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16. Sobre Certeza e Incerteza

“O historicista honesto teria de dizer: nada pode ser afirmado sobre o futuro.”

Ludwig von Mises [1]


“O futuro, para nós todos, é desconhecido.” 

Ludwig Lachmann [2]

 

I.

É possível imaginar um mundo caracterizado pela certeza completa. Todos os eventos futuros, assim como todas as mudanças futuras, seriam conhecidos com antecedência e poderiam ser previstos com exatidão. Não ocorreriam erros nem surpresas. Saberíamos todas as nossas ações futuras e os resultados exatos delas. Em tal mundo, nada poderia ser aprendido; e, consequentemente, nada valeria a pena saber. De fato, a posse da consciência e do conhecimento seria inútil. Por que alguém desejaria saber alguma coisa se todos os eventos futuros e todas as ações futuras fossem completamente predeterminados — e se não faria qualquer diferença para o curso futuro dos eventos se alguém tivesse ou não tivesse este ou qualquer conhecimento? As nossas ações seriam como as de um autômato — e um autômato não precisa de nenhum conhecimento. Portanto, ao invés de representar um estado de perfeito conhecimento, a certeza completa realmente elimina o valor do conhecimento inteiro.

Obviamente, não habitamos um mundo de certeza completa. Não podemos prever todas as nossas ações futuras e o resultado delas. Há surpresas em nosso mundo. O nosso conhecimento sobre eventos e resultados futuros é menos que perfeito. Cometemos erros; podemos distinguir entre fracasso e sucesso; e somos capazes de aprender. Ao contrário de para um autômato, para nós o conhecimento é valioso. Saber ou não saber faz diferença. O conhecimento não é de eventos predeterminados e de estados de coisas, mas sim o conhecimento de como interferir e desviar o curso natural de eventos de modo a melhorar o nosso bem-estar subjetivo. O conhecimento não nos auxilia a prever um curso inalterável de eventos, mas é uma ferramenta para propositalmente modificar e esperançosamente melhorar resultados e eventos futuros. As nossas ações, ao contrário das operações de um autômato, não são uma série de eventos predeterminados, os quais o conhecedor não pode influenciar e em relação a cujo resultado ele permanece indiferente. Em vez disso, as nossas ações são sequências de decisões (escolhas) de modificar o curso predeterminado dos eventos em nosso favor. Nunca somos neutros ou indiferentes em relação ao curso de eventos futuros. Ao invés disso, sempre preferimos um curso de eventos a outro; e usamos o nosso conhecimento para materializar as nossas preferências. Para nós, o conhecimento é prático e eficaz; e, embora seja imperfeito e esteja sujeito a erros, é o único meio de alcançar o aperfeiçoamento humano, a melhoria humana.

 

II.

Do reconhecimento do (1) fato de que a previsão perfeita elimina a própria necessidade da ação de conhecer e da existência de conhecedores e do (2) fato de que tal necessidade só surge se, como em nosso mundo, a previsão for menos que perfeita — e na medida em que o conhecimento é um meio de materializar preferências — não se segue que tudo seja incerto. Muito pelo contrário. Num mundo onde tudo é certo, a ideia de certeza nem sequer existiria. A ideia de conhecimento certo exige, como contrapartida lógica, a ideia de incerteza. A certeza é definida em contraste com a incerteza; nem tudo pode ser certo. Da mesma forma, a incerteza não pode ser definida sem referência à certeza; nem todo conhecimento pode ser incerto. É essa última parte da mesma conclusão que os críticos do modelo de previsão perfeita, como Ludwig Lachmann, falharam em reconhecer. A partir do insight correto de que não habitamos um mundo de conhecimento perfeito, não se segue que vivemos num mundo de perfeita incerteza (id est, num mundo sem nenhuma certeza); e, do fato de que eu não posso prever todas as minhas ações futuras e todas as ações dos outros, não se segue que eu nada possa dizer sobre elas. Na verdade, ainda que eu, por exemplo, não saiba tudo sobre as minhas ações futuras, sei algo que é verdadeiro sobre cada uma delas: que eu, enquanto agir, utilizarei o meu conhecimento para interferir no curso natural dos eventos de modo a — espero — materializar um estado de coisas mais preferível.

Mais adiante, mais será dito sobre a importância dessa visão. Mas vale ressaltar desde o início que a ideia de incerteza perfeita ou radical (ou ignorância) ou é abertamente contraditória na medida em que ela pretender dizer: “tudo sobre o futuro é incerto, exceto que haverá incerteza — sobre isso estamos certos” ou significa uma contradição implícita se pretender dizer: “tudo é incerto; e é incerto também que nada existe além de incerteza”. (Eu sei que tal e tal é o caso; e eu não sei se tal e tal é o caso ou não.) Apenas uma posição no meio entre os dois extremos do conhecimento perfeito e da ignorância perfeita é consistentemente (coerentemente) defensável: [3] Existe incerteza, mas isso nós sabemos com certeza. Portanto, também existe certeza, e a fronteira entre conhecimento certo e conhecimento incerto é certa (baseada em conhecimento certo).

 

III.

