Costuma-se responsabilizar as chamadas redes sociais pela grosseria que nos deparamos cotidianamente, com muitos ataques pessoais e trollagens que tendem a dominar discussões que poderiam ser razoáveis. O X (antigo Twitter) é supostamente a pior rede social, na qual as pessoas se envolvem em brigas e bullying sem fim. No entanto, as outras plataformas não são muito melhores.
A explicação comum para a natureza degenerativa do discurso nas mídias sociais é que as plataformas são desenvolvidas para maximizar o “engajamento”, que prefere explosões emocionais a discursos reflexivos e racionais. Na verdade, as mídias sociais são projetadas para trazer à tona o que há de pior nas pessoas. Elas são instrumentos da guerra psicológica com fins lucrativos que incentivam ou pressionam as pessoas para gritar mais alto e atacar violentamente umas às outras.
Há alguma verdade no argumento do engajamento, mas o problema das mídias sociais é muito mais profundo do que a ganância se aproveitando da tecnologia. As redes sociais são um sintoma, não uma causa. A razão pela qual “funciona” dessa forma é porque a sociedade adotou a democracia como ideologia.
Democracia como sistema de governo
O sistema de governo que a maioria das pessoas hoje dá como certo é geralmente dito ter sua origem histórica na antiga cidade-estado de Atenas. As nossas democracias contemporâneas estão, naturalmente, muito longe das democracias antigas, tanto em substância como em estrutura. Nos tempos modernos, a democracia encontra seu início na abolição do direito divino dos reis e no alvorecer dos direitos humanos circunscrevendo os poderes do estado, talvez começando com a Revolução Gloriosa em 1688-89. Assim, os poderes do monarca eram restritos e equilibrados pelos dos parlamentos, tipicamente constituídos pela nobreza.
A ideia iluminista do liberalismo clássico corroeu ainda mais o poder centralizado do estado, mudando o foco para os direitos individuais e para a democracia como governo pelo voto popular. Na forma típica da democracia contemporânea, a maioria dos cidadãos submetidos ao decreto do estado pode votar em representantes que, como membros de um parlamento, governam a sociedade por meio de legislação imposta pelo aparato de força do estado.
A democracia liberal é muitas vezes entendida como um governo pelo voto popular no qual o poder da maioria fica restringido de oprimir aleatoriamente minorias através da adesão a algum conjunto de direitos humanos “universais”. Além disso, o estado é limitado a alguma versão do Estado de Direito, que normalmente prescreve regras universais que se aplicam igualmente a todos os súditos do estado. No entanto, a democracia moderna evoluiu bastante a partir desse ideal bastante republicano de democracia liberal.
Democracia como ideologia
As sociedades democráticas modernas, e especialmente os Estados de bem-estar social ocidentais, adotaram o ideal democrático de “um homem, um voto” muito além dos domínios de igual influência sobre a nomeação de representantes no governo. Essa evolução é baseada em deturpar, aplicar mal e extrapolar o princípio liberal clássico do igualitarismo. Em vez da igualdade de direitos dos indivíduos, a democracia como religião adota o igualitarismo como necessidade e ideal.
Em outras palavras, em vez de os cidadãos serem iguais perante a lei, o estado é usado para produzir resultados iguais para todos os cidadãos. A lógica, seja ela afirmada ou não, é que cada pessoa tem igual valor e, portanto, deve ter igual riqueza e igual felicidade. Como resultado, quem é mais rico ou mais feliz do que outro causa – como resultado desse fato – uma desigualdade e tem, assim, diz a “lógica”, privado os menos afortunados daquilo que eles têm menos.
A democracia formal – o sistema de governo – fornece às massas invejosas as ferramentas para tomar o que acreditam merecer. A religião da democracia justifica sua inveja.
A democracia como religião não se aplica apenas à riqueza material, mas é uma estrutura para reinterpretar todos os direitos individuais/humanos a partir do que foi originalmente formulado pelos liberais clássicos. Consequentemente, igualdade de oportunidades significa igualdade de resultados, porque se não for, então as oportunidades não podem ter sido iguais. Da mesma forma, o direito igual de falar o que pensa – liberdade de expressão – significa a igualdade das opiniões das pessoas, independentemente de quão infundadas.
