InícioUncategorized12. Legislação e Lei Objetiva

12. Legislação e Lei Objetiva

Defensores do governo objetam que uma sociedade laissez-faire, uma vez que não teria mecanismo legislativo, careceria das leis objetivas necessárias para manter a ordem social e a justiça. Isso presume que a lei objetiva é o produto das deliberações de algum corpo legislativo, e essa suposição, por sua vez, surge de uma confusão sobre o significado e a natureza da lei.

O adjetivo “objetivo” refere-se àquilo que tem uma existência factual na realidade. Quando usado para se referir ao conteúdo da mente, significa ideias que estão de acordo com os fatos da realidade. A objetividade mental não pode estar “separada da mente humana”, mas é o produto do processo de perceber os fatos da realidade, integrá-los à consciência de maneira não contraditória e, assim, chegar a conclusões corretas. A verdade a ser observada aqui é que a mente não cria a realidade; a função da consciência humana é perceber a realidade — a realidade é o objeto, não o sujeito, do processo de raciocínio. (Como os estudantes de filosofia reconhecerão, este parágrafo observa a distinção entre objetividade metafísica e objetividade epistemológica.)

As leis objetivas, então, são regras, ou princípios, que são expressões da natureza da realidade; não são a expressão dos caprichos e preconceitos subjetivos de alguma pessoa, ou grupo de pessoas, ou da cultura como um todo. Uma lei objetiva é centrada na realidade. Ela vem da natureza das entidades e processos aos quais se refere, e nunca pode entrar em conflito com essa natureza. Por isso, uma lei objetiva sempre “funciona”, enquanto uma lei baseada no capricho subjetivo, sem ligação forte com a realidade, contradiz a natureza daquilo a que se refere e, portanto, leva à confusão e à destruição.

Por ser centrada na realidade, uma lei objetiva é sempre compreensível para um homem que use sua razão – isto é, ela sempre faz sentido. Também é moral quando se trata de um princípio de comportamento humano, porque opera de acordo com a natureza do homem e, portanto, atua para promover sua vida, seu bem-estar e seus interesses como ser racional. Com relação ao comportamento humano, a lei objetiva, por surgir da própria natureza da realidade – das coisas como elas realmente são – deve ser prática, racional e moral.

É verdade que leis objetivas que governam a natureza das relações humanas são necessárias para a manutenção da ordem social, mas concluir a partir disso que leis estatutárias, formuladas por algum corpo legislativo, são necessárias para a ordem social é um non sequitur. Para entender a natureza desse non sequitur, é necessário examinar dois tipos de lei – a lei estatutária e a lei natural.

Uma lei natural é um atributo causal que governa as ações de uma entidade, atributo esse inerente à natureza específica dessa entidade (o adjetivo “natural” significa “de ou pertencente à natureza de” – ao que uma coisa é na realidade). Por ser inerente à natureza da entidade a que se refere, a lei natural é sempre objetiva. Não pode deixar de ser centrada na realidade, porque é inerentemente inseparável da natureza de uma coisa real. Isso significa que é prática – deve sempre “funcionar”, porque se aplica às coisas como elas realmente são (dificilmente poderia se aplicar às coisas como elas realmente não são). A lei natural não pode ser revogada, nem tem brechas. Um homem que “quebra” uma lei natural o faz por sua própria conta e risco. Imediatamente ou eventualmente, ela o quebrará.

Um exemplo familiar de lei natural é a lei da gravidade. É da natureza da terra atrair outros corpos para si, então quando você deixa cair alguma coisa, ela cai. Essa lei é objetiva, universal e inescapável. Você pode pilotar um avião fazendo uso das leis naturais da aerodinâmica, mas com isso você não contrariou ou revogou a lei da gravidade – a Terra ainda está puxando o seu avião para baixo, como você descobrirá se seu motor falhar.

A lei natural se aplica tanto ao homem quanto ao seu ambiente, porque o homem também é uma entidade com uma natureza específica. Algumas ações são possíveis ao homem, outras não. Ele pode andar e correr, mas não pode se transformar em uma árvore. Como um ser de natureza específica, o homem necessita de um curso de ação específico para sua sobrevivência e bem-estar. Ele deve comer ou morrerá de fome. Seu corpo precisa de certas substâncias para se manter saudável – vitamina C para prevenir o escorbuto, por exemplo. Se ele quer saber algo, ele deve usar seus sentidos e sua mente para aprender. Se ele quer desfrutar de valores críticos à sobrevivência como amizade, comércio, divisão do trabalho e compartilhamento do conhecimento, ele deve buscar e merecer a companhia humana.

