Quando falamos dos Estados Unidos, não há dúvida de que somos tomados por sentimentos conflitantes. Também pudera, uma das sociedades mais complexas e multifacetadas do globo terrestre, o termo “excepcionalismo americano” foi estabelecido para tentar explicar porque os Estados Unidos é um país extremamente singular, sem paralelo na história da humanidade.
Sem dúvida, os Estados Unidos é um país de muitos contrastes. Embora complexidades culturais estejam presentes em muitos países — não unicamente, mas especialmente naqueles de proporções continentais —, não deixa de ser curioso analisar alguns elementos da cultura americana que definitivamente a tornam única.
Uma sociedade de contrastes e paradoxos bastante extremos, temos no mesmo país uma das maiores indústrias pornográficas do mundo, lado a lado com uma sociedade majoritariamente conservadora, de moral cristã. Metrópoles de milhões de habitantes estão a apenas alguns quilômetros de cidades extremamente pequenas, onde todos os membros da comunidade se conhecem, e todos se reúnem para celebrar o festival da primavera. Uma sociedade extremamente patriótica, orgulhosa de seus costumes, história e tradições, está perfeitamente inserida em um dos países que mais recebe imigrantes de praticamente todas as regiões do mundo. E é também uma sociedade com forte inclinação nacionalista, onde se multiplicam movimentos separatistas por todos os territórios do país.
Não há dúvida de que, direta ou indiretamente, somos todos altamente influenciados pela cultura americana, que definitivamente se tornou onipresente. Ela está em toda a parte, somos constantemente bombardeados e influenciados por ela. Cinema, música, literatura. Todos já assistimos a inúmeros filmes produzidos em Hollywood. Todos nós já lemos Jack London, Jack Kerouac ou Ernest Hemingway. A maioria de nós sabe ler e falar inglês. Também sabemos como o conservadorismo americano há muito tempo influencia movimentos políticos no mundo inteiro, e serve como uma espécie de bússola moral-ideológica das nações e da preservação de costumes e tradições seculares.
No entanto, para avaliar corretamente os Estados Unidos — e o impacto de sua influência, tanto cultural quanto política, no resto do mundo —, precisamos entender que a sociedade americana e o governo americano são duas coisas completamente distintas. Essa separação é fundamental. Não há nada de errado em desprezar e detestar o governo americano, mas não existem motivos ou razões válidas para uma pessoa sensata e prudente detestar o povo americano, ao menos de forma geral. Evidentemente, isso se aplica a qualquer caso. Uma pessoa sensata irá certamente desprezar e odiar a ditadura chinesa, mas não existem motivos racionais válidos para se odiar ou desprezar o povo chinês.
Conservadorismo, Libertarianismo e a Sociedade Americana
Evidentemente, quando falamos sobre a cultura político-ideológica da sociedade americana, o seu conservadorismo e o seu libertarianismo se sobressaem de formas e maneiras bastante evidentes. A valorização da liberdade sempre foi presente na sociedade americana, e ela faz parte da sua cultura tradicional. Desde cedo, o cidadão americano foi ensinado a cultivar o respeito pela liberdade e a lutar por ela.
O americano entende que o estado não é o seu dono; portanto, sempre que o estado se revelar uma ameaça para ele, para a comunidade e para o seu estilo de vida, ele tem o direito inerente de lutar para se defender. Essa é uma das principais razões pelas quais a sociedade americana permanece sendo uma das mais armadas do mundo. O reconhecimento de que o estado é uma ameaça sempre presente levou os americanos a compreender que a tirania do estado só pode ser contida se os indivíduos estiverem muito bem armados. Até mesmo a constituição federal e as constituições estaduais reconhecem o direito dos cidadãos de se agruparem em milícias para resistir à tirania do estado.
Na prática, os cidadãos americanos sabem o valor que isso representa para a preservação e a manutenção da liberdade.
Para citar um exemplo relativamente recente, no final de 2019, Ralph Northam, o então governador democrata da Virgínia, decidiu implementar uma política de desarmamento da população. Rapidamente, cidadãos armados em todo o estado se mobilizaram para protestar contra essa medida autoritária. Diversos condados se tornaram santuários da segunda emenda, e um condado em particular, Tazewell, foi mais além e aprovou uma resolução de milícia. Em alguns dias, cidadãos de outros estados americanos foram até a Virgínia para se juntar aos protestos; até mesmo para evitar medidas similares de serem adotadas em seus estados natais. Isso congregou uma enorme reação em cadeia, que se mostrou uma formidável manifestação popular em defesa da liberdade.