Nada sobre o mundo externo, físico é ou pode ser conhecido com certeza — exceto por aquelas coisas bastante abstratas, mas universais e reais, que já estão implícitas no conhecimento certo do agir e da ação: que este deve ser um mundo de objetos e qualidades de objeto (predicados), de unidades contáveis, magnitudes físicas e de determinação quantitativa (causalidade). Sem objetos e qualidades de objeto, não pode haver proposições; sem unidades contáveis, não pode haver aritmética; e sem determinação quantitativa não pode haver o fato de que quantidades definidas de causas apenas provocam efeitos definidos (limitados) — não pode haver fins e meios (bens), i.e., nenhuma interferência ativa no curso de eventos externos com o objetivo de materializar um fim mais valorado (efeito preferencial). No entanto, além das leis da lógica proposicional, da aritmética e da causalidade, todo o outro conhecimento sobre o mundo externo é incerto (a posteriori). Nós não sabemos e não podemos saber com certeza (a priori) que tipos de objetos e qualidades de objeto existem, quantas unidades de quais dimensões físicas existem e quais relações quantitativas de causa e efeito existem (ou não existem) entre várias magnitudes de vários objetos. Tudo isso deve ser aprendido com a experiência. Ademais, a experiência significa invariavelmente experiência passada — experiência de eventos passados. Ela não pode revelar se os fatos e as relações do passado também se manterão no futuro. Não podemos deixar de supor que este será geralmente o caso. Mas não pode ser categoricamente descartada a possibilidade de estarmos enganados, assim como a possibilidade de que o futuro será tão diferente do passado que todo o nosso conhecimento passado se mostrará totalmente inútil. É possível que nenhum dos nossos instrumentos ou nenhuma das nossas máquinas funcione mais amanhã, que as nossas casas desabem em cima de nós, que a terra se abra e que todos nós pereçamos. É nesse sentido que o nosso conhecimento do mundo físico externo deve, em última análise, ser considerado incerto.

Todavia, não obstante essa incerteza final do nosso conhecimento sobre o mundo externo, como resultado de circunstâncias contingentes, com as relativas estabilidade e regularidade na concatenação de objetos e eventos externos tem sido possível para a humanidade acumular um corpo vasto e em expansão de conhecimento certo prático. Esse conhecimento não torna o futuro previsível, mas nos auxilia a prever os efeitos a serem produzidos por ações definidas. Ainda que não saibamos por que as coisas funcionam da maneira como funcionam — e se elas devem ou não sempre funcionar dessa forma —, sabemos com certeza prática completa que e como determinadas coisas funcionarão agora e amanhã. Nunca se encontrará isso nos escritos dos apóstolos da incerteza radical, mas um número inumerável e crescente de eventos (resultados) pode ser produzido literalmente à vontade e previsto com exatidão quase perfeita. A minha torradeira irá torrar algo, a minha chave abrirá a porta, o meu computador, o meu telefone e o meu fax funcionarão como deveriam, a minha casa me protegerá das intempéries, carros irão circular, aviões irão voar, xícaras ainda reterão água, martelos ainda irão martelar, e pregos ainda irão pregar. Grande parte do nosso futuro é, falando em termos práticos, perfeitamente certa. Cada produto, ferramenta, instrumento ou máquina representa um pedaço, uma parte de certeza prática. Afirmar, em vez disso, que estamos diante da incerteza radical e que o futuro seja incognoscível para todos nós não é apenas autocontraditório, mas também parece ser uma posição desprovida de bom senso.

 

IV.

A nossa certeza prática em relação a resultados e eventos futuros se estende ainda mais. Existem muitos eventos futuros sobre cujo resultado estamos praticamente certos, porque literalmente sabemos como produzi-los (o resultado se encontra o nosso completo controle prático). Também podemos prever com certeza prática um grande e crescente número de resultados fora e além do controle de qualquer pessoa. Às vezes, as minhas ferramentas, as minhas máquinas e os meus produtos estão defeituosos. A minha torradeira nada torra, o meu telefone está silencioso, um furacão ou um terremoto destruiu a minha casa, o meu avião se acidenta, ou a minha xícara quebra. Eu não tinha o conhecimento de que isso aconteceria comigo aqui e agora e, por esse motivo, não poderia ter agido de forma diferente daquela como agi. Sou então pego de surpresa. Mas a minha surpresa e a minha incerteza não devem ser totais. Pois, ao passo em que eu posso não saber absolutamente nada sobre o evento singular — esta xícara quebrará agora, este avião cairá agora, a minha casa será destruída por um terremoto daqui a dois anos — e, assim, não conseguir prever e modificar quaisquer eventos desse tipo, posso saber praticamente tudo em relação a toda a classe de eventos (xícaras quebradas, aviões se acidentando, terremotos) da qual o evento singular seja um membro. Posso saber, com base na observação de distribuições de frequência no longo prazo, que aviões de um certo tipo caem de vez em quando; que uma em cada dez mil xícaras produzidas é defeituosa; que máquinas desse e daquele tipo funcionam em média por 10 anos; e que um terremoto atinge uma determinada região na média de duas vezes por ano e destrói, no longo prazo, 1% do estoque habitacional existente por ano. Então, embora o evento singular ainda ocorra como uma surpresa, eu sei com certeza prática que surpresas como essas existem e quão frequentes elas são. Não estou surpreso com o tipo de surpresa nem com a sua frequência de longo prazo. A minha surpresa é apenas relativa. Estou surpreso com o fato de tal e tal acontecer aqui e agora em vez de em outro lugar ou mais tarde. Mas não estou surpreso com o fato de isso acontecer — aqui, ali, agora ou mais tarde. Ao delinear assim o alcance e a frequência de possíveis surpresas, a minha incerteza em relação ao futuro, embora não esteja eliminada, é sistematicamente reduzida.