Embora seja geralmente reconhecido que a natureza física e mesmo mental do homem está sujeita à lei natural, também é comum assumir que a questão da moralidade, especificamente no que se aplica às relações humanas, está completamente fora do escopo da lei natural. Essa suposição é aceita tacitamente, em vez de ser identificada e defendida, simplesmente porque não pode ser racionalmente defendida. É uma completa tolice afirmar que o homem é um ser com uma natureza específica e, portanto, sujeito aos princípios derivados dessa natureza em todas as áreas… exceto quando lida com outros homens. Os homens deixam de ter uma natureza específica quando se relacionam com outros homens? Claro que não!

A lei natural se aplica às relações humanas, e é tão objetiva, universal e inescapável nesta área quanto em qualquer outra. A prova disso é que as ações têm consequências… na área da interação humana tão seguramente quanto na área da medicina humana. Um homem que engole veneno ficará doente (mesmo que tenha total confiança de que o veneno nada mais é do que pílulas de vitaminas). Um homem que agride os outros será desacreditado, evitado e provavelmente obrigado a pagar restituição às suas vítimas (se algum governo não interferir). Um homem que engana seus clientes será levado à falência por seus concorrentes mais idôneos. As consequências de “quebrar” a lei natural não podem ser evitadas. Não importa o quão espertas sejam as maquinações de um homem: se insistir em agir de uma maneira que contradiz a natureza da existência humana, ele sofrerá. As consequências podem não ser imediatas, ou prontamente visíveis, mas são inescapáveis.

O livre mercado é produto do funcionamento da lei natural na área das relações humanas, especificamente as relações econômicas. Como a sobrevivência e o bem-estar do homem não são dados a ele, mas devem ser conquistados, os homens agem para maximizar seu bem-estar (se não o fizessem, não poderiam continuar vivendo). Para maximizar seu bem-estar, eles realizam trocas uns com os outros e, nessas trocas, cada homem tenta obter o melhor “negócio” possível. Os compradores fazem lances uns contra os outros e empurram os preços para cima. Os vendedores fazem o mesmo e empurram os preços para baixo. No ponto em que as duas forças se encontram, o preço de mercado é estabelecido, e todos que desejam negociar a esse preço podem fazê-lo sem criar excedentes ou escassez. Assim, a lei da oferta e da demanda, e todas as outras leis do mercado, são realmente leis naturais, diretamente derivadas da natureza e das necessidades dessa entidade específica, o homem. O fato de as leis do mercado serem leis naturais explica por que o livre mercado funciona tão bem sem qualquer regulamentação externa. A lei natural é sempre prática – sempre “funciona”.

O governo é uma construção artificial que, por ser o que é, está em oposição à lei natural. Não há nada na natureza do homem que exija que ele seja governado por outros homens (se houvesse, teríamos que encontrar alguém para governar os governantes, pois eles também seriam homens com necessidade de serem governados). Na verdade, a natureza do homem é tal que, para sobreviver e ser feliz, ele deve ser capaz de tomar suas próprias decisões e controlar sua própria vida… um direito que é inevitavelmente violado pelos governos. As consequências desastrosas da inescapável oposição do governo à lei natural estão escritas, em sangue e degradação humana, nas páginas de toda a história do homem.

As operações da lei natural nas relações humanas são muito menos aparentes em uma sociedade governamental do que em uma sociedade laissez-faire. O governo, querendo contornar as limitações naturais da natureza humana e ganhar algo em troca de nada, tenta dissolver ou ignorar as leis de causa e efeito, e assim obscurece as consequências de muitas ações (particularmente as ruins). Os políticos querem poder ao qual não têm direito e aplausos que não conquistaram, por isso prometem dinheiro que não é deles e favores que não podem conceder. Por exemplo, eles prometem aumentar os salários do trabalho (coisa que só um aumento na produção pode fazer, já que o dinheiro para os salários não pode vir do nada). Quando eles aprovam um estatuto de salário mínimo, eles parecem ter contornado a lei natural econômica, mas na verdade eles apenas a obscureceram. Os empregadores são forçados a compensar os aumentos salariais de alguns de seus empregados demitindo outros, o que cria uma classe de pobres sem emprego e sem esperança. Os salários sobem para alguns ao custo de cair a zero para outros. Não é possível legislar o fim da lei natural, não importa o quanto os políticos tentem, porque ela é inerente à natureza das coisas. A lei natural opera em uma sociedade governamental tanto quanto em uma sociedade laissez-faire; é simplesmente mais difícil de rastrear por causa das intromissões complicadas dos burocratas.