A medida arbitrária de desarmar os cidadãos do estado da Virgínia e privá-los do seu direito natural de se defender deflagrou uma comoção geral, que gerou repercussões negativas no país inteiro. Evidentemente, essa medida não foi levada adiante pela Assembleia Geral do estado, e eventualmente ela acabou sendo descartada.
Não há dúvida de que a medida terrivelmente estúpida de desarmar os cidadãos foi abandonada porque a classe política e os burocratas do estado ficaram todos apavorados. Milhares de cidadãos protestando armados devem ser obedecidos. Evidentemente, os cidadãos da Virgínia não teriam tido formas e maneiras de impor a sua vontade, caso estivessem desarmados.
Mais uma vez os americanos nos ensinaram uma preciosa lição. Políticos e burocratas não precisam necessariamente respeitar a população; o correto é que eles tenham medo dela. Eles devem ficar apavorados, devem ser consumidos pelo pânico e pelo medo. Mas para esse medo ser cultivado, é fundamental que a população esteja armada.
Esse exemplo formidável e radical de agressiva e inflexível oposição ao estado, com disposição para declarar guerra civil — ainda que não seja exclusivo dos americanos —, é uma importante manifestação de suas inclinações e de sua tradição libertária.
A politização prática e a eventual produção de um arcabouço teórico libertário jusnaturalista fez os Estados Unidos se tornar, invariavelmente, um farol da liberdade para o resto do mundo.
Tão importante quanto, o conservadorismo americano criou raízes igualmente sólidas no imaginário popular e no ambiente político global. Só que enquanto o libertarianismo americano está mais associado a armas, liberdade individual, evasão fiscal e resistência ao estado, o conservadorismo está mais associado ao militarismo, à bandeira (Stars and Stripes), à estátua da liberdade e a tortas de maçã. Embora, é claro, essa seja apenas uma generalização.
Não obstante, é inegável que o conservadorismo e o libertarianismo americano fazem um overlap interessante, muito mais acentuado do que no caso brasileiro (onde as divergências são muito mais aparentes, embora em muitos pontos ambos sejam quase derivados do seu correspondente americano). Na política prática, o libertário americano foi criado basicamente para ser um minarquista que tenta evitar a expansão do estado.
Por causa do overlap que permite uma convergência de crenças e objetivos em comum, a distinção entre o conservador e o libertário americano pode não ser tão aparente à princípio. Em qualquer um dos casos, nenhum deles pretende acabar com o estado em si (lembrando que minarquistas, nos Estados Unidos, são considerados libertários). Ambos querem apenas reduzi-lo, contê-lo ou ter meios para se resguardar e se proteger no caso de uma tentativa de usurpação dos seus direitos naturais (como o governador da Virgínia tentou fazer, em 2019).
Seja como for, não há dúvida de que a sociedade americana, de forma geral, possui genuínas e inquestionáveis credenciais libertárias. Os Estados Unidos permanece sendo um dos países que tem o maior número de armas nas mãos da sociedade civil. São 393 milhões de armas para uma população de 331 milhões de habitantes (120 armas para cada 100 pessoas). No balanço geral, temos uma sociedade que resiste de forma prática à expansão do estado e a intromissão do governo em suas vidas, e que permanece sendo uma das mais livres do mundo.
No entanto, como descrito no início deste artigo, os Estados Unidos congrega uma das sociedades mais complexas do mundo. Não podemos deixar de levar em consideração o fato de que, apesar de ser um país livre — na verdade, bastante livre, especialmente se levarmos em consideração o padrão geopolítico contemporâneo, de caráter majoritariamente autocrático e centralizador —, os Estados Unidos é um país de enormes contrastes. Por exemplo, seria impossível negar que os Estados Unidos possui um governo federal altamente militarista, expansionista e intervencionista, responsável por tragédias, crimes de guerra e catástrofes inenarráveis em vários países do Oriente Médio, da Ásia e da África.
Mas como um país com uma tradição tão liberal como os Estados Unidos pode ser tão opressivo com o resto do mundo? Não seria, à princípio, contraditório que um país possa ser internamente livre, mas ao mesmo tempo se empenhe tão arduamente em subjugar inúmeras nações ao redor do mundo?