Casos de surpresas limitadas ou incerteza reduzida são, naturalmente, o que Frank Knight classificou como “risco” (em oposição à “incerteza”) e o que Ludwig von Mises, baseado em Knight e no trabalho sobre os fundamentos da teoria da probabilidade do seu irmão matemático, Richard von Mises, mais tarde definiria como “probabilidade de classe” (em oposição à “probabilidade de caso”) [4]: “Probabilidade de classe significa: Sabemos ou supomos saber, em relação ao problema em questão, tudo sobre o comportamento de toda uma classe de eventos ou fenômenos; mas sobre os eventos ou fenômenos singulares reais nada sabemos, apenas que sejam elementos dessa classe.” [5] Nada sei sobre se esta ou aquela xícara irá quebrar, nada sei sobre se a minha casa ou a sua casa será destruída por um tornado no próximo ano; mas eu sei, a partir da observação de distribuições de frequência de longo prazo sobre xícaras e tornados, por exemplo, que não mais que uma em dez mil xícaras é defeituosa e que, de mil casas numa determinada região, não mais que uma será destruída por ano, em média. Se, com base nesse conhecimento, eu adotasse uma estratégia de sempre prever que a próxima xícara não quebrará e que a minha casa não será destruída no próximo ano, eu cometeria erros. Mas, a longo prazo, essa estratégia garantiria mais sucessos que erros: os meus erros seriam erros ‘corretos’. Por outro lado, se eu adotasse a estratégia de sempre prever que a próxima xícara quebrará e que a minha casa será destruída, eu poderia muito bem estar correto. Mas, a longo prazo, essa estratégia certamente falharia: eu estaria erroneamente correto. Sempre quando as condições de probabilidade de classe são atendidas e não sabemos o suficiente para evitar erros totalmente, mas o suficiente para cometer apenas erros corretos, é possível fazer um seguro. Como produtor de xícaras, por exemplo, sei que, em média, terei de produzir 10.001 xícaras para ter 10.000. Não posso evitar xícaras quebradas, mas posso me assegurar contra o risco de xícaras quebradas ao incluí-lo, como uma perda regularmente ocorrente, na minha contabilidade de custos, assim adicionando um custo correspondentemente maior à minha produção de xícaras. Da mesma forma, não posso evitar tornados, mas posso me assegurar contra eles. Como as perdas decorrentes de tornados são grandes e pouco frequentes em relação ao tamanho e às operações da minha casa, seria difícil (embora não impossível) fornecer seguro internamente (dentro da minha casa). Mas é possível juntar o meu risco de sofrer danos de tornados com o seu e o de outras casas ou empresas numa determinada região. Nenhum de nós sabe quem será afetado pelo risco em questão; porém, com base no conhecimento da frequência objetiva de longo prazo de tornados e danos causados por tornados para toda a região, é possível calcular um prêmio por cujo pagamento cada um de nós pode ser segurado em relação a esse risco.

Não são apenas os conhecimentos incorporados em nossas ferramentas, nossos instrumentos e nossas máquinas, então, que fornecem informações certas práticas sobre o nosso futuro: nesse caso, o conhecimento de como provocaremos diversos eventos singulares. Além disso, o conhecimento incorporado em qualquer forma de seguro, seja praticado de forma interna ou por métodos de agrupamento, representa conhecimento certo prático: nesse caso, o conhecimento de como estar preparado para diversas classes de eventos cuja ocorrência individual encontra-se além do controle de qualquer pessoa. De fato, embora as condições de probabilidade de classe e insuperabilidade possam ser declaradas com exatidão, com certeza, a questão sobre se existem ou não existem eventos asseguráveis, sobre quais eventos asseguráveis existem e sobre as várias despesas de se assegurar contra eles não pode ser respondida com certeza. Por um lado, o conhecimento da distribuição objetiva de probabilidades deve ser adquirido através da experiência observacional — e, como é o caso de todo conhecimento baseado em tal experiência, nunca podemos saber se as regularidades passadas também se manterão no futuro. Talvez tenhamos de realizar revisões. Por outro lado, mesmo para coletar tais informações, é necessário que vários eventos singulares sejam classificados desde o início como pertencentes a uma mesma classe (de eventos). Esta xícara ou este tornado e aquela xícara ou aquele tornado são membros da mesma classe de xícaras ou de tornados. Entretanto, qualquer classificação desse tipo está maculada de incerteza. A classificação conjunta de uma série de eventos singulares só é correta (para fins de seguro) se ela afirmar que não se sabe mais sobre nenhum dos membros da classe singular além do fato de que cada um deles é um membro da mesma classe. Se eu soubesse, porém, que uma xícara era feita da argila A e outra da argila B, por exemplo, e que esse fato faz diferença para a frequência de longo prazo de defeitos, a minha classificação inicial se tornaria disfuncional. Da mesma forma, eu poderia aprender com a experiência que os danos causados pelos tornados no lado oriental de um determinado vale são sistematicamente maiores que os danos que ocorrem no lado ocidental. Nesse caso, a minha classificação original também teria de ser modificada, classes novas e revisadas e subclasses de eventos segurados teriam de ser formadas, e novos e diferentes prêmios de seguro teriam de ser calculados. Apesar dessas incertezas, merece ser enfatizado que, como um fato contingente da vida humana, a gama real de seguros — e, portanto, de informações relativamente certas sobre eventos e resultados futuros — é vasta e crescente: sabemos quantos navios provavelmente afundarão, quantos aviões cairão, quantas vezes choverá ou fará sol, quantas pessoas de uma determinada idade morrerão, quantas caldeiras de água quente explodirão, quantas pessoas serão atingidas pelo câncer; que mais mulheres que homens serão afetadas pelo câncer de mama, que fumantes morrerão mais cedo que os não fumantes, que os judeus sofrem mais frequentemente da doença de Tay-Sachs que os gentios, que os negros sofrem mais frequentemente da anemia falciforme que os brancos, que tornados, terremotos e inundações ocorrem aqui, mas não lá; e assim por diante. O nosso futuro definitivamente não é incognoscível.

