Embora tratados às vezes como sinônimos, “estado” e “nação” são conceitos diferentes.
Podemos definir um estado como “o monopólio da força em um determinada área”. Assim, um estado, por definição, é coercitivo, viola sistematicamente o direito natural à propriedade dos indivíduos e envolve planejamento central. Se há um estado, há algum dos cinqüenta tons de socialismo. A área de atuação de um estado é arbitrária e está relacionada com o território que os seus chefões conseguiram dominar. No vídeo “A Origem Do Estado”, discuto isso com detalhes, baseando-me em um texto de Murray Rothbard. De fato, nós, libertários, tendemos a nos focar nessas duas importantes unidades de análise: o “estado” e o “indivíduo”. Porém, nós tendemos a nos esquecer de outra unidade de análise importante: a “nação”. Ao contrário do que poderíamos imaginar inicialmente: “estado” e “nação” não são sinônimos.
Para esclarecer a diferença entre esses dois conceitos, vou recorrer de novo a um brilhante texto escrito por Rothbard. Em 1994, já no finalzinho de sua vida, ele publicou no Journal of Libertarian Studies um artigo intitulado “Nações por consentimento”, em que aborda tal tema. Ele começa o texto ressaltando que liberais clássicos e libertários pioneiros, como Ludwig von Mises e Alfred Jay Nock, já tinham entendido que nação e estado são coisas diferentes. Muitos libertários contemporâneos assumem, erroneamente, que os indivíduos estão ligados uns aos outros apenas por meio de trocas no mercado. Eles se esquecem de que cada pessoa nasce em uma família, uma língua e uma cultura. Cada pessoa nasce em uma ou mais comunidades que se sobrepõem, incluindo um grupo étnico, com certos valores e tradições.
De acordo com Rothbard, uma nação é um grupo de pessoas que se sentem próximas umas das outras devido a afinidades familiares, lingüísticas, religiosas e culturais, criadas ao longo de um contexto histórico. Então, veja, se o estado é uma unidade artificial, imposta pela força, a nação é uma unidade natural, que surge espontaneamente pelas afinidades que alguém cria com as pessoas ao seu redor. É verdade que o estado distorce essas afinidades; contudo, elas existiriam mesmo sem as distorções estatais. Por exemplo, você já se perguntou por que fala o português como língua materna? Fala porque as pessoas à sua volta falam. Especialmente seus pais e irmãos, mas também outros familiares, amigos e vizinhos. Crescendo em um ambiente em que todos falavam português, você naturalmente aprendeu a língua.
Você poderia dizer, com razão, que fala português, porque há mais de quinhentos anos, os portugueses colonizaram esta terra e criaram aqui um estado. Você poderia dizer também que fala português, porque, na escola, todos são obrigados a estudar a língua. Tudo bem, verdade. Mas mesmo que não fosse esse o caso, alguma língua materna você teria e a aprenderia com as pessoas ao seu redor naturalmente. Aqui eu faço um comentário. Esse tipo de padrão, em que a chance de encontrarmos alguém com um determinado atributo aumenta com a proximidade física, é chamado de “autocorrelação espacial positiva”. A chance de eu encontrar alguém que fale o português é maior se eu o procurar a dez metros de mim do que a dez mil quilómetros, não é mesmo? A mesma coisa com a genética, a religião e a cultura.
Segundo Rothbard, definir os limites de uma nação não é fácil, uma vez que há uma enorme gama de comunidades, línguas, etnias e religiões, que, em maior ou menor grau, se sobrepõem espacialmente. Ele dá como exemplo a Iugoslávia, que, no momento em que ele escreveu o seu artigo, acabara de se esfacelar. A Iugoslávia era um estado e, portanto, coercitivo e artificial. O país foi formado em 1918, após a Primeira Guerra Mundial, como um reino e com outro nome; passou por várias mudanças, até se estabelecer em 1945 como uma Federação de Repúblicas. Havia seis delas: Eslovênia, Sérvia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro e Macedônia. Ao longo dos anos 90, elas foram se separando – pacífica ou violentamente. As repúblicas que se tornaram independentes também eram estados e, logo, coercitivos e artificiais.