Hans-Hermann Hoppe chama este fenômeno de paradoxo da política externa. E isso não é, de maneira alguma, uma contradição, mas um axioma lógico.
Como Hoppe explicou nesta palestra: “O paradoxo é esse — estados que são internamente opressivos tem economias que geralmente são fracas. Mas para ser bem-sucedido em uma guerra, você precisa ter uma economia produtiva. Estados opressivos não tem uma economia florescente, então eles tendem, no que diz respeito à política externa, a ser cautelosos, porque no longo prazo, eles tenderão a perder. No entanto, estados liberais, no sentido europeu, de que eles são comparativamente bons com a sua população, tem uma economia funcional, e tenderão a vencer em guerras prolongadas. Portanto, os países mais liberais tenderão a ser as principais potências imperialistas.”
“O primeiro exemplo, é claro, é a Grã-Bretanha. Internamente, bastante liberal, mas é claro que, por muitos séculos, foi a principal potência imperialista, precisamente porque eles tinham os meios para derrotar outros países. Depois, é claro, começando pelo fim da Primeira Guerra Mundial, e depois de forma mais pronunciada depois da Segunda Guerra Mundial, este papel que antes era desempenhado pela Grã-Bretanha foi assumido pelos Estados Unidos.”
Nesta mesma palestra, Hoppe ainda explicou a necessidade que governos terão em “externalizar o custo da agressão para outros. [Políticos] podem fazer outras pessoas pagarem pelos seus impulsos agressivos. O que muitas vezes restringe [os políticos] a cederem aos seus impulsos agressivos vem do fato de que eles terão que pagar por eles (…) No entanto, se você não tem que arcar com esses custos com o seu próprio dinheiro, mas pode fazer outras pessoas, seus súditos, pagarem por seus empreendimentos agressivos, então você será mais agressivo do que normalmente seria. Isso explica a tendência dos estados entrarem em guerra uns contra os outros.”
Em vista desta explicação, vamos analisar em maiores detalhes os Estados Unidos enquanto potência imperialista.
Os EUA como Potência Imperialista
As guerras destrutivas e criminosas que o governo federal americano e o seu complexo industrial-militar travaram em países como Iraque e Afeganistão em nome da democracia foram simplesmente a manifestação natural da cultura de uma potência imperialista, que, sob as justificativas mais eloquentes — supostamente nobres e altruístas —, envia os seus exércitos até países distantes para pilhá-los, saqueá-los, explorar suas riquezas naturais e colocar no poder fantoches que serão aliados políticos por conveniência.
Nesse aspecto, o caso iraquiano é muito interessante de ser analisado. Saddam Hussein governou o Iraque oficialmente de 1979 a 2003. A maior parte desse longo período foi com a total aprovação dos Estados Unidos. Quando Saddam Hussein passou a manifestar ambições próprias, ele deixou de ser considerado um aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio, para ser visto como um ditador opressivo e perigoso.
Hoje, é fácil perceber que a invasão do Iraque ao Kuwait em 1990 deixou o governo federal dos Estados Unidos profundamente perturbado, por razões puramente econômicas. Os políticos americanos passaram a temer que as grandes reservas de petróleo do Kuwait passassem a ser totalmente controladas pela elite iraquiana. Só que os americanos não estavam dispostos a renunciar ao precioso ouro negro com facilidade.
Os americanos toleraram Saddam Hussein por um período de tempo para ver se ele mudava de ideia. No entanto, quando ele anexou o Kuwait como a 19ª província do Iraque, a elite política americana ficou histérica. Quando perceberam que Saddam Hussein não estava disposto a retroceder, o governo americano decidiu iniciar uma grande campanha difamatória contra o ditador iraquiano.
Como retaliação por sua desobediência, o governo americano — em parceria com o governo britânico —, inventou a mentira de que o Iraque tinha armas de destruição em massa. Eles precisavam de um pretexto para invadir o Iraque e depor Saddam Hussein, com o objetivo de instituir um governo “democrático” que fosse favorável aos seus interesses.
Da noite para o dia, Saddam Hussein, de amiguinho bacana e aliado importante dos Estados Unidos, foi rapidamente rebaixado para a posição de tirano mais cruel da história mundial recente. Acontece que Saddam Hussein foi um déspota brutal e implacável durante todo o seu regime, sendo diretamente responsável pela morte de aproximadamente 250.000 iraquianos, de acordo com estimativas moderadas.
