Durante o início dos anos 1990, quando o mundo do antigo bloco soviético estava ruindo rapidamente aos pedaços, o economista e historiador Murray Rothbard fez uma leitura precisa do que estava acontecendo: uma tendência de descentralização e secessão em massa se desdobrando diante dos olhos do mundo. Os antigos estados do Pacto de Varsóvia da Polônia, Hungria, e tantos outros, conquistaram a independência de jure e de fato pela primeira vez em décadas. Outros grupos dentro da União Soviética também começaram a exigir a total independência de jure.
Rothbard aprovou isso, e começou a encorajar os secessionistas contra a oposição de muitos “especialistas” em política externa.
“Nacionalismo” como descentralização
Por exemplo, quando se tornou claro, no início de 1990, que os estados bálticos estavam se preparando para se separar do estado soviético em rápido desvanecimento, os soviéticos pediram ajuda ao ocidente. Como o Los Angeles Times observou na época: “as autoridades soviéticas estão enfatizando em seus avisos (…) o perigo de libertar [sic] novas forças difíceis de controlar por meio da separação não só dos países bálticos, mas de outras repúblicas soviéticas”.[1]
Infelizmente, o governo Bush expressou dúvidas semelhantes e o establishment da “‘democracia global’”, como Rothbard chamou, começou a tentar convencer o mundo de que esses movimentos de libertação “nacionalistas” eram uma ameaça à paz global.
A cartilha então era semelhante ao que é agora: “As preocupações e demandas das nacionalidades são rejeitadas e consideradas mesquinhas, egoístas, paroquianas e até perigosamente hostis per se e agressivas com outras nacionalidades”.[2]
Assim, presumia-se que era melhor para os nacionalistas do Estado Báltico permanecer sob controle russo e se submeter ao “ideal democrático”. Rothbard resumiu o estágio final favorecido pelos antinacionalistas:
As nações bálticas… são “parte” da União Soviética, portanto, sua secessão unilateral, contra a vontade da maioria da URSS, torna-se uma afronta à “democracia”, ao “governo da maioria” e, por último, mas longe de ser menos importante, ao estado-nação unitário e centralizador que supostamente encarna o ideal democrático.[3]
Rothbard foi forçado a voltar ao tema em 1991, quando a Eslovênia se separou da Iugoslávia em uma manobra que levou a uma guerra de dez dias com menos de cem mortes. Tudo isso ocorreu, observou Rothbard, “apesar dos EUA e outras potências lamentarem a perda da ‘integridade territorial da Iugoslávia’”.[4]
Novamente em 1993, Rothbard precisou defender a secessão para grupos “nacionais” quando, no final de 1992, o estado tchecoslovaco começou a falar em se dividir em dois países.[5] Mais uma vez, o New York Times e outros guardiões do “respeitável” establishment da política externa se opuseram. Quando a separação finalmente ocorreu, o Times fez questão de publicar um editorial unilateral afirmando que a dissolução do país foi recebida com “amplo pesar” e previu ameaçadoramente que a medida adicionaria “novos potenciais pontos problemáticos a uma Europa Central, já convulsionada pelo nacionalismo”.[6]
Repetidas vezes, os defensores de poderosos estados controlados centralmente se desesperaram sobre a possibilidade de que os estados pudessem ser divididos em partes menores, independentes e mais localmente controladas.
Deve-se notar que em todos esses casos – dos Bálticos a Praga, Budapeste e até a Eslovênia – a secessão ocorreu com derramamento de sangue muito limitado e, certamente, muito menos derramamento de sangue do que ocorreu sob domínios comunistas anteriores. Isso, é claro, é tudo deliberadamente ignorado hoje. Em vez disso, a libertação nacional é denunciada como “balcanização” e dita como sinônimo do que aconteceu na minoria dos casos, ou seja, o derramamento de sangue das Guerras Iugoslavas.
Na maioria dos casos, apesar de todos os alertas sobre a Europa Central estar “convulsionada pelo nacionalismo”, o fato é que não houve massacres de tchecos por eslovacos, ou vice-versa. Fora da Iugoslávia, as dificuldades incorridas pelas minorias étnicas após a retirada soviética foram minúsculas em comparação com o que havia sido o procedimento operacional padrão sob o domínio soviético. As novas maiorias étnicas bálticas na década de 1990 não foram especialmente liberais em relação à minoria russófona, mas nos quase trinta anos desde as secessões do Báltico, as minorias russas não foram submetidas a nada que se aproximasse da mesma magnitude de terrores, assassinatos e deportações siberianas sofridas pelos povos bálticos sob o estado soviético.
No entanto, se as coisas tivessem sido feitas do jeito que desejavam as elites da política externa há trinta anos, lituanos, estonianos e letões ainda hoje seriam forçados a viver como uma pequena minoria sob o estado russo. Não é difícil adivinhar para que lado iria a regra da maioria nessas condições. No entanto, a democracia, disseram-nos, garantiria que tudo acabaria bem.