 

V.

Pouco disso chega a chamar a atenção dos teóricos da incerteza radical. A existência de uma tecnologia prática operante e de uma ampla e próspera indústria de seguros constitui um constrangimento para qualquer teoria da incerteza radical. É claro, se pressionados com suficiente força, Lachmann e os seus seguidores provavelmente admitiriam o inegável e, como se tudo isso não tivesse importância alguma, rapidamente passariam para outro assunto ou problema. Até agora, pode-se enfatizar com alguma justificativa, a atenção tem sido direcionada mais ao aspecto tecnológico da ação que ao seu aspecto econômico — mais aos acidentes que às ações. O fenômeno da incerteza radical, porém, aparece num campo diferente. Embora seja possível prever os resultados físicos se tal e tal ação for tomada — e apesar de ser também possível prever o padrão de vários eventos físicos inteiramente fora do controle humano —, as questões são completamente diferentes quando se trata de prever as nossas próprias ações futuras. Posso prever que a minha torradeira irá torrar se eu utilizá-la de determinada maneira; posso prever que as torradeiras geralmente não funcionarão por mais de dez anos; mas presumivelmente eu não posso prever se realmente usarei a minha torradeira no futuro, nem poderia ter previsto isso antes de, em primeiro lugar, realmente acontecer o fato de eu querer — construir ou comprar — uma torradeira. É aqui, no campo das escolhas e preferências humanas, onde reina a incerteza supostamente radical.

Lachmann e os seus seguidores estão corretos em enfatizar que o problema de prever as minhas ações futuras e as ações de outros é categoricamente diferente do problema de prever os resultados físicos de determinadas ações ou de eventos naturais. Na verdade, a parte destrutiva do argumento de Lachmann é em grande parte correta, embora não seja nova (e totalmente insuficiente para estabelecer a sua tese construtiva de incerteza radical). [6] Esse é o teto em que não só a ideia de previsão perfeita, subjacente à teoria do equilíbrio geral, está incorreta, mas também a ideia, desenvolvida por teóricos das expectativas racionais, de que toda incerteza humana pode ser incluída na rubrica de riscos seguráveis: de que a incerteza sobre as nossas ações futuras em especial não é diferente daquela em relação ao futuro dos eventos naturais, de modo que podemos, com base na nossa observação de distribuições de frequência de longo prazo, prever o seu padrão geral da mesma forma como podemos prever o padrão de terremotos, tornados, doenças ou acidentes de carro, por exemplo.

Conforme aponta Lachmann — e conforme Frank Knight e Ludwig von Mises explicaram muito antes —, a nova teoria das expectativas racionais sofre essencialmente da mesma deficiência do antigo modelo de equilíbrio geral de previsão perfeita: não consegue lidar com o fenômeno da aprendizagem e, portanto, do conhecimento e da consciência. Os teóricos das expectativas racionais só substituem o modelo do ser humano como um autômato nunca falho com o modelo de uma máquina sujeita a erros e avarias aleatórios de tipos e características conhecidos. Em vez de possuir conhecimento perfeito de todas as ações singulares (individuais), supõe-se que o ser humano possui meramente o conhecimento perfeito da distribuição de probabilidades de todas as classes futuras de ações. Supõe-se que ele cometa erros de previsão, mas que os seus erros sejam sempre erros corretos. Falsas previsões nunca exigem revisão do estoque de conhecimento de uma pessoa. Não há como aprender com o sucesso ou o fracasso; e, portanto, não ocorre mudança — ou ocorrem apenas mudanças previsíveis — no padrão futuro das ações humanas. Esse modelo do ser humano, Knight, Mises e Lachmann concordam, não é menos falho que o modelo que deveria substituir. Não só se encontra em manifesta contradição com os fatos, mas qualquer proponente desse modelo também é inevitavelmente pego em contradições lógicas.

Em primeiro lugar, se as nossas expectativas (previsões) relativas às nossas ações futuras fossem de fato tão racionais quanto os teóricos das expectativas racionais acreditam serem, isso significaria que seria possível fazer uma classificação exaustiva de todas as ações possíveis (assim como poderiam ser listados todos os resultados possíveis de um jogo de roleta ou de todos os locais possíveis de um corpo físico no espaço). Pois sem uma enumeração completa de todos os tipos possíveis de ações não pode existir conhecimento das suas frequências relativas. Obviamente, não existe essa lista de todas as ações humanas possíveis. Sabemos de um grande número de tipos de ação realizados antes ou agora, mas essa lista encontra-se sempre aberta e incompleta. De fato, as ações são projetadas para modificar o curso natural dos eventos, a fim de materializar algo ainda inexistente. Elas são o resultado da imaginação criativa. Novas e diferentes ações são constantemente adicionadas à lista, e ações antigas desaparecem. Por exemplo, produtos e serviços novos ou diferentes são constantemente adicionados à lista preexistente de produtos e serviços, ao passo em que outros desaparecem dessa lista. No entanto, algo ainda inexistente — um produto novo — não pode aparecer em nenhuma lista até que tenha sido imaginado e realizado por alguém. Até mesmo o produtor de um novo produto X não sabe (e não poderia ter previsto) nada sobre a frequência relativa de ações como a oferta ou a demanda por X antes de ele realmente conceber a nova ideia de X — mas qualquer nova ideia de produtos e qualquer novo produto devem necessariamente perturbar (modificar) todo o padrão preexistente da frequência relativa das várias formas de ação (e de preços relativos).