Não obstante, ele só passou a ser considerado um tirano opressivo, bem como um inimigo da democracia e do mundo livre, quando ele perdeu sua utilidade e serventia para o governo federal dos Estados Unidos. Durante o período de sua ditadura no qual Saddam Hussein foi extremamente subserviente aos interesses americanos, ele nunca tinha a sua imagem associada a de um déspota, tampouco seu governo era reconhecido como uma ditadura. Mas quando ele cometeu o “crime” de não ser apenas mais um vassalo dos Estados Unidos no Oriente Médio, ele passou a ser sumariamente demonizado, sendo posteriormente caçado e descartado da equação geopolítica sob pretextos absurdos.
Saddam Hussein tornou-se descartável para o cenário geopolítico quando cometeu o “crime” de recusar-se a ser apenas e tão somente mais uma marionete do Tio Sam no teatro de operações americano do Oriente Médio. De todos os crimes que ele cometeu, esse certamente é o mais digno de perdão.
A máquina de propaganda anglo-americana fez tudo o que estava ao seu alcance para retratar Saddam Hussein como um ditador cruel e implacável, tanto quanto se empenhou em mostrar o exército dos Estados Unidos como uma força benéfica e redentora. Da mesma forma, a ocupação americana foi difundida como necessária para pacificar e reconstruir a nação iraquiana.
Evidentemente, o exército dos Estados Unidos não depôs o ditador por benevolência ou por amor ao povo iraquiano. Muito pelo contrário. Em seu livro, Iraque — dos primórdios à procura de um destino, o diplomata brasileiro Bernardo de Azevedo Brito escreveu:
“Na medida em que [Tony] Blair passou a apoiar de imediato a política maximalista dos Estados Unidos em relação ao Iraque, ficou claro que Washington e Londres estavam determinados a derrubar Saddam Hussein a qualquer custo — segundo uma lógica que nada tinha que ver com armas de destruição em massa, nem muito menos com preocupações em matéria de direitos humanos. Sobre a motivação última de tal determinação só se poderá especular, mas não seria de surpreender que um dia fique patente que os Estados Unidos foram levados a invadir o Iraque em 2003 a fim de promover os seus interesses econômicos e geopolíticos, em particular no que diz respeito à segurança nos suprimentos de petróleo, à alegada ameaça do Irã e aos múltiplos compromissos de Washington com Israel. Haveria de ter em conta que, se a simples troca do líder teria sido cogitada em 1991, à época de Bush pai, o que era desejado agora era a mudança no Iraque de toda uma cúpula (…)”
Não há dúvida nenhuma de que o governo federal dos Estados Unidos agiu no Iraque para atender a interesses muito particulares. Da mesma forma como agiu no Afeganistão, no Vietnã e em muitos outros países do globo terrestre por razões muito similares, que nunca foram nobres, benévolas ou altruístas. A desculpa de “levar a democracia”, “combater o comunismo” ou “combater o terrorismo” em tais países nunca passou de uma prerrogativa política infantil para iludir o grande público. As prioridades do governo federal americano sempre consistiram em consolidar a hegemonia do seu complexo industrial-militar no mundo inteiro para conter a ascensão e o fortalecimento de potências concorrentes — como Rússia e China —, se apropriar de todos os recursos naturais possíveis e imagináveis e ampliar o monopólio do cartel financeiro internacional que é controlado por poderosas dinastias bancárias, que insistem em endividar o mundo inteiro, através do controle de órgãos supranacionais como o Fundo Monetário Internacional.
No entanto, sabemos perfeitamente que a lista de crimes de guerra que já foram perpetrados pelas forças armadas dos Estados Unidos sob as ordens da Casa Branca é simplesmente infindável. Poderíamos preencher enciclopédias inteiras se fôssemos fazer uma lista extensa e abrangente dos crimes de guerra perpetrados pelo Tio Sam em nome da “paz”, da “liberdade” e da “democracia”.
Para citar um exemplo — em 2015, um escândalo nacional foi deflagrado, quando quatro indivíduos da força aérea — Brandon Bryant, Michael Haas, P.W. Singer e Chris Wallace, que operavam drones em operações de contraterrorismo que tinham por objetivo abater alvos em países do Oriente Médio, como o Afeganistão — afirmaram publicamente que os drones eram muito eficientes em matar centenas ou até mesmo milhares de civis inocentes. Os quatro indivíduos alegaram que seus superiores simplesmente diziam que eles deveriam exercer suas funções sem contestá-las e simplesmente ignorar os “danos colaterais”, como se estes não existissem.
