A defesa liberal clássica da liberdade contratual deriva do princípio da autonomia individual. A liberdade contratual implica o direito de celebrar ou sair de contratos à vontade. Como argumenta Richard Epstein em sua defesa do contrato à vontade:
“A primeira maneira de argumentar a favor do contrato à vontade é insistir na importância da liberdade contratual como um fim em si mesmo. A liberdade contratual é um aspecto da liberdade individual, tanto quanto a liberdade de expressão, ou liberdade na seleção de parceiros de casamento ou na adoção de crenças ou afiliações religiosas (p. 953).”
Os liberais clássicos utilitaristas, como o próprio Epstein, que concordam com ele sobre o valor da liberdade individual, defendem, portanto, o mais amplo alcance possível para a liberdade contratual. Eles só aceitariam limites a essa liberdade em casos excepcionais que Epstein define como “os raros casos em que a quitação do contrato à vontade é incompatível com o desempenho de algum dever público ou com a proteção de algum direito público”.
Em contraste, de uma perspectiva libertária dos direitos naturais, a liberdade contratual é derivada do direito à autopropriedade: “O direito de contratar é estritamente derivável do direito de propriedade privada” (Rothbard, A ética da Liberdade, p. 133). Isso implica o direito de celebrar acordos em relação a si mesmo ou a sua propriedade: “o direito de propriedade implica o direito de firmar contratos sobre essa propriedade, de doá-la ou de trocar títulos de propriedade pela propriedade de outra pessoa”.
De uma perspectiva rothbardiana, “os únicos contratos exequíveis (isto é, aqueles respaldados pela sanção de coerção legal) são aqueles em que o descumprimento do contrato por uma das partes implica o roubo de bens da outra parte [ou] quando o descumprimento do contrato significa que os bens da outra parte são retidos pela parte inadimplente, sem o consentimento do primeiro (roubo implícito)” (p. 133). Como explica Rothbard, todos os direitos são direitos de propriedade, e não há direitos que não sejam também direitos de propriedade. Nesta perspectiva, não existe o direito de executar um contrato por razões de “ordem pública”, nem a “ordem pública” constitui a razão pela qual determinados contratos não devem ser executados.
No entanto, na prática, há um grande grau de sobreposição entre as perspectivas de Epstein e Rothbard, porque os limites libertários dos direitos de propriedade (onde a propriedade de uma pessoa invade a propriedade de outra pessoa) muitas vezes coincidem com os tipos específicos de política pública que Epstein tem em mente em sua defesa do contrato à vontade. Na visão de Epstein, “o princípio [do contrato à vontade] deve ser entendido em um cenário que proíbe o uso de contratos privados para cercear direitos de terceiros, incluindo usos que interfiram em algum mandato claro de ordem pública, como em casos de contratos para cometer assassinato ou perjúrio”. De uma perspectiva rothbardiana, um contrato para cometer assassinato violaria o direito à autopropriedade, e um contrato para cometer perjúrio constituiria, em muitos casos, fraude (roubo implícito), de modo que tais contratos violariam os direitos de propriedade e não poderia haver motivos para aplicá-los.
O exemplo das promessas de casamento
Para entender os limites da execução dos contratos, o exemplo dos contratos matrimoniais é instrutivo. Durante séculos, a lei tratou a promessa de casamento como juridicamente vinculativa. Escrevendo em 1929, Robert C. Brown observa que “Uma das formas lúgubres e sensacionais da atividade judicial americana é o processo conhecido tecnicamente como um processo pela quebra de um contrato de casamento, mas mais popularmente pela simples designação de um processo de ‘quebra de promessa'”. Como destaca Brown, o remédio buscado nesses casos, como em todos os casos de quebra de contrato ou ato ilícito, foi a indenização como compensação por perdas sofridas ou por expectativas frustradas:
“… quando o termo “quebra de promessa” é usado, nem advogado nem leigo têm dificuldade em entender o que se quer dizer. É aquela ação cara ao coração do repórter do jornal sensacionalista, que normalmente é movida por mulheres jovens e atraentes, mas sofisticadas, contra homens maduros e ricos, e onde o autor da ação muitas vezes ganha uma competência para a vida.”