Mas, como Rothbard apontou em 1994, em seu ensaio “Nações por Consentimento”, o partido pró-democracia e antissecessão fracassou até mesmo em seus próprios termos. Após exigir respeito pela integridade territorial da Iugoslávia (até então conhecida como Sérvia), o partido pró-democracia acabou promovendo a secessão:
Veja, por exemplo, a atual confusão na Bósnia. Apenas alguns anos atrás, a opinião do establishment, a opinião de esquerda, direita ou centro, proclamou em alto e bom som a importância de manter “a integridade territorial” da Iugoslávia e denunciou implacavelmente todos os movimentos de secessão. Agora, pouco tempo depois, o mesmo establishment, que só recentemente defendeu os sérvios como heróis da “nação iugoslava” contra os movimentos separatistas viciosos que tentam destruir essa “integridade”, agora injuria e deseja destruir os sérvios por “agressão” contra a “integridade territorial” da “Bósnia” ou da “Bósnia-Herzegovina”, uma “nação” forjada que existia tanto quanto a “nação de Nebraska” antes de 1991. Mas essas são as armadilhas em que estamos fadados a cair se permanecermos presos à mitologia do “estado-nação”, cujo limite casual no tempo t deve ser mantido.[7]
A lógica da libertação nacional
Embora Rothbard tenha retornado a essa questão na década de 1990 devido à ruptura soviética, seu trabalho nesse período reflete de perto seus escritos anteriores sobre movimentos de independência política.
Escrevendo em setembro de 1969, ele frequentemente apoiava a secessão com o propósito de “libertação nacional”, uma vez que “Além de ser uma condição necessária para a realização da justiça, a libertação nacional é a única solução para os grandes problemas mundiais de disputas territoriais e domínio nacional opressivo”.[8]
Rothbard apoiou a secessão de Biafra da Nigéria em um editorial em 1970.[9] Em 1977, ele apoiou os nacionalistas quebequenses, expressando sua esperança de que o separatismo e a secessão levariam a um “efeito dominó”, no qual a secessão geraria ainda mais secessão.[10]
Foi nessa linha de pensamento que Rothbard descreveu a Revolução Americana como um caso de libertação nacional:
A Revolução Americana também foi radical em muitos outros aspectos. Foi a primeira guerra de libertação nacional bem-sucedida contra o imperialismo ocidental. Uma guerra popular, travada pela maioria dos americanos que tiveram a coragem e o zelo de se levantarem contra o governo “legítimo” constituído, de fato destituiu seu “soberano”. Uma guerra revolucionária liderada por “fanáticos” e zelotes rejeitou os cantos de sereia de concessões e ajustes facilitados ao sistema existente.[11]
Nem neste caso, nem em qualquer outro, Rothbard negou ou ignorou que houve quem acabasse sendo prejudicado pela secessão. Isso era verdade para os legalistas nos EUA, para os russos no Báltico e para os sérvios étnicos na Eslovênia. Mas defender a santidade mítica das fronteiras do status quo do estado-nação nos leva a um caminho ainda mais problemático. De acordo com Rothbard, aqueles que assumem essa posição “desprezam erroneamente a ideia de libertação nacional e independência como simplesmente a criação de mais estados-nação” – acabam “tornando-se apoiadores concretos e objetivos dos estados-nação inchados e imperialistas de hoje”.[12]
Afinal, se a secessão em nome da libertação nacional é má, acabamos, por princípio, por apoiar a União Soviética e todos os impérios ou ditadores que conseguem forçar uma variedade de grupos díspares sob uma única bandeira nacional.
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Notas
[1] Michael Parks, “Moscou pede ajuda do Ocidente no Báltico: União Soviética: O Kremlin quer que os EUA e outras nações desencorajem a região de se separar. Uma separação poderia levar a uma ‘catástrofe’, disse um funcionário do partido”, Los Angeles Times, 15 de janeiro de 1990, https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1990-01-15-mn-210-story.html.
[2] Murray N. Rothbard, “The Nationalities Question”, em The Irrepressible Rothbard (Burlingame, Califórnia: Center for Libertarian Studies, 2000), p. 227.
[3] Ibid. pp. 227–28.
[4] Murray Rothbard, “Bem-vindo, Eslovênia!”, em The Irrepressible Rothbard (Burlingame, Califórnia: Center for Libertarian Studies, 2000), pp. 238-41.
[5] Murray Rothbard, “Ex-Tchecoslováquia”, em The Irrepressible Rothbard (Burlingame, Califórnia: Center for Liberian Studies, 2000), pp. 242-44.
[6] Stephen Engleberg, “Czechoslovakia Breaks In Two, to Wide Regret”, New York Times, 1º de janeiro de 1993.
[7] Murray N. Rothbard, “Nations by Consent”, The Journal of Libertarian Studies 11, no. 1 (outono de 1994), https://mises.org/library/nations-consent.
[8] Murray N. Rothbard, “National Liberation”, Eigualitarianism as a Revolt Against Nature, Segunda Edição (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2000), p. 195.
[9] Murray N. Rothbard, “Biafra, RIP”, The Libertarian Forum, 1º de fevereiro de 1970, p. 1.
[10] Murray N. Rothbard, “Vive Le Quebec Libre”, The Libertarian Forum, janeiro de 1977, p. 8.
[11] Murray N. Rothbard, Concebido em Liberdade, vol. 4,, vol. 4, A Guerra Revolucionária, 1775-1784 (Auburn, Ala.: Mises Institute, 1999), p. 443.
[12] Rothbard, “National Liberation”, p. 195.