Ademais, se pudéssemos de fato prever as nossas ações futuras — ou de forma perfeita ou com a noção de sujeição apenas a erros aleatórios —, então teria de também ser implicitamente admitido que cada agente deve possuir o mesmo (idêntico) conhecimento de todos os outros. Eu devo saber o que você sabe, e você deve saber o que eu sei. Caso contrário, se o nosso conhecimento fosse de alguma forma diferente, seria impossível que ambas as nossas previsões pudessem estar igualmente corretas — ou então igualmente corretamente erradas. Em vez disso, as minhas previsões teriam de estar corretas e as suas, erradas (ou vice-versa); assim como as minhas previsões ou as suas teriam de estar erroneamente erradas. O erro (meu ou seu) não seria aleatório, mas sistemático, pois poderia ter sido evitado se eu (ou você) soubesse o que você (ou eu) sabia. Este é, porém, exatamente o caso: o nosso conhecimento não é idêntico. Você e eu podemos saber algumas coisas em comum, mas eu também sei coisas (sobre mim, por exemplo) que você não sabe — e vice-versa. O nosso conhecimento e, portanto, as nossas previsões e expectativas sobre ações futuras são realmente diferentes. Todavia, se diferentes agentes possuem conhecimentos diferentes, a probabilidade (frequência) da previsão correta ou incorreta deles também será diferente. Portanto, nem o sucesso nem o fracasso das nossas previsões podem ser considerados puramente aleatórios, mas terão de ser atribuídos, pelo menos parcialmente, ao conhecimento individual maior e melhor ou menor e pior de uma pessoa.

Mais importante, entretanto: o modelo do ser humano das expectativas racionais como uma máquina que é dotada de conhecimento perfeito sobre a distribuição relativa de frequência de todas as suas possíveis classes futuras de ações (mas que nada sabe sobre qualquer ação particular que se enquadre em qualquer uma dessas classes, exceto que se trata de um membro de tal e tal classe e que essa classe de ação tem tal e tal frequência relativa) está repleto de contradições internas inescapáveis. Por um lado, em relação à suposição de que todos os agentes possuem conhecimento idêntico, qualquer proponente dessa visão é pego numa contradição performática: as suas palavras são desmentidas pelo próprio fato de pronunciá-las. Pois não haveria necessidade de dizer o que está dizendo se todos os outros já soubessem o que ele sabe. Na verdade, se o conhecimento de todos fosse idêntico ao conhecimento de todos os outros, ninguém teria de se comunicar. O fato de que os seres humanos se comunicam demonstra que devem admitir, em vez disso, ao contrário da suposição declarada, que o conhecimento deles não é idêntico. Os teóricos das expectativas racionais, também, pelo fato de apresentarem as suas ideias ao público leitor, devem obviamente admitir que o público ainda não sabe o que já sabem e, portanto, que as previsões do público sobre o curso futuro das ações — em contraste com as suas próprias previsões — serão sistematicamente falhas até que tenham absorvido com sucesso a lição dos teóricos das expectativas racionais.

Da mesma forma, qualquer pessoa que proponha a suposição de uma determinada lista de todas as formas possíveis de ações humanas, com a sua negação implícita de qualquer aprendizado, está presa em contradições. Por um lado, se o seu conhecimento fosse de fato dado, isso significaria admitir que já sabe tudo que sempre saberá (caso contrário, se pudesse aprender algo amanhã que ainda não é conhecido hoje, a sua lista de possíveis classes de ações não poderia mais ser considerada completa). No entanto, se esse fosse o caso, então, inevitavelmente, surge a questão sobre como essa pessoa sequer veio a saber disso. Se ela não pudesse aprender, pareceria que também não poderia ter assimilado o conhecimento de que o aprendizado humano não existe. Em vez disso, esse conhecimento deve ter estado sempre lá, como parte da sua dotação natural inicial, como as suas mãos e os seus dedos. Mas essa ideia — de que o nosso conhecimento é dado como as nossas mãos e os nossos dedos são dados — é absurda. O conhecimento é sempre o conhecimento de algo: o conhecimento de mãos e dedos, por exemplo, e ele não pode ser concebido como algo que não seja conhecimento adquirido sequencialmente (no tempo) e baseado sobre — e assimilado com — fatos lógica e temporariamente anteriores. Ademais, a negação da possibilidade de aprendizagem é novamente desmentida pela ação do proponente. Ao propor a sua tese, ele não pode deixar de admitir que os outros possam entender e possivelmente aprender com ele algo que ainda não sabem. E, ao esperar e ouvir a resposta dos outros à sua proposição — ao se envolver em qualquer forma de argumentação —, o proponente não pode deixar de admitir que ele mesmo possa aprender com o que os outros têm a dizer. Caso contrário, se já soubesse o que eles responderiam e a forma como lidaria com as respostas deles (e assim por diante), simplesmente não haveria propósito para qualquer atividade de comunicação e argumentação. De fato, se ele soubesse antecipadamente todos os seus argumentos (proposições) e todas as respostas possíveis e contrarrespostas (ou pelo menos a distribuição relativa da frequência delas), também seria sem sentido até mesmo se envolver em qualquer forma de argumentação interna, intrapessoal, pois o seu conhecimento estaria completo de antemão e ele já teria as respostas para todas as perguntas. É claro que os teóricos das expectativas racionais se envolvem em argumentação — e ninguém poderia argumentar que seja impossível argumentar sem, assim, cair numa contradição —, e eles realizam pesquisas (o que ninguém faria se já soubesse tudo que existe para saber). Portanto, demonstram, através das suas próprias ações, que o seu modelo de ser humano deve ser visto como sistematicamente falho e que o ser humano deve pensar em si mesmo como capaz de aprender algo ainda desconhecido (imprevisível).