Se necessário, os tribunais podem até prender o delinquente, por exemplo, se ele seduziu uma mulher e depois não conseguiu se casar com ela e levá-lo ao tribunal para prestar contas de sua conduta. Este exemplo surgiu no seguinte caso de 1892:
“… o réu, por falsas e fraudulentas declarações quanto à natureza e consequências do ato que praticou, e por influência indevida, aproveitando-se da posição do autor como sua esposa afiliada, da confiança assim obtida, e da sua ausência aos seus familiares e amigos e protetores naturais, e do seu isolamento no seu domicílio e posição de dependente, infligiu-lhe esse erro grosseiro e indignação, e depois a abandonou, deixando sua casa para um lugar distante e recusando-se a se casar com ela” ( Hood v Sudderth, Suprema Corte da Carolina do Norte, 1892).
Pode ser moralmente abominável desistir de uma promessa de casamento depois de amarrar uma mulher em tais circunstâncias (tais casos foram quase exclusivamente trazidos por ou em nome de mulheres), mas poucas pessoas na sociedade ocidental liberal argumentariam que ainda deveria haver uma medida legal para a violação de tais contratos:
“A quebra de promessa, embora não seja acionável na maioria das jurisdições, é uma quebra de uma promessa de se casar com outro, em outras palavras, é um noivado quebrado. É um ato ilícito contra a parte infratora. O princípio do descumprimento da promessa trata a promessa de casamento como um contrato exequível que pode dar direito à parte que não violou o direito de receber indenização. No entanto, tal ação foi barrada na maioria das jurisdições e não dá origem a uma causa válida.”
A analogia do casamento é uma ilustração poderosa do que os liberais clássicos entendem por liberdade individual. Como Rothbard observa, “o casamento compulsório é uma forma tão clara e evidente de escravidão involuntária que nenhum teórico, muito menos qualquer libertário” insistiria que as pessoas fossem forçadas a entrar em um casamento simplesmente porque prometeram fazê-lo.
Extrapolando o exemplo dos contratos de casamento, é mais fácil perceber por que razão os contratos – para além dos contratos relativos a direitos de propriedade – não devem ser juridicamente exequíveis. Obrigar alguém a ficar vinculado por um contrato contra a sua vontade é uma forma de escravidão. Se os contratos que violam o princípio da autopropriedade fossem exequíveis, então a própria escravidão poderia ser justificada se o escravo concordasse voluntariamente com ela. Enquanto um liberal clássico rejeitaria esse resultado como sendo contra a “política pública”, alguns libertários pensam erroneamente que, em teoria, como no experimento mental de Walter Block, os contratos para escravizar seres humanos seriam juridicamente vinculativos e exequíveis, desde que o acordo seja inteiramente voluntário. Para o absolutista contratual, a justificativa para a não execução de tais contratos seria simplesmente seu caráter involuntário. Desvinculados das preocupações de ordem pública dos liberais clássicos, os absolutistas contratuais cometem o erro de tratar a liberdade contratual como absoluta, no sentido de que qualquer contrato é juridicamente vinculativo e exequível se todas as partes concordarem voluntariamente com ele. Esta foi a defesa apresentada em um caso alemão envolvendo um contrato entre Armin Meiwes e Bernd Brandes para comer e ser comido:
“Em um dos julgamentos mais extraordinários da história criminal alemã, o canibal confesso admitiu que conheceu um engenheiro berlinense de 43 anos, Bernd Brandes, depois de anunciar na internet, e o cortou e comeu. Crucial para o caso é um vídeo horrível feito por Meiwes de toda a noite, durante o qual Brandes aparentemente deixa claro seu consentimento.”
A confusão em torno deste caso surgiu por causa desse elemento de consentimento: “O caso sem precedentes provou ser problemático para os advogados alemães que descobriram que o canibalismo não é ilegal na Alemanha”. Isso evidencia a gravidade do erro em que caem os absolutistas contratuais, quando supõem que qualquer coisa com a qual as pessoas concordam deve ser executada sem levar em conta a razão pela qual quaisquer contratos devem ser executados em primeiro lugar.
A importância da autopropriedade
O direito à propriedade privada deriva do princípio da autopropriedade, que está enraizado na natureza humana e na liberdade inalienável e no livre arbítrio dos seres humanos. Nenhum ser humano pode consentir em ser um escravo, muito menos consentir em se voluntariar como jantar para um canibal. Como explica Rothbard:
“Infelizmente, muitos libertários, dedicados ao direito de firmar contratos, consideram o contrato em si como um absoluto e, portanto, sustentam que qualquer contrato voluntário deve ser legalmente exequível na sociedade livre. Seu erro é a não percepção de que o direito de contratar é estritamente derivável do direito de propriedade privada” (p. 133).
