no processo pelo qual surgiu o vasto aparato de governança que o Estado implanta. Mais importante, o surgimento das estatísticas foi um estímulo à ação. O simples ato de ‘conhecer’ a população era então um chamado para melhorá-la; uma vez que se ‘conhece’ sua taxa de pobreza (ou qualquer outra coisa), então a questão que inevitavelmente se segue é o que pode ser feito para alcançar a melhoria estatística.

Pode-se pensar nisso como um mecanismo de feedback positivo no qual medidas estatísticas dão origem a burocracias cujo trabalho é fazer melhorias nos fenômenos subjacentes que estão sendo medidos – o que faz com que elas gerem mais estatísticas e, assim, identifiquem mais necessidades de melhoria, e assim por diante. Assim, tornou-se necessário pensar em algo chamado ‘o Estado’ por causa da emergência orgânica de seu aparato, surgindo por meio de processos intrínsecos de desenvolvimento – algo que Foucault chamou de sua ‘governamentalização’.

O interesse de Foucault estava em como a medição da população deu origem à “biopolítica” – o exercício do poder sobre a população como se fosse um organismo, e o concomitante crescimento do interesse em particular por sua saúde. Naturalmente, dado o período em que escrevia, isso fez com que sua análise se desviasse para a lógica da raison d’Etat: ele entendia o impulso biopolítico como essencialmente envolvido em questões de como tornar o Estado mais forte (com uma vida mais saudável e população mais produtiva) do que seus rivais.

Tomando a liberdade de colocar umas palavras na boca dele, a razão pela qual a crescente burocracia estatal vê uma medida estatística como, digamos, a taxa de suicídio na população e procura ‘melhorá-la’ (reduzindo-a, neste caso), foi porque uma população com alta taxa de suicídio é aquela que é mais fraca do que seria em relação aos estados concorrentes. Isso pode, de fato, ter sido um fator importante no processo que descrevi. Mas a ênfase na raison d’Etat fez com que Foucault ignorasse a característica mais importante da biopolitização do Estado: a compaixão, ou o impulso para melhorar a situação da população como um fim em si mesmo.

Em suas duas obras-primas, A Ideia de Pobreza e Pobreza e Compaixão, Himmelfarb lança mais luz sobre a conexão entre conhecimento e ação e, em particular, o papel que a compaixão desempenhou no processo. Ela começa nos contando a história de como o problema dos “pobres” surgiu no início do período moderno e como ele animava a imaginação das classes palpiteiras da Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. No século XVI, ela nos lembra, a visão dominante sobre os pobres era que eles “estariam sempre conosco” – a pobreza era considerada o destino normal de certas classes, e até mesmo enobrecedor de seus membros. Certamente não era considerado dever do governante tornar os pobres mais ricos. No entanto, no final do século XIX, a posição havia mudado totalmente: agora era considerada uma das principais, senão a principal, tarefa do Estado melhorar as condições materiais da população.

O que aconteceu nesse ínterim, é claro, foi exatamente o processo que Foucault havia identificado. Tornou-se possível tanto conceber a população como uma coisa em si mesma, com características (como a taxa geral de pobreza) que poderiam ser melhoradas, quanto medir essa melhora com estatísticas supostamente objetivas e precisas.

Himmelfarb, no entanto, é capaz de reunir sua vasta gama de fontes filosóficas, políticas, literárias e históricas para demonstrar que o desejo de “melhorar” a taxa de pobreza (fazendo-a diminuir) não derivava em grande medida da necessidade de fazer a nação mais forte contra seus rivais. Longe disso; derivou de um desejo sincero de tornar a vida melhor para os pobres. Em outras palavras, veio de pura compaixão – do choque com o sofrimento que a pobreza trouxe consigo e o impulso correspondente para eliminar esse sofrimento. Fundamentalmente, é claro, a medição estatística da pobreza tornou tudo isso possível, porque nos deu uma razão para agir e um método pelo qual poderíamos avaliar o sucesso ou o fracasso.

O que temos aqui, é claro, é uma representação dos primeiros dois terços do esquema de Trilling. A conceituação da população como um campo de ação, e a medição do fenômeno estatístico dentro dela – a tomada de um ‘interesse esclarecido’ por ela – dá origem tanto à ‘piedade’, ou compaixão, quanto à aplicação da ‘sabedoria’ para resolver seus problemas. O que resta, é claro, é a coerção, e não precisamos ir muito longe para identificá-la nos muitos meios pelos quais o Estado moderno submete a população a uma espécie de ‘despotismo brando’ tocqueviliano, constantemente manipulando-a, seduzindo-a e manobrando-a, desta ou daquela forma, para o seu próprio bem, seja através da educação estatal obrigatória ou ‘impostos do pecado’ ou qualquer outra coisa entre eles.

Durante a era Covid, vemos o mesmo esquema em grande escala nas respostas tomadas por governos em todo o mundo. Pela primeira vez na história da humanidade, a disponibilidade de testes em massa nos permitiu nos convencer de que poderíamos medir a saúde da população, de forma holística, em tempo real, e gerar estatísticas precisas que nos permitissem fazê-lo – averiguando todo ‘caso’ ou ‘morte’.

O que aconteceu como consequência foi quase inevitável: o despertar da compaixão, ou ‘piedade’ por aqueles que estavam morrendo; a aplicação da ‘sabedoria’ para prevenir o sofrimento, na forma de uma vasta gama de ‘expertise’ (eu uso a palavra deliberadamente) empregada para nos ajudar a ‘distanciar-nos socialmente’, e mais tarde a injetar, injetar e injetar novamente e novamente; e, é claro, em última análise, coerção, nos lockdowns, nos decretos de vacinas, nas restrições de viagem e assim por diante.

É compreensível procurar identificar a conspiração em fenômenos complexos. Não há dúvida de que muitos atores ganharam com a reação histérica à pandemia de Covid e, portanto, foram desincentivados a lidar com o assunto com calma.

Aqueles de nós que querem apurar à fundo como essa confusão foi criada precisam, no entanto, vasculhar as forças mais profundas que motivam a ação social e imbuí-las de seu significado. A conexão entre a medição estatística e o impulso para agir, motivado principalmente pela compaixão (muitas vezes equivocada, mas genuína), parece-me ser a área mais sensata para pesquisar.

 

 

 

Artigo original aqui

David McGrogan
David McGrogan
é professor de Direito na Northumbria Law School.
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