 

VI.

Quais são as consequências em relação à natureza das ciências sociais que se derivam do reconhecimento do ser humano como um agente que aprende? É na resposta a essa pergunta, em última análise, que Knight e Mises, por um lado, e Lachmann, por outro, acabam se separando. Eles concordariam apenas com uma consequência: que existe uma diferença categórica entre a lógica das ciências naturais e a lógica das ciências sociais. Na verdade, provém do reconhecimento do ser humano como um agente que aprende o fato de que a filosofia positivista ou falsificacionista (ainda) dominante, que supõe que todas as ciências (empíricas) sigam o mesmo método — uma lógica uniforme da ciência —, seja autocontraditória. [7]

Uma coisa é prever os resultados físicos resultantes de uma determinada ação (tecnologia) ou prever o padrão futuro de uma determinada classe de eventos naturais fora do controle físico de um agente (seguro). Trata-se de uma questão totalmente diferente prever que ação um agente realmente irá fazer ou contra quais classes de eventos naturais ele realmente desejará se assegurar. Em relação ao problema anterior, não há necessidade de contestar o que o positivismo tem a dizer: um agente deseja produzir um certo resultado físico, tendo uma ideia sobre que tipo de interferência sua é capaz de provocar essa mudança. A ideia dele é hipotética. O agente nunca pode estar certo de que a sua ação conduzirá ao resultado desejado. Ele só pode experimentar e ver o que acontece. Se a sua ação for bem-sucedida e o resultado antecipado for alcançado, a sua ideia é confirmada. Entretanto, mesmo assim o agente não pode ter a certeza de que a mesma interferência sempre provocará o mesmo resultado. Tudo que uma confirmação adiciona ao seu conhecimento anterior é a certeza de que a sua hipótese até agora ainda não se mostrou defeituosa. Por outro lado, se a sua ação falhar, a sua ideia é falsificada, e uma hipótese nova, revisada ou modificada terá de ser formada. Portanto, mesmo que a certeza esteja fora do alcance humano, ainda é possível, através de um processo de tentativa e erro, que um agente possa melhorar continuamente o seu know-how tecnológico. Da mesma maneira, em relação a eventos naturais fora do controle de alguém, na medida em que um agente não for indiferente (desinteressado) sobre tais eventos, mas prefira a presença de tal evento à ausência dele (ou vice-versa), ele pode formar uma ideia sobre a distribuição relativa da frequência de toda a classe do evento em questão. Essa ideia, baseada na classificação conjunta de eventos singulares e na observação de frequências de longo prazo, também é hipotética. Nesse caso, porém, a ocorrência de um único evento favorável ou desfavorável não constitui confirmação ou falsificação de uma hipótese. Em vez disso, já que a hipótese se refere a uma classe inteira de eventos favoráveis ou desfavoráveis e nada afirma sobre qualquer evento singular, exceto que seja um membro dessa classe, a questão sobre se o curso de eventos futuros confirma ou falsifica a ideia só pode ser decidida com base na observação de um grande número de casos. Esse fato, embora aparentemente menos que completamente satisfatório, não significa que as experiências de confirmação e falsificação, de sucesso e fracasso e de progresso científico que procedam através de tentativa e erro sejam, porém, menos verdadeiras. Nesse caso, a questão sobre se a hipótese é confirmada ou falsificada pode ser decidida com base no fato “sólido” e objetivo de que um ente assegurador — um indivíduo que se assegura ao longo do tempo através de poupança pessoal ou uma agência que assegura uma classe de indivíduos ao longo do tempo em troca do pagamento de um prêmio — tem ou não tem poupança suficiente ou suficientes prêmios coletados para cobrir o custo resultante da ocorrência de cada evento singular desfavorável. Se o ente assegurador tiver, a hipótese é temporariamente confirmada; e, caso não tenha, a hipótese é falsificada, e ele terá de mudar a sua estimativa de frequência e aumentar a sua poupança pessoal ou os prêmios cobrados ou rever a sua classificação de eventos singulares e introduzir um novo sistema de classes e subclasses ainda mais diferenciado. Portanto, mesmo que a certeza seja novamente inatingível, o progresso científico contínuo é possível também em relação à capacidade do ser humano de prever acidentes (eventos naturais fora do seu controle).

