Após a pandemia por COVID19 um assunto veio muito à tona. A ciência médica. Profissionais, leigos, jornalistas e especialistas de redes sociais passaram a usá-la como base para seus comentários e posicionamentos. Todos se tornaram experts no tema. Mas alguém sabe realmente a origem da ciência médica, para o que ela serve e como encará-la da forma mais proveitosa possível?
Por definição, ciência é o corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos. Ou seja, trata-se de um método para agrupar e organizar conhecimento que nos remete aos escritos aristotélicos. Episteme é a forma onde se conhece e se sistematiza o circuito das experiências repetíveis e onde se encontram os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Aliás, ciência automaticamente nos remete a Aristóteles, talvez o pai de tal definição. Afinal, toda a nossa nomenclatura de ciência é sua invenção e, para ele, não havia ocupação mais digna para o homem do que buscar conhecer e buscar compreender.
O pensamento científico aristotélico possui base forjada no silogismo, esmiuçado nas “Primeiras Analíticas”. Trata-se de uma forma de raciocínio dedutivo que visa estabelecer condições fundamentais do conhecimento científico. O raciocínio é montado em três etapas. A partir de duas premissas (maior e menor) chega-se a uma conclusão. O poder observacional do homem fez e faz com que sejamos capazes de conectar de forma extremamente eficiente a aisthesis, a mneme, a empeiria e a tekhne. Traduzindo, a sensação dá origem ao conhecimento através de simples percepções. A capacidade cognitiva permite a memória ou o poder de repetir as consequências ou ideias de um estímulo recebido. A experiência fornece a capacidade de utilizar os conhecimentos prévios para concluir sobre algo semelhante e não vivenciado. E a técnica permite resumir e transferir uma experiência a terceiros. Chegamos à episteme, ou ciência, que culmina na formidável habilidade de sobrevivência, adaptação e evolução humana. Portanto, o método científico nasceu da capacidade de observação, assimilação e transferência de conhecimento. E o mais importante. Do talento cognitivo de rever determinadas conclusões e corrigi-las a fim de obter as respostas mais satisfatórias e verídicas possíveis. Até porque, já dizia Aristóteles, um método é apenas UM caminho para se chegar a alguma coisa. E não necessariamente será o caminho correto, sendo indispensável constante revisão.
Portanto, é possível perceber que o método científico surgiu como forma de sistematizar os conhecimentos adquiridos e permitir que as experiências reais fossem passadas de forma mais efetiva e compacta de geração para geração. Nunca foi o paradigma da verdade mas sim um método adaptativo, ou seja, um constante tateamento humano sobre o inóspito mundo em que deveríamos sobreviver. Dessa forma, em que momento de nossa evolução a ciência passou a ser considerada o senhor da razão? Em que momento os criadores das ciências naturais se tornaram subservientes ao próprio método? Em que momento a frase “isso não tem comprovação científica” passou a guiar os rumos da humanidade?
Inicialmente, é importante destacar que durante grande parte da evolução humana o conhecimento possuía cunho teológico. O desconhecido, os temores e os medos acabavam por ter explicação divina. A casta dominante exercia o monopólio do saber até como forma de controlar a massa. E a carência tecnológica dificultava a verificação dos fatos. Por volta de 1620, com a revolução científica, essa sistemática passou a ser questionada. Pensadores ponderavam que o conhecimento só deveria ser considerado correto depois que houvesse a sua confirmação pela experiência e pela razão. Essa postura acabou por culminar em ideias centrais do iluminismo, que, por volta de 1715, tentava romper com o saber imposto por concepções teológicas e por costumes. Portanto, o ponto inicial do pensamento científico moderno surgiu mais como uma forma de combater a autoridade monárquica e da igreja do que efetivamente para aprimorar a maneira como podemos obter a experiência. Auguste Comte avançou nessa sistemática idealizando o positivismo. A idade científica, segundo Comte, seria o apogeu, a perfeição, e a humanidade estaria, enfim, livre da ignorância. A prepotência superaria a teologia, a filosofia e a metafísica. A metodologia técnica conduziria o ignóbil homem à plenitude. E essa corrente científica acabou por alcançar Karl Marx, que considerava a ciência como forma superior e privilegiada de conhecimento.