A suposição tácita de que a lei natural não se aplica às relações humanas levou os homens à crença de que a sociedade deve ter um sistema de leis estatutárias para “preencher a lacuna” e manter a ordem social. No mínimo, acredita-se que a lei estatutária seja necessária para codificar a lei natural, para que seja objetiva, de aplicação universal e de fácil compreensão por todos.

A lei estatutária é um código de regras estabelecido e imposto pela autoridade governamental. Qualquer lei estatutária particular pode ser baseada em um princípio objetivo, ou pode ser baseada em um princípio que é contrário à natureza da realidade. Pode até ser uma medida arbitrária ao sabor do momento, sem base em nenhum tipo de princípio (tais leis são características dos governos quando se sentem em situações de crise). Não há nada que possa ser incorporado à natureza de um governo que garanta que todas, ou mesmo a maioria, das leis que ele aprovará serão baseadas em princípios objetivos — na verdade, a história mostra que o inverso geralmente acontece: a maioria das leis é baseada no capricho subjetivo de algum político.

As leis estatutárias que não se baseiam em princípios objetivos são imorais e inescapavelmente prejudiciais; qualquer coisa que esteja em oposição à realidade – às coisas como elas realmente são – não pode funcionar. As leis que se baseiam em princípios objetivos são meramente uma reafirmação legislativa da lei natural e, portanto, desnecessárias. Um homem pode identificar uma lei natural e pode até escrevê-la em um livro para que outros homens a entendam, mas não pode “passá-la” porque ela já existe – inescapavelmente. Uma vez identificada e compreendida a lei natural, nada mais pode ser acrescentado reafirmando-a em forma oficial e “tornando-a obrigatória”. Já é obrigatória, por sua própria natureza.

Uma lei estatutária, ainda que baseada em um princípio objetivo, deve ser redigida antes da ocorrência dos crimes que visa inibir ou punir. Uma vez que cada crime é cometido por um indivíduo diferente em um conjunto diferente de circunstâncias, a lei não pode ser feita para se adequar a todos os casos (exceto, talvez, tornando-a tão flexível a ponto de anulá-la completamente). Isso significa que, embora o princípio por trás da lei fosse objetivo (centrado na realidade), a aplicação da lei a circunstâncias específicas não pode ser objetiva. Um princípio objetivo é firme e imutável porque está enraizado na natureza das coisas, mas a aplicação desse princípio imutável deve variar para se adequar às circunstâncias de vários casos. Se a aplicação não se ajusta ao caso, ela não é objetiva e, portanto, é injusta.

Não importa quão instruído seja um corpo de legisladores, ou por quanto tempo e quão assiduamente eles debatam, eles nunca podem alcançar o estado de onisciência necessário para prever e tratar todas as circunstâncias de cada caso individual que caia sob a jurisdição de sua lei. De fato, pelo próprio ato de redigir as disposições da lei e torná-las obrigatórias para todos igualmente, independentemente de variações individuais, os legisladores engessam a aplicação de sua lei, de forma que ela não pode ser objetiva. Assim, nenhuma lei estatutária, ainda que baseada em um princípio objetivo, pode ser objetiva em sua aplicação.

Os legisladores estão cientes da necessidade de flexibilizar as leis para atender a uma variedade de casos, e fazem o possível para resolver esse problema. Eles tentam prever e criar provisões para o maior número de situações possível à medida que redigem cada lei, e geralmente estipulam punições flexíveis (uma pena de prisão de dois a dez anos, por exemplo) que deixa a decisão final ao juiz de cada caso. Essa tentativa sincera, no entanto, tem o efeito inevitável de tornar a lei volumosa, complexa, pesada e difícil de interpretar ou mesmo ler. A legislação fica atolada em resmas de palavras e os homens são frequentemente condenados ou libertados com base em nada mais do que a interpretação técnica de um trecho obscuro de alguma lei. Seu esforço para serem suficientemente flexíveis, e ainda assim totalmente precisos, muitas vezes leva os legisladores a redigirem leis de complexidade tão espantosa e arcana que até mesmo advogados (que prosperam em proporção direta ao tamanho e complexidade do sistema legal) ficam confusos. Existem dezenas de milhares de estatutos complicados, cada um escrito em termos jurídicos tão especializados que poderia muito bem estar em uma língua estrangeira, e, no entanto, o cidadão atônito é secamente informado de que a ignorância da lei não é desculpa!