Para evitar confusão sobre quais contratos devem ser executáveis, Rothbard destaca a importância de identificar a razão pela qual contratos que não envolvam direitos de propriedade não são exequíveis. Ele pergunta: “Claramente, liberdade e escravidão compulsória são totalmente incompatíveis, na verdade são opostos diamétricos. Mas por que não, se todas as promessas devem ser promessas exequíveis?” (pág. 134). A razão pela qual os contratos não são geralmente exequíveis é que a execução de um acordo é incompatível com a liberdade da outra parte de sair do acordo à vontade. Podemos exortar uns aos outros a cumprir nossa palavra e não quebrar nossas promessas, como refletido no velho ditado de que a palavra de um homem é seu vínculo, e as pessoas podem optar por nos evitar se quebrarmos nossas promessas, mas a força não pode ser empregada para nos forçar a fazer o que concordamos. Os acordos podem ou não ser moralmente vinculativos, mas não são legalmente vinculativos:
“… pode muito bem ser a coisa moral cumprir as promessas, [mas] não é e não pode ser a função da lei (isto é, a violência jurídica) em um sistema libertário impor a moralidade (neste caso, o cumprimento das promessas)” (p. 133).
Com base no direito à propriedade privada, pode-se ver por que Rothbard argumenta que um contrato só seria exequível em um caso que equivalesse a roubo ou roubo implícito (por exemplo, fraude), pois isso implicaria a execução não da promessa em si, mas dos direitos de propriedade alienados sob o acordo. O exemplo mais simples seria um contrato de compra de imóvel em que o comprador toma posse do imóvel, mas renega seu acordo de pagar por ele.
Emprego sem vínculo empregatício
Aplicando essa análise ao contrato de trabalho, fica claro que, assim como não pensamos mais que um marido é dono de sua esposa, também não pensamos mais que um patrão é dono de seu servo ou de um empregador de seu empregado. O contrato de trabalho é simplesmente um acordo de uma pessoa livre para trabalhar em troca de um salário pago por outra pessoa livre. Qualquer das partes é livre para deixar o contrato à vontade e não tem o dever de fundamentar ou demonstrar justa causa para fazê-lo. Epstein argumenta que não há razões políticas para restringir essa liberdade e mostra que, ao contrário, a política pública fica a favor da liberdade de contratar e demitir à vontade. Como no caso do noivado de casamento rompido, manter o acordo pode ser a coisa moral e gentil a fazer e a violação intencional de uma promessa pode arruinar a reputação de alguém, mas não deve ser legalmente exequível. Assim, a decisão em Payne v. Western & Atlantic Railroad (1884) estava correta:
“Deve-se deixar, sem interferência, comprar e vender onde bem entender, e dispensar ou reter empregados à vontade por justa causa ou sem justa causa, ou mesmo por má causa, sem que se seja culpado de um ato ilícito per se. É um direito que o empregado pode exercer da mesma forma, na mesma medida, pela mesma causa ou carência de causa que o empregador.”
Com base no princípio da autopropriedade, a análise libertária produz o mesmo resultado. A lógica libertária para defender o emprego sem vínculo empregatício é clara: “não pode haver propriedade nas promessas ou expectativas de alguém”. (A ética da Liberdade, p. 134).
Artigo original aqui
Algumas dúvidas sinceras: pelo posicionamento adotado pela autora, a não ser se eu tenha interpretado errado o texto, a autopropriedade, e por consequência a autonomia corporal, é inalienável.
Uma consequência deste princípio de inalienabilidade seria que um contrato de pagamento adiantado para a realização de uma ação, por exemplo, um eletricista ir em uma casa fazer uma instalação elétrica, seria não exequível, podendo o eletricista ficar com o dinheiro e não precisando ir fazer a instalação? Se a resposta for não e o contrato é exequível, por qual motivo o experimento mental de Walter Block sobre a escravidão por contrato voluntário seria inválido? pois a único diferença está no tempo em que a ação vai durar, o eletricista por algumas horas e o escravo por vários anos ou pelo resto da vida.
Outra consequência do princípio de inalienabilidade seria que os contratos de segredo comercial, paywall (já que na maioria dos casos, os termos de uso exigem que a pessoa não compartilhe as informações contidas no conteúdo protegido) e também contratos de privacidade (como os termos de uso e tratamento de dados de serviços da internet) seriam todos não exequíveis, já que limitam a autonomia corporal, em especial a liberdade de expressão?