Pois bem. As correntes filosóficas positivistas determinaram que a ciência passaria a ser o comandante do saber. Todavia, ainda seria necessário mais um passo. Sistematizar o método científico. Dessa forma, passaram a ser elaboradas inúmeras metodologias científicas, sendo que várias delas são largamente utilizadas na medicina atual até como forma de fortalecer determinada opinião. Os inúmeros experts televisivos da COVID19 discorreram bastante sobre tal tema. Em 1948 Bradford Hill e Arhibald Cochrane realizaram o primeiro ensaio clínico controlado randomizado cego, associando a epidemiologia com a pesquisa clínica e dando inicio à medicina baseada em evidências. Com ela, ao se afirmar que certo tratamento possui comprovação científica, dá-se um selo de autenticidade que nem o ser humano mais experiente no assunto seria capaz de obter. Os especialistas se tornaram reféns de um sistema teoricamente sem falhas, o que não condiz com a opinião de Ben Goldacre. A ciência natural sempre terá alguma pequena imperfeição. Não esquecendo que para muitos uma teoria só pode ser considerada científica quando for possível provar que ela pode ser falsa. A falseabilidade de Karl Popper. Em outras palavras, só podemos afirmar que algo tem caráter científico quando for colocado constantemente à prova. Fato é que os profissionais da saúde de hoje em dia adotaram postura mecanicista, sem questionamento, sem senso crítico e totalmente calçada na existência de um ensaio clínico randomizado. A tão falada medicina baseada em evidências. Do ponto de vista filosófico, o mecanicismo aceita que o organismo se assemelhe a uma máquina, com um funcionamento pré-determinado e padrão. Ou seja, existiria previsibilidade no maquinário metabólico e em suas mazelas. Para Aristóteles, essa objetividade biológica pareceria uma piada. E de fato é. Os sistemas biológicos são produtos não da lógica, mas da evolução, um processo bem deselegante. E o resultado disso, diferentemente da lógica, acaba sendo muitas vezes irregular e caótico.
Thomas Kuhn discordava de Popper no ponto em que se definiria como ocorre a mudança de conceitos científicos. Todavia, ambos aceitavam que a ciência é mutável e adaptável e vários vieses agem na confecção de novas convicções científicas. Dessa forma, nenhum deles aceitava o fato de que ao existir comprovação indubitável sob o prisma de certa metodologia isso representaria uma verdade absoluta. Kuhn acreditava que a evolução da ciência se daria pela adoção e posterior abandono de paradigmas admitidos pela comunidade científica de determinada época. Durante certo tempo existiria estabilidade e aceitação de certos conceitos, independentemente do método científico. Todavia, em algum momento, esse paradigma passaria a ser questionado. Inicialmente, iria se tentar explicar e corrigir as dúvidas, ou seja, sanar a crise. Entretanto, depois de determinado período essas tentativas corretivas acabariam sendo frustradas, o que levaria a uma revolução científica e o surgimento de um novo paradigma. Portanto, o conhecimento iria variar conforme o contexto social e só teria sentido dentro dele. É praticamente impossível determinar de forma indubitável uma verdade. O saber sempre será parcial, já que a realidade é infinita e limitada à capacidade humana de observação, internalização e potencial tecnológico.
A medicina atual interiorizou o mecanicismo científico (conduta essa positivista) e passou a definir que o tratamento das mazelas humanas pode ser forjado sobre a interação mecânica das diferentes partes de um organismo. A transformação de um ente biológico em uma estrutura previsível acabou tornando mais fácil a confecção de alternativas terapêuticas. A metodologia científica sistematizou a procura por resultados lucrativos anexando seus fundamentos a grandes entes capitalistas. E, dessa forma, esqueceu os princípios básicos da episteme. Esqueceu que o saber é filosoficamente indissociável do meio cultural em qual ele está inserido e que independentemente da beleza de um método científico ele pode ser falível e substituível, apesar de, em certo momento, a bestialidade especializada não permitir tal percepção. As consequências dessa agressão à base da ciência se materializa da forma mais cruel possível, além de estufar a arrogância (e a ignorância) de diversos pseudoestudiosos médicos que alardeiam seus conhecimentos suportados por desfechos primários e significância estatística. A revolução científica pré-gripe espanhola no início de 1900 ilustra bem tal colocação. Parte da comunidade médica da época, extasiada com as novas descobertas, achava que o apogeu científico havia sido alcançado. A história provou que essa arrogância estava bem equivocada. Inclusive, mostrou que o saber científico do período era pífio, pois os especialistas enfrentaram uma das maiores pandemias da história sem saber que estavam lidando com um vírus.
Portanto, obviamente o conhecimento científico colabora diuturnamente com a evolução da humanidade. Todavia, devemos encará-lo como uma ferramenta e não como uma religião. A evolução tecnológica propiciou um avanço científico médico incomparável e constante e fez com que medidas terapêuticas comuns no passado pudessem concorrer a prêmios de filmes de tortura e de terror hoje em dia. Em outras palavras, seria muita ingenuidade, ignorância ou maldade acreditar que a ciência natural chegou ao seu limite e que a evolução tecnológica, do conhecimento e o surgimento de novos métodos científicos mais eficazes e fidedignos não demonstrarão, em algum momento, que, atualmente, podemos estar sendo tão danosos em certas oportunidades como nossos antepassados já foram em algum momento.
Muito bom , Dr Rafael , como sempre !