A tentativa de tornar a legislação suficientemente flexível para se adequar a casos individuais também anula a universalidade da lei. Um juiz que tem a opção de dar uma sentença que pode ser de dois a dez anos não tem nada para orientá-lo em sua escolha, exceto suas próprias crenças particulares. Alguns juízes são habitualmente indulgentes, e alguns habitualmente severos, de modo que o destino do acusado geralmente depende tanto da personalidade e do humor de seu juiz quanto das circunstâncias reais do caso. Mudar de um sistema de punição na forma de penas de prisão para um sistema de justiça na forma de pagamento de indenizações às vítimas não resolveria esse problema enquanto o mecanismo jurídico-judicial permanecesse uma função do governo e não do livre mercado. Os árbitros do livre mercado são guiados em suas escolhas pelos desejos dos consumidores, com lucros e prejuízos servindo como um “mecanismo de correção” embutido. Mas os juízes do governo não têm sinais para orientar suas decisões. Mesmo que quisessem agradar seus “clientes”, não teriam sinais para lhes dizer como fazê-lo. Um juiz do governo, diante de uma pena flexível, nada tem para guiá-lo além de suas próprias opiniões e caprichos.

A lei natural, aplicada às relações humanas em um contexto de livre mercado, é objetiva tanto em seus princípios quanto em sua aplicação. Os princípios da lei natural são imutáveis, porém a aplicação desses princípios sempre se ajusta a cada caso, pois a lei natural envolvida em qualquer caso deriva da natureza de cada indivíduo e da situação única daquele caso particular. Quando uma agressão é cometida, resulta em uma perda para a vítima. Essa perda é específica e individual para cada caso. A vítima perdeu uma quantia em dinheiro, ou seu carro, ou uma perna, e os pagamentos de reparações são baseados nos valores específicos que foram destruídos. Ao definir o valor das perdas (particularmente as de valores não permutáveis), os árbitros são regidos pela estrutura de valor dos consumidores que compram seus serviços, e têm sinais de lucros e prejuízos para orientá-los. Cada caso é decidido por seus próprios méritos. O destino do agressor é determinado com base em suas próprias ações passadas e presentes – não é decidido arbitrariamente por um grupo de estranhos eleitos, agindo sem qualquer conhecimento do caso em particular (e antes mesmo do caso ocorrer).

A lei natural, aplicada pelo livre mercado, também é muito curta, simples e de fácil compreensão. Há apenas uma regra básica de relacionamentos humanos justos: nenhum homem ou grupo de homens pode tentar privar um homem de um valor pela iniciação da força física, a ameaça de força, ou qualquer substituto para a força (como fraude). Todas as outras regras, tais como proibições contra assassinato, sequestro, roubo, falsificação, etc., são apenas derivações óbvias dessa lei natural básica. Um homem que queira saber se está agindo corretamente com seus semelhantes não precisa de uma biblioteca de tomos legais e de uma educação universitária. Tudo o que ele precisa é fazer a si próprio uma pergunta simples: “Estou causando uma perda de valor a alguém por um ato de coerção?” Contanto que ele possa responder honestamente não a essa pergunta, ele não precisa temer nenhuma lei ou força retaliatória.

Essa lei natural básica das relações humanas já é tacitamente compreendida por quase todos em todo o mundo. Encontra expressão comum em termos como: “É sempre errado partir para a agressão”. É o cumprimento generalizado e quase automático dessa lei natural pela maioria das pessoas que explica o fato de que as relações humanas não se desintegraram completamente em um caos sangrento, apesar do constante impulso dos governos nessa direção. A maioria das pessoas vive pacificamente com seus vizinhos com base nessa lei natural, e raramente chama um policial ou juiz para cuidar de seus desentendimentos. E o fazem, na maioria das vezes, sem sequer identificar conscientemente a lei natural que orienta suas ações.

