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Povo e Burguesia

22 de maio de 1847

 

Os homens são facilmente enganados por sistemas, desde que um certo arranjo simétrico os torne fáceis de entender.

Por exemplo, nada é mais comum hoje do que ouvir falar do povo e da burguesia como constituindo duas classes opostas, tendo entre elas as mesmas relações hostis que outrora armaram a burguesia contra a aristocracia.

“A burguesia, dizem, foi fraca no início. Ela foi oprimida, pisoteada, explorada, humilhada pela aristocracia. Ela cresceu, ficou mais rica, se fortaleceu até que, pela influência dos números e da fortuna, conquistou seu adversário em 89.

Então ela mesma se tornou a aristocracia. Abaixo dela, estão as pessoas, que vão crescendo, se fortalecendo e se preparando para vencer, no segundo ato da guerra social.”

Se a simetria bastasse para dar verdade aos sistemas, não vemos por que este não iria mais longe. Não poderíamos acrescentar de fato:

Quando o povo tiver triunfado sobre a burguesia, ele dominará e, consequentemente, será uma aristocracia em relação aos mendigos. Estes irão crescer, tornar-se mais fortes, e irão preparar o mundo para o drama da terceira guerra social.

O menor defeito desse sistema, que cobre muitos jornais populares, é que ele é falso.

Entre uma nação e sua aristocracia, vemos claramente uma linha de separação profunda, uma hostilidade de interesses indiscutível, que não pode deixar de levar à luta mais cedo ou mais tarde. A aristocracia veio de fora; ela conquistou seu lugar pela espada; domina pela força. Seu objetivo é transformar o trabalho dos vencidos a seu favor.

Apodera-se das terras, comanda os exércitos, arroga-se o poder legislativo e judiciário, e mesmo, por ser dona de todos os meios de influência, não despreza as funções ou pelo menos as dignidades eclesiásticas. Para não enfraquecer o esprit de corps que lhe é salvaguardado, os privilégios que usurpou, transmite-os de pai para filho por ordem de primogenitura. Ela não se recruta fora de si mesma, ou, se o faz, é porque já está a caminho da ruína.

Que semelhança podemos encontrar entre esta constituição e a da burguesia? Na verdade, podemos dizer que existe uma burguesia? O que esta palavra representa? Chamaremos de burguês quem, por sua atividade, sua assiduidade, suas privações, se colocou em condições de viver do trabalho anterior acumulado, em uma palavra do capital?

Há apenas uma ignorância desastrosa da economia política que poderia ter sugerido este pensamento: que viver do trabalho acumulado é viver do trabalho dos outros. – Que aqueles que assim definem a burguesia comecem por nos dizer o que há, no lazer laboriosamente conquistado, no desenvolvimento intelectual que dele decorre, na formação do capital que o fundamenta, que se opõe necessariamente aos interesses da humanidade, da comunidade ou mesmo das classes trabalhadoras.

Esses passatempos, se não custam nada a ninguém, merecem despertar ciúme? Este desenvolvimento intelectual não se torna a favor do progresso, tanto na ordem moral como na ordem industrial?

Esses capitais sempre crescentes, precisamente por causa das vantagens que conferem, não são eles o fundo de que vivem as classes que ainda não se livraram do trabalho manual? E o bem-estar dessas classes, em igualdade de condições, não é exatamente proporcional à abundância dessas capitais e, consequentemente, à velocidade com que se formam, à atividade com que competem?

Mas, é claro, a palavra burguesia teria um significado muito limitado se fosse aplicada exclusivamente aos homens de lazer. Também ouvimos sobre todos aqueles que não são assalariados, que trabalham por conta própria, que dirigem, por sua conta e risco, empresas agrícolas, manufatureiras, comerciais, que se dedicam ao estudo da ciência, das artes e às obras do intelecto.

Mas então é difícil conceber como se encontra entre a burguesia e o povo essa oposição radical que permitiria que suas relações fossem equiparadas às da aristocracia e do povo.

Todo negócio não tem suas chances? Não é muito natural e muito afortunado que o mecanismo social permita que aqueles que podem perder a chance de assumir os riscos?

Além disso, não é nas fileiras dos trabalhadores que a burguesia se recruta constantemente? Não é entre o povo que se formam essas capitais, objeto de tantas declamações insanas? Onde essa doutrina nos leva?

O que! Daí se poderia dizer que o trabalhador que terá todas as virtudes pelas quais o homem se liberta do jugo das necessidades imediatas, porque será laborioso, econômico, ordeiro, senhor de suas paixões, honesto; porque trabalhará com algum sucesso para deixar seus filhos em melhores condições do que aquela que ele mesmo ocupa, – em uma palavra para fundar uma família, – podemos dizer que este trabalhador está no caminho errado, da mesma forma.

Pois está no caminho que afasta a burguesia da causa popular e que conduz a uma região de perdição! Ao contrário, bastará para ser bom que um homem não tenha visão do futuro, que esteja perdendo loucamente seus lucros, que nada faça para merecer a confiança daqueles que o ocupam, que não consinta em “impor-se nenhum sacrifício”.

De modo que é verdade que este é o homem-povo por excelência, o homem que jamais se erguerá acima da obra mais grosseira, o homem cujos interesses sempre coincidirão com o interesse social, é claro!

A mente é tomada por uma tristeza profunda ao ver as consequências terríveis contidas nessas doutrinas errôneas, e para a propagação das quais, entretanto, se trabalha com tanto ardor. Ouvimos falar da guerra social como algo natural, inevitável, inevitavelmente provocado pela alegada hostilidade radical do povo e da burguesia, semelhante à luta recente entre, em todos os países, a aristocracia e a democracia.