Ainda assim, continua Rothbard, dentro dessa área e do entorno, há nações – há grupos de pessoas com afinidades étnicas, lingüísticas, religiosas ou culturais. Tais grupos se sobrepõem, embora possam concentrar-se em certa região. Por exemplo, os eslovenos estão concentrados ao norte da antiga Iugoslávia, mas se espalham pela Itália e Áustria. Eles constituem a nação eslovena. Os macedônios estão concentrados ao sul da antiga Iugoslávia, mas se espalham pela Albânia, Sérvia, Bulgária e Grécia. Eles constituem a nação macedônia. Na Bósnia, existem três nações principais, a dos sérvios, a dos croatas e a dos bosníacos, que pertencem a uma etnia, que falam a mesma língua, mas que têm religiões e culturas diferentes. As tensões decorrentes dessa sobreposição são bastante agravadas pela imposição de um único estado.
Embora o tamanho e a distribuição dessas nações tenham sido alterados por vários séculos de coerção estatal, elas existiriam de alguma forma mesmo se a história tivesse sido pacífica. O problema das nações foi agravado no século 20 com a política externa dos Estados Unidos, diz Rothbard. Com ela, foi imposto o conceito falacioso dos estados como bastiões da “segurança coletiva contra agressões”. Tal conceito é falacioso, porque trata os estados como indivíduos, e a “comunidade internacional”, como polícia. Assim, se um estado, digamos a Rússia, invade um outro, digamos a Ucrânia, o primeiro é tratado como um agressor pelos Estados Unidos ou os seus fantoches, como a Otan ou a ONU. Aí a comunidade internacional invoca o “princípio de não-agressão” para retalhar o primeiro. Mas será que faz sentido isso?
Não, não faz o menor sentido. Como Rothbard aponta, estados, por definição, são unidades agressivas, que coagem sistematicamente os indivíduos que vivem nos seus territórios, sejam das nações que forem. Escreveu Rothbard: “A falha crucial implícita nessa premissa é a de que um estado é o dono de uma determinada área geográfica da mesma forma que um indivíduo é o dono de sua casa.” Os limites de um estado foram conquistados pela força, desrespeitando-se as vontades individuais e sequer seguindo – tenuamente que seja – os eventuais limites das nações. A idéia de “segurança coletiva” piorou o problema dos estados, aumentando o nível de violação de propriedade e até criando tensões entre nações. Falar em integridade territorial de estados é uma aberração – é tentar legitimar o que não é legítimo.
Um outro autor que faz uma excelente alegoria sobre o tema é Ludwig von Mises. Imagine o seguinte. Dois estados, a Ruritânia e a Fredônia, são vizinhos. Um certo dia, a Ruritânia invade o leste da Fredônia e o anexa. Devemos automaticamente condenar a Ruritânia por seu ato de agressão contra a Fredônia? Devemos mandar tropas para defender esta? De jeito nenhum, diz Mises. Talvez, a Fredônia oriental faça parte da nação ruritânia e tenha sido conquistada anos antes. Talvez por anos os ruritânios estivessem combatendo a opressão fredônia. Mises coloca que, em casos assim, as coisas raramente são o que parecem. Até porque Ruritânia e Fredônia, como estados, não são entidades legítimas, ainda que as nações possam ser. Mises e Rothbard colocam pontos, que, infelizmente, foram esquecidos hoje por muitos ditos libertários.
Bom, mas qual é a solução então? Como Mises e Rothbard colocam, a única solução de fato é o direito à secessão individual. Como Rothbard bem escreveu, qualquer indivíduo, de qualquer nacionalidade ou de qualquer grupo, deve ser livre para se separar de um estado se ele assim quiser. Eventualmente, ele pode se manter independente ou pode se juntar voluntariamente a uma determinada nação. É o que Rothbard chama de “nações por consentimento“, justamente o título do seu artigo. Esse conceito reconhece o fato de que nacionalidades existem, devido a afinidades que aparecem naturalmente entre pessoas que vivem próximas. Essas nações por consentimento podem estar sobrepostas. A única regra comum a todas deve ser o respeito ao direito de propriedade, o que é básico para o convívio pacífico entre indivíduos.
Assista também este artigo narrado pelo autor:
Excelente artigo.
Poderia esclarecer uma dúvida? Pelo o que eu sei herr Mises não acreditava que a secessão pudesse chegar ao nível individual, so de grupos. De Murray fucking Rothbard em diante é que se acredita em secessão ao nível individual. Obrigado
Mises defendia sim a secessão ao nível individual, se possível. Ele só não achava muito factível na época.
Mises sobre secessão