O problema das redes sociais
Agora vamos aplicar a religião da democracia e seu ideal igualitário ao fenômeno das mídias sociais. Em um mundo em que a opinião de cada pessoa tem o mesmo valor e onde qualquer um pode entrar em qualquer discussão, como é o caso das redes sociais, as conversas se tornam gritos que carecem de estrutura e direção. Elas também se tornam vazias e desprovidas de discernimento, pois cada palavra dita – ou cada postagem adicionada – tem o mesmo valor: o desabafo emocional do tolo e o comentário de um especialista estão no mesmo nível.
Valor igual de opinião significa que o discurso é, em última análise, julgado pela quantidade, e não pela qualidade, das postagens. Quem posta mais – ou qualquer que seja a opinião mais frequentemente representada – “ganha” o argumento. Torna-se uma democracia de crenças onde as opiniões minoritárias são eliminadas e descartadas.
Nas redes sociais, portanto, quem tem mais seguidores tem mais poder e influência – mas apenas na medida em que o seguidor é vocal e disposto a “se engajar” para “vencer”. Em outras palavras, aquelas ideias com maior adesão emocional, com demarcação mais clara de quem é uma ameaça ou inimigo, e com inimigos mais maléficos ganham mais postagens – daí a urgência de chamar alguém de racista ou fascista porque quem não é contra o racismo e o fascismo?
Da mesma forma, quem tenta um discurso construtivo nas redes sociais – especialmente ao expressar ideias ainda não amplamente compartilhadas ou compreendidas – atrai detratores barulhentos. Isso prejudica muito o chamado mercado de ideias, desfazendo seu próprio mecanismo de seleção e submetendo-o à “democracia”: o poder da turba substitui o discurso racional.
Colocando isso de uma maneira diferente, aprender é mudar de ideia sobre algo, especificamente pela exposição (e potencial adoção de) explicações e ideias melhores e mais bem pensadas. Proporcionar uma educação adequada é comunicar conhecimento ou compreensão àqueles que ainda não os adquiriram.
Aprender, portanto, é uma questão de qualidade, não de quantidade. Isso se aplica também fora da educação formal: aqueles que já aprenderam algo novo, especialmente conhecimentos avançados, serão sempre uma minoria em comparação com aqueles que não aprenderam. Essa minoria também expressará em maior medida dúvidas e resistirá a retratar pontos de vista como preto ou branco, porque aqueles que gastaram tempo e esforço para entender as profundezas de alguma questão também estão tipicamente cientes das nuances e incertezas dessa questão.
Nas redes sociais, não há valor agregado em conhecer, em se expressar com cuidado ou em ser reflexivo. Em vez disso, isso faz de você uma vítima da multidão, que vencerá em virtude de seu maior número. Como resultado, cresce o ressentimento e a hostilidade aos especialistas, reais ou não, apenas por serem especialistas. Quem pode ser identificado como um se torna um alvo.
No entanto, nada disso é culpa das mídias sociais, seja como fenômeno, modelo de negócio ou tecnologia. As redes sociais não causam, mas apenas capitalizam o estado das coisas na sociedade contemporânea. A razão pela qual as mídias sociais funcionam da maneira que funcionam – a razão pela qual são desagradáveis e populares – é o efeito cultural degenerativo da democracia, a ideologia universal de nosso tempo.
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Leia também:
“…o desabafo emocional do tolo e o comentário de um especialista estão no mesmo nível.”
Depois de um tempo distante de comentários das redes sociais, fui me aventurar a responder um post. Fiz menção de conceitos e dados acadêmicos. Por fim, uma pergunta simples com vocabulário claro e cortês. Não demorou nada para que ataques febris e virulentos surgissem, alguns com vis xingamentos. O engraçado é que parece que esses indivíduos sequer leem ou se leem, sequer param um minuto para refletir no que foi dito e, só então, responder. O Brasil nunca teve uma tradição liberal e libertária e, portanto, os problemas citados no artigo são ainda mais deletérios por aqui. Não é incomum assistir pessoas que se declaram liberais e de direita, tentando calar a voz dos que dele discordam.