Mas, novamente, a semelhança está correta? Podemos assimilar a riqueza adquirida pela força à riqueza adquirida pelo trabalho? E se o povo considera toda elevação, mesmo a natural por meio da indústria, da poupança, do exercício de todas as virtudes, um obstáculo a ser derrubado – que motivo, que estímulo, que razão de ser vai restar – à atividade humana e à previsão?

É angustiante pensar que um erro, repleto de eventualidades tão terríveis, seja fruto da profunda ignorância em que a educação moderna retém as gerações atuais sobre tudo o que tem a ver com o mecanismo da sociedade.

Portanto, não vamos ver duas nações na nação; há apenas uma. Graus infinitos na escala de fortunas, todos devido ao mesmo princípio, não são suficientes para constituir classes diferentes, ainda menos classes hostis.

No entanto, é preciso dizer, há na nossa legislação, e principalmente na legislação financeira, certas disposições que parecem ali mantidas apenas para alimentar e, por assim dizer, justificar o erro e a irritação populares.

Não se pode negar que a influência legislativa, concentrada nas mãos de poucos, às vezes foi implementada com parcialidade. A burguesia seria muito forte diante do povo, se pudesse dizer:

“Nossa participação nos bens comuns difere em grau, mas não em princípio. Nossos interesses são os mesmos; ao defender o meu, defendo o seu. Veja a prova disso em nossas leis; eles são baseados na justiça exata. Eles também garantem todas as propriedades, independentemente da sua importância.”

Mas é assim? A propriedade do trabalho é tratada por nossas leis como igual à propriedade acumulada fixada no solo ou no capital?

Claro que não; deixando de lado a questão da distribuição de impostos, podemos dizer que o regime protetivo é o terreno especial sobre o qual os interesses e as classes lutam mais acirradamente, já que este regime tem a pretensão de equilibrar os direitos e os sacrifícios de todas as indústrias.

Agora, nessa pergunta, como se portaram os legisladores? Como eles trataram o trabalho?

Pode-se dizer que ela nada fez e que nada pode fazer pelo trabalho em si, embora se afirme a fiel guardiã do trabalho nacional. O que ela tentou foi aumentar o preço de todas as mercadorias, dizendo que salários mais altos viriam naturalmente.

No entanto, se falhou, como acreditamos, em seu objetivo imediato, foi ainda menos bem-sucedido em suas intenções filantrópicas. A taxa de trabalho depende exclusivamente da razão entre o capital disponível e o número de trabalhadores.

Ora, se a proteção nada muda nessa relação, se não consegue nem aumentar a massa do capital, nem diminuir o número de ferramentas, seja qual for a influência que exerça sobre o preço dos produtos, ela não exercerá nenhuma sobre a taxa salarial.

Seremos informados de que estamos em contradição; que, por um lado, argumentamos que os interesses de todas as classes são homogêneos, e que agora apontamos um ponto em que a classe rica abusa do poder legislativo.

Apressemo-nos a dizê-lo, a opressão exercida, desta forma, por uma classe sobre a outra, nada teve de intencional; é um erro puramente econômico, compartilhado pelo povo e pela burguesia.

Daremos duas provas incontestáveis ​​disso: a primeira é que a proteção não beneficia em última instância aqueles que a estabeleceram. A segunda é que se prejudica as classes trabalhadoras, elas o ignoram completamente, e a tal ponto que se mostram mal-intencionados para com os amigos da liberdade.

Porém, é da natureza das coisas que a causa de um mal, uma vez apontada, acabe sendo geralmente reconhecida. A injustiça do regime protetor em algum momento fornecerá um argumento terrível para as recriminações da massa.

Que a classe eleitoral se acautele! Nem sempre o povo buscará a causa de seu sofrimento na ausência de um falanstério, de uma organização do trabalho, de uma combinação quimérica.

Um dia ele verá a injustiça onde está. Um dia ele vai descobrir que fazemos muito pelos produtos, que nada é feito pelos salários e que o que fazemos pelos produtos não tem influência nos salários. Então ele vai se perguntar:

Desde quando as coisas são assim? Quando nossos pais puderam se aproximar das urnas, era proibido ao povo, como hoje, trocar seu salário por ferro, ferramentas, combustível, roupas e pão? Ele encontrará a resposta escrita nas tarifas de 1791 e 1795. E o que vocês terão para responder a ele, legisladores industriais, se ele acrescentar:

“É fato que uma nova aristocracia substituiu a antiga?”

Se, portanto, a burguesia quer evitar a guerra social, cujos rumores distantes se ouvem nos jornais populares, que não separe os seus interesses dos das massas, que estude e compreenda a solidariedade que os une; se quer o consentimento universal para sancionar a sua influência, coloque-o ao serviço de toda a comunidade; se não quer que as pessoas se preocupem muito com seu poder de legislar, que seja justo e imparcial; se concede proteção aduaneira a todos ou a nenhuma.

É certo que a posse das ferramentas e das faculdades é tão sagrada quanto a dos produtos. Já que a lei aumenta o preço dos produtos, então vamos aumentar também o preço e a taxa salarial; e, se ela não puder, que os deixe trocar livremente uns com os outros.

Frédéric Bastiat
Frédéric Bastiat
Frédéric Bastiat foi o grande proto-austrolibertário cujas análises polêmicas ridicularizavam todos os clichês estatistas. Seu desejo primordial como escritor era passar às pessoas, da maneira mais prática possível, a urgência moral e material da liberdade.
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