A hipótese de que a lei estatutária é necessária para uma sociedade depende da suposição de que um corpo legislativo tem o direito moral de aprovar leis que são obrigatórias para o resto da população. Os defensores da democracia afirmam que o fato de os legisladores serem eleitos pelo povo lhes dá o direito de “representar o povo” em questões de legislação. Mas “o povo” é um conceito coletivista; não existe uma entidade “povo” que vive, respira, tem interesses, opiniões e objetivos. Existem apenas indivíduos. Teriam os legisladores, então, o direito moral de representar os indivíduos “sob sua jurisdição?”

Em uma democracia, a função do legislativo é, teoricamente, descobrir o que é de “interesse público” e aprovar legislação que governe as pessoas de acordo. Mas assim como não existe uma entidade como “o povo”, não existe algo como “o interesse público”. Há apenas a multiplicidade de interesses individuais de toda a grande variedade de pessoas que estão sob jugo do governo. Assim, quando os legisladores aprovam uma lei “no interesse público”, na verdade estão favorecendo os interesses de alguns de seus cidadãos, e sacrificando os interesses de outros. Como os legisladores são eleitos, e portanto precisam de dinheiro e votos, geralmente favorecem os interesses daqueles com influência política, e sacrificam os interesses daqueles que não a têm. Além disso, como a única fonte de recursos do governo são seus cidadãos produtivos (os improdutivos não têm nada para o governo tomar), os competentes geralmente são sacrificados em favor dos incompetentes, incluindo os políticos.

Esse tipo de injustiça é parte inescapável da estrutura do governo. Um governo é um monopólio coercitivo que força todos em sua área geográfica a tratar com ele. Como tal, deve impedir os seus cidadãos de escolherem livremente, entre os vendedores concorrentes, os serviços que melhor lhes convêm. Todo cidadão é forçado a aceitar serviços governamentais e viver de acordo com os padrões governamentais, independentemente de serem ou não de seu interesse.

Por mais “democrático” e “limitado” que um governo seja, ele não pode representar os interesses de cada um na multidão de indivíduos diversos que são seus cidadãos. Mas esses interesses individuais são os únicos que realmente existem, porque não existe tal entidade como “o público” e, portanto, não existe algo como “o interesse público”. Como o governo não pode representar cada um de seus cidadãos, ele deve atuar sacrificando os interesses reais de alguns aos supostos interesses de outros; e o sacrifício sempre diminui a o total de valor da sociedade.

Em um mercado livre, não existe monopólio coercitivo. Todo homem é livre para buscar seus próprios interesses, desde que conceda o mesmo direito a todos os outros, e ninguém tem seus interesses sacrificados ao “bem público” ou à “vontade da maioria”. Em uma sociedade laissez-faire, um homem que queira comprar um bem ou serviço pode ser cliente de qualquer empresa cuja mercadoria ou serviço o agrade. Se ele prefere a Marca X, ele não é forçado a comprar a Marca Y porque 51% de seus colegas consumidores preferem Y, e o sistema, supostamente, não funcionaria sem unanimidade.

Mas mesmo que pudessem evitar sacrificar os interesses de alguns cidadãos, os legisladores eleitos ainda não poderiam justificar a imposição de leis a qualquer pessoa além deles mesmos. Opiniões, mesmo as opiniões da maioria, não criam a verdade – a verdade é verdadeira, independentemente do que qualquer um pense sobre ela. Cinquenta milhões de franceses podem estar errados, e frequentemente estão. Assim, se a maioria dos eleitores está completamente errada em seu apoio a um candidato, ou a maioria dos legisladores está terrivelmente equivocada em seu juízo de uma lei, sua opinião majoritária não muda o fato de que estão errados. É superstição pura acreditar que se um número suficiente de pessoas (ou, talvez, um número suficiente de pessoas instruídas e influentes) pensar que uma coisa é assim, isso a tornará assim. Uma lei pode ser aprovada pela maioria dos legisladores eleitos pela maioria dos cidadãos, e mesmo assim ser imoral e destrutiva, apesar das ilusões coletivas em contrário. E nenhum grupo de pessoas, mesmo que seja a maioria, tem o direito de impor uma lei imoral e destrutiva a ninguém.