Concedido que seja assim, surge, entretanto, a questão sobre se também é verdade, conforme afirmam os positivistas, que o ser humano possa ser considerado como seguindo a mesma lógica — de conjectura hipotética, de confirmação ou falsificação e de progresso científico que ocorre através de um processo de tentativa e erro — quando se trata do problema de prever as suas próprias ações futuras. Mas isso deve ser categoricamente negado. Pois, procedendo da mesma maneira em relação ao mundo dos eventos físicos dentro ou fora do seu controle, um agente deve necessariamente pensar de si como capaz de aprender (caso contrário, por que afinal conduzir qualquer pesquisa?). No entanto, se o ser humano pode aprender e possivelmente melhorar o seu domínio preditivo sobre a natureza, deve-se supor não apenas que ele possa alterar o seu conhecimento — e, portanto, as suas ações — no decorrer do tempo, mas também que tais possíveis mudanças devam ser consideradas por ele como, em princípio, imprevisíveis (de tal forma que qualquer progresso na sua capacidade de prever essas mudanças deva ser considerado sistematicamente impossível). Ou colocando as coisas de maneira um pouco diferente: se o ser humano proceder, conforme dizem os positivistas, a interpretar um sucesso preditivo como uma confirmação da sua hipótese de tal forma que ele, dada a mesma circunstância, empregaria o mesmo conhecimento no futuro — e se ele interpretasse um fracasso preditivo como uma falsificação de tal forma que ele não empregaria a mesma hipótese no futuro, mas sim uma hipótese diferente —, ele só pode fazê-lo se admitir — ainda que apenas implicitamente — que o comportamento dos objetos em questão não se modifica ao longo do tempo. Caso contrário, se o comportamento deles não fosse considerado invariante — se os mesmos objetos se comportassem às vezes desta maneira e em outros momentos de maneira diferente —, nenhuma conclusão sobre o que fazer de um sucesso preditivo ou fracasso preditivo se seguiria. Um sucesso não significaria que a hipótese tenha sido temporariamente confirmada e, portanto, que o mesmo conhecimento deva ser novamente utilizado no futuro. Nem qualquer fracasso preditivo significaria que não se deva utilizar a mesma hipótese novamente sob as mesmas circunstâncias. Mas essa suposição — de que os objetos de pesquisa não modificam o seu comportamento no decorrer do tempo — não pode ser feita em relação ao próprio sujeito envolvido na pesquisa sem, então, cair em autocontradição. Pois, ao interpretar as suas previsões bem-sucedidas como confirmações e as suas previsões fracassadas como falsificações, o pesquisador deve necessariamente pensar de si como um sujeito que aprende — alguém que possa aprender sobre o comportamento de objetos concebidos por ele como objetos que não aprendem. Portanto, ainda que todo o resto possa ser suposto como de natureza constante, o pesquisador não pode fazer a mesma suposição em relação a si mesmo. Ele deve ser uma pessoa diferente daquilo que era antes após cada confirmação ou falsificação; e é então da sua natureza ser capaz de mudar a sua personalidade ao longo do tempo. [8]

Porém, se a visão positivista-falsificacionista de uma lógica uniforme da ciência for rejeitada e a lógica das ciências sociais for considerada categoricamente diferente daquela aplicada às ciências naturais — como Knight, Mises e Lachmann concordariam —, então qual é o método apropriado para o estudo da ação humana? É aqui que Knight e Mises discordariam fundamentalmente de Lachmann. Knight e Mises argumentam — corretamente, conforme se verá — que não se segue do reconhecimento do ser humano como um agente que aprende que tudo sobre o futuro das ações humanas deva ser considerado desconhecido — na verdade, eles considerariam tal visão autocontraditória —, mas sim apenas que se deva admitir a existência de dois ramos categoricamente diferentes dentro das ciências sociais: a teoria apodíctica (apriorística) — a economia —, por um lado, e a história e o empreendedorismo, por outro. [9] Lachmann e os seus seguidores concluem precisamente isto: (1) que não pode haver algo como uma teoria econômica capaz de prever, que todas as ciências sociais nada são além de história e que “economistas devem limitar as suas generalizações ao passado conhecido” [10]; e (2) que todas as nossas previsões sobre ações humanas, que devemos arriscar fazer dia após dia, nada são exceto palpites aleatórios — que “o ser humano na sua verdadeira humanidade”, conforme Lachmann aprovadamente cita Shackle, “não pode prever nem ser previsto”. [11]

 

VII.

Em relação à primeira das duas controvérsias de Lachmann sobre a impossibilidade da teoria econômica, deve-se notar desde o início que essa tese — ao contrário da própria afirmação de Lachmann e, em especial, da atitude autocongratulatória encontrada entre alguns dos seus discípulos mais jovens — não é nada nova e original, representando, ao invés, um retorno aos primórdios intelectuais de Lachmann como estudante de Werner Sombart e aos ensinamentos “historicistas” dos Kathedersozialisten alemães (e isso, portanto, definitivamente nada tem a ver com a Escola Austríaca de Economia). [12]

Ludwig von Mises, o principal economista austríaco do século XX e crítico do historicismo ao longo da vida, caracterizou assim esta doutrina:

A tese fundamental do historicismo é a proposição de que (…) não existe conhecimento além daquele fornecido pela história. (…) O historicista honesto teria de dizer: Nada pode ser afirmado sobre o futuro. Ninguém pode saber como uma determinada política funcionará no futuro. Tudo que acreditamos saber é como políticas semelhantes funcionaram no passado. Desde que todas as condições relevantes permaneçam inalteradas, podemos esperar que os efeitos futuros não difiram amplamente dos efeitos do passado. Mas não sabemos se essas condições relevantes permanecerão inalteradas. Portanto, não podemos fazer qualquer prognóstico sobre os efeitos — necessariamente futuros — de qualquer medida considerada. Estamos lidando com a história do passado, não com a história do futuro. [13]