Os quatro whistleblowers foram ameaçados com processos na corte marcial por revelarem segredos militares. Mesmo assim — querendo limpar suas consciências dos terríveis crimes de guerra dos quais foram cúmplices —, eles decidiram escrever e enviar uma carta ao então presidente Barack Obama, que em parte dizia:
“Chegamos à conclusão de que os civis inocentes que estávamos matando apenas alimentavam os sentimentos de ódio que deflagraram o terrorismo e grupos como o ISIS, ao mesmo tempo em que serviam como uma ferramenta fundamental de recrutamento semelhante à Baía de Guantánamo. Este governo e seus antecessores construíram um programa de drones que é uma das forças motrizes mais devastadoras do terrorismo e da desestabilização em todo o mundo”.
“Testemunhamos desperdício grosseiro, má gestão, abusos de poder e os líderes de nosso país mentindo publicamente sobre a eficácia do programa de drones. Não podemos ficar sentados em silêncio e testemunhar tragédias como os ataques em Paris, sabendo dos efeitos devastadores que o programa de drones tem no exterior e em casa.”
Adicionalmente, os quatro whistleblowers afirmaram que é prática comum entre militares sêniores das forças armadas frequentar convenções de vídeo games, com o objetivo de identificar e coagir ao recrutamento militar jovens que se mostram excepcionalmente habilidosos em jogos eletrônicos.
Apesar da considerável repercussão que o escândalo gerou na época — quase sete anos —, esse acontecimento acabou se tornando apenas mais um a constar na infindável lista de atrocidades e crimes de guerra cometidos pelas forças armadas americanas; em pouco tempo, esse escândalo militar acabou sendo relegado ao segundo plano, até que foi convenientemente esquecido pelo público. Muito provavelmente, o programa de ataques de drones supervisionado pela CIA continua ativo, a partir de bases remotas localizadas em regiões inóspitas, como o deserto de Nevada.
Diante dos fatos apresentados, é impossível negar que os Estados Unidos é uma criminosa e deplorável potência imperialista. Mas novamente, é necessário enfatizar mais uma vez que existe uma diferença fundamental entre o governo americano e a sociedade americana, que são duas coisas completamente distintas. Os crimes de guerra cometidos pelas forças armadas no exterior — com a aprovação e o beneplácito do governo federal — são frequentemente criticados com indignação mordaz por cidadãos americanos comuns.
Na verdade, muitos deles criticam de forma contundente todas as intervenções militares e todos os projetos de ocupação do exército americano no exterior. Tanto paleoconservadores — um movimento exclusivamente americano, que está em franca oposição aos neoconservadores militaristas e intervencionistas — quanto libertários são opositores ferrenhos de qualquer intervenção militar americana em território estrangeiro. Ambos os grupos afirmam categoricamente que o governo federal americano não deveria interferir nas questões internas de outros países e todas as tropas americanas estacionadas em bases militares no exterior deveriam ser convocadas para retornar ao território americano.
Infelizmente, o governo federal americano não parece nem um pouco disposto a atender esse pedido, pois usa o seu poderoso exército para atender aos interesses escusos das poderosas elites econômicas que estão no controle do sistema político. Sabemos que, no final das contas, para as elites bancárias a guerra é um grande negócio. Quando analisamos os acontecimentos por essa perspectiva, fica fácil compreender porque o governo federal americano se tornou uma máquina de massacrar pessoas, tanto estrangeiros quanto os seus próprios cidadãos, que são frequentemente enviados para morrer em guerras deploráveis e inúteis — porém lucrativas —, ao redor do mundo.
Um Estado Policial vigilante e onipresente
Como não poderia deixar de ser, para completar o trágico mosaico de contradições que é a sociedade americana, é impossível omitir o fato de que os Estados Unidos também pode ser considerado um mortífero e opressivo estado policial, onde a CIA, o FBI, a ATF, a TSA e o IRS — para citarmos apenas algumas siglas das agências que formam coletivamente uma institucional sopa de letrinhas —, servem aos interesses de uma autocracia onipresente, de caráter altamente extorsivo, intrusivo e vigilante, que não hesita em espionar, perseguir, encarcerar e até mesmo matar cidadãos inocentes, acusados de incorrer em alguma suposta violação cometida contra a legislação do governo federal. Geralmente, essas atividades opressivas e violentas são executadas com a desculpa de combate ao terrorismo ou a evasão fiscal.