Alguns proponentes do “governo limitado” tentaram contornar esse problema estipulando que o governo deve ser limitado a uma constituição muito rígida para mantê-lo confinado às suas funções “apropriadas”, e impedi-lo de aprovar leis imorais e destrutivas. Mas isso é ignorar o fato de que aqueles que escrevem a constituição, e aqueles que a aplicam, devem ser eleitos por maioria de votos (ou então nomeados por aqueles que são eleitos). A qualidade de uma constituição é limitada pela qualidade dos homens que a escrevem e aplicam, e se a opinião da maioria não pode criar verdade em questões de legislação, também não pode criar verdade em questões de formulação e interpretação constitucional. Se é errado empregar o método de votação para elevar opiniões de massa ao nível de políticas de governo, é ainda mais errado usá-lo para determinar a forma e a estrutura desse governo.

Além disso, a ideia de uma constituição escrita ser um contrato social entre o povo e seu governo é um mito. Um contrato só é vinculativo para quem o assina, o que significa que um contrato entre a população e o governo teria que ser assinado por todos os cidadãos para ser obrigatório para “o povo”. A Constituição dos Estados Unidos nem mesmo foi assinada pelos cidadãos que estavam vivos na época em que foi escrita, muito menos por todos os milhões nascidos depois e que supostamente estão subordinados a ela.[1] Se alguém buscasse instituir uma constituição assinada por todos os indivíduos que desejassem vincular-se a ela, teria que admitir também o direito daqueles que não concordassem a recusarem-se a assinar, e de tomarem as suas próprias providências para a sua proteção. Nesse caso, não se teria um governo, mas uma empresa em competição com outras empresas em um mercado livre.

As leis e constituições governamentais não podem jamais ser corretas ou práticas. A lei estatutária, que deveria codificar a lei natural para torná-la objetiva, de aplicação universal e de fácil compreensão, faz exatamente o oposto dos três. A lei natural é objetiva tanto em seus princípios quanto em sua aplicação, porque é centrada na realidade e derivada da natureza das entidades envolvidas em cada caso. A lei estatutária, mesmo quando baseada em princípios objetivos, não pode ser objetiva em sua aplicação porque não pode variar de acordo com os casos variados. A lei natural é universalmente aplicável porque faz parte da própria natureza das coisas, e nada pode ser separado de sua própria natureza. A lei estatutária não pode ser aplicável universal e igualmente porque, se redigida de forma inflexível, não se encaixa aos casos individuais; e, se redigida de forma flexível, deixa os juízes sem nada para orientar suas decisões. A lei natural das relações humanas é facilmente compreendida e pode ser enunciada em uma breve frase. A lei estatutária é uma massa contorcida de complexidade impenetrável, e não pode deixar de sê-lo, porque deve tentar se adequar a uma infinidade de circunstâncias variadas que ainda nem aconteceram.

Como o livre mercado é um produto do funcionamento da lei natural, ele facilita a aplicação do direito natural a qualquer campo em que esteja envolvido. As regras que governariam os negócios de proteção de valores, arbitragem de disputas e retificação de injustiças são meramente consequências da lei econômica geral, que é uma consequência da lei natural. As mesmas leis econômicas que garantiriam aos consumidores em um mercado livre os melhores produtos, atendimento e preços possíveis em suas mercearias, e que os protegeriam de fabricantes de medicamentos desonestos e sem escrúpulos, funcionariam nas áreas de proteção, arbitragem e correções. A lei natural não se torna confusa e impotente só porque alguma atividade em particular sempre foi controlada por burocratas políticos.

Homens livres, agindo em um mercado livre, cuidariam de seus assuntos de acordo com a lei natural. O mercado é, ele próprio, um produto da lei natural e, portanto, atua no sentido de penalizar aqueles que “infringem” essa lei. A lei estatutária é um entrave torpe, anacrônico e injusto; ela é tão indispensável para regular os assuntos dos homens quanto reis e pais-de-santo.

 

______________________________

Notas

[1] Para um excelente trabalho sobre a invalidade da Constituição dos EUA, ver NO TREASON: The Constitution of No Authority, de Lysander Spooner. Publicada por Rampart College, 104 West Fourth St., Santa Ana, Califórnia 92701.

Morris & Linda Tannehill
Morris & Linda Tannehill
são dois ativistas e pensadores libertários que, no início dos anos 1970, fizeram avanços surpreendentemente profundos na teoria da sociedade sem estado. Seu manifesto de livre mercado, O Mercado da Liberdade, foi escrito logo após um período de intenso estudo dos escritos de Ayn Rand e Murray Rothbard; tem o ritmo, a energia e o rigor que você esperaria de uma discussão de uma noite com qualquer um desses dois gigantes.
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