As deploráveis e criminosas arbitrariedades que o governo federal americano executa contra os seus próprios cidadãos, além de corriqueiras, são bastante perversas e violentas. Vou citar um caso relativamente recente que se tornou bastante conhecido.
Em 2013, um indivíduo chamado Ross Ulbricht foi preso por operar um site chamado Silk Road, dedicado única e exclusivamente a transações comerciais (compra e venda de entorpecentes e substâncias consideradas ilícitas pelo estado). Ulbricht usava o navegador Tor para permanecer anônimo e aceitava criptomoedas como forma de pagamento. Apoiador do veterano libertário Ron Paul, Ross Ulbricht era também um entusiasta das ideias agoristas de Samuel Konkin. Uma de suas motivações para criar o site foi justamente o genuíno espírito americano de resistência ao estado. Como todo bom libertário, Ross Ulbricht via impostos como extorsão, e a sonegação como um ato de legítima defesa do indivíduo contra o estado.
Depois de muitas investigações, a receita federal americana (IRS) conseguiu conectá-lo ao Dread Pirate Roberts, pseudônimo que Ulbricht usava online. Depois de alguns meses de investigação, os agentes da receita federal conseguiram ligá-lo ao Silk Road, obtendo provas de que ele era o responsável pela manutenção do site. Em outubro de 2013, Ross Ulbricht foi preso. Em maio de 2015, ele foi condenado a duas sentenças de prisão perpétua, com um adicional de 40 anos, sem a possibilidade de liberdade condicional. Via de regra, nem mesmo estupradores e assassinos — que por sua vez devem ser acusados e penalizados, pois cometeram crimes reais — recebem sentenças judiciais tão pesadas nos Estados Unidos.
A sentença brutal, injustificável e terrivelmente desproporcional que Ross Ulbricht recebeu como penalidade pelo seu “crime” lhe foi imputada pelo simples fato de que ele operou um site na internet por dois anos, que oferecia ao seu público um ambiente virtual livre para o comércio de substâncias consideradas “ilícitas” pelo governo. A verdade, no entanto, é que Ross Ulbricht não cometeu nenhum crime real. Ele não extorquiu, não ameaçou e nem mesmo agrediu terceiros. Ele não obrigava ninguém a navegar pelo site ou a realizar transações comerciais no Silk Road. Ele era simplesmente um sujeito comum, que operava um site de transações comerciais puramente voluntárias na internet. Se você não pode fazer nem mesmo isso sem a autorização do estado, então você é literalmente um escravo.
Essa trágica injustiça mostra como o governo federal americano é, de fato, um estado policial que está em uma guerra permanente contra a liberdade e contra os seus próprios cidadãos. Um documentário sobre o caso Ross Ulbricht, intitulado Deep Web, narrado por Keanu Reeves, foi lançado em 2015. Um filme intitulado Silk Road: Mercado Clandestino, foi lançado em 2021, e mostra em detalhes a vida e a trajetória de Ross Ulbricht.
Conclusão
Essa análise nos mostra que, de fato, os Estados Unidos é, efetivamente, um país singular, que possui uma sociedade repleta de contrastes, sendo incrivelmente complexa no vasto mosaico de suas múltiplas composições. Isso é justamente o resultado de uma sociedade plural, composta por grupos, etnias e culturas extremamente diferentes, com ideologias, filosofias e crenças divergentes.
Ao falar dos Estados Unidos, falamos de um país que mexe profundamente com o imaginário popular. E não é para menos, pois ao falar dos Estados Unidos, estamos falando de uma sociedade que é, ao mesmo tempo, núcleo de resistência libertária da sociedade civil contra a tirania estatal, um implacável e truculento estado policial, e a mais cruel e desumana potência imperialista da história. Contrastes excepcionais para um único país. Por isso desperta tantas paixões e sentimentos conflitantes.
Levando todos os seus pontos positivos e negativos em consideração, é inegável o fato de que os Estados Unidos pode ser considerado uma grande escola, que tem muito a nos ensinar, tanto sobre como devemos agir e o que devemos evitar, especialmente quando o assunto em questão é a persistência radical e inflexível na luta pela ética, pelo voluntarismo e pela liberdade.