Que o trecho acima seja também uma descrição exata da posição de Lachmann é perfeitamente claro por este comentário de Lachmann sobre a chamada Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos:

Aqui temos um corpo de pensamento analítico projetado para atender aos requisitos estabelecidos acima: retratar um padrão recorrente de eventos com euforias e depressões ocorrendo em incessante sucessão. Mas podemos realmente acreditar na possibilidade de que os agentes que testemunharem tais eventos nada aprenderão com eles e agirão em ciclos sucessivos de forma idêntica? Não é mais provável que a ação deles em cada ciclo seja afetada pelas lições que aprenderam com os ciclos anteriores, embora, como sempre acontece, pessoas diferentes aprendam lições diferentes dos mesmos eventos? Uma vez que admitamos que as pessoas aprendem com a experiência, o ciclo não pode ser repetido vez após vez. Essas considerações sugerem que talvez seja melhor desistir da busca duvidosa por um modelo de ciclos econômicos e considerar fenômenos como flutuações cíclicas na produção e nos preços simplesmente como fenômenos da história em cuja explicação mudanças no conhecimento humano naturalmente desempenharão uma função importante, com os eventos de cada ciclo sucessivo exigindo explicações diferentes, apesar de muitas vezes semelhantes. [14]

Embora por si só isso ainda não prove que Lachmann esteja errado, trata-se de um primeiro passo na direção de uma refutação rigorosa: a posição tomada por Lachmann envolve nada menos que um relativismo social — na prática: niilismo — que não pode deixar de imediatamente se sabotar como totalmente contraintuitivo. As consequências relativísticas do historicismo são claramente sugeridas na precisa passagem de Mises citada acima, apesar de poderem parecer um pouco obscurecidas por Lachmann ao restringir as suas observações a apenas uma teoria, a teoria dos ciclos econômicos (aliás, sem se preocupar em explicar, ainda que brevemente, o que a teoria realmente afirma). No entanto, não pode haver dúvida de que a teoria dos ciclos econômicos é citada por Lachmann como um exemplo e de que ele realmente acredita no seu argumento como igualmente aplicável a todos os outros teoremas econômicos. Da mesma forma — e pela mesma razão — como, conforme Lachmann, não pode existir algo como a teoria dos ciclos econômicos, também não pode haver algo como a teoria da troca, a teoria dos preços, a teoria da moeda, a teoria do juro, a teoria dos salários, a teoria do socialismo, a teoria da tributação, a teoria dos controles de salários e de preços ou a teoria do intervencionismo. O que vale para o fenômeno das flutuações cíclicas supostamente também vale para todos os outros fenômenos: que eles devam ser considerados fenômenos da história em cuja explicação mudanças no conhecimento humano naturalmente desempenharão uma função importante — a cada troca, a cada preço, a cada uso de moeda, a cada fenômeno sucessivo de juros, de salários, de socialismo, de controle de salários e de preços e de intervenção governamental, explicações diferentes, embora muitas vezes semelhantes, serão exigidas. Mas podemos realmente acreditar nisso? Podemos realmente acreditar, como Lachmann faz, em não podermos dizer nada sobre trocas, preços, moedas ou impostos “igualmente futuros e passados”? Podemos realmente acreditar, devido ao poder de aprender, na possibilidade de não ser mais verdade no futuro que toda troca voluntária será — ex ante — benéfica para ambas as partes e que cada intercâmbio coercitivo (como um imposto) beneficiará alguém (o tributador; o recebedor do imposto) às custas de outro (o tributado; o pagador do imposto)? Podemos realmente achar que cada experimento socialista sucessivo exija uma explicação diferente e que seja impossível dizer qualquer coisa aplicável a toda e qualquer forma de socialismo, de modo que, enquanto não existir nenhuma propriedade privada dos meios de produção (e, portanto, nenhum preço para os fatores de produção), o cálculo econômico (contabilidade dos custos) será impossível e a má alocação permanente (desperdício) terá de ocorrer? Podemos realmente acreditar na possibilidade de, enquanto o socialismo não for realmente abolido, essa proposição não ser mais verdadeira, pois os agentes podem aprender com a experiência e podem não agir mais de forma idêntica? Podemos realmente acreditar na possibilidade de que, se um banco central dobrasse a oferta de moeda em papel da noite para o dia, isso não provocaria, agora e para sempre, uma queda no poder de compra do dinheiro, assim como uma redistribuição sistemática de renda em favor do banco central e dos primeiros recebedores do dinheiro recém-criado às custas daqueles que o recebem mais tarde? Podemos realmente acreditar na possibilidade de que, se o salário mínimo fosse estabelecido hoje em um milhão de dólares por hora e se tal decreto fosse estritamente impingido e nenhum aumento na oferta de moeda ocorresse, essa medida não provocaria desemprego em massa e quebra da divisão do trabalho porque as pessoas podem aprender com a experiência? Com certeza, Lachmann acredita em tudo isso, e é fácil entender por que algumas outras pessoas — tributadores, socialistas, banqueiros centrais e legisladores do salário mínimo — gostariam que acreditemos da mesma maneira como ele acredita. Mas é difícil imaginar como alguém que não seja Lachmann — incluindo até mesmo aqueles que se beneficiariam pessoalmente do fato de nós acreditarmos na ideia de que os efeitos futuros de várias políticas nunca podem ser conhecidos com antecedência — possa realmente considerar isso de forma séria.

Conforme já indicado na seção II deste texto, o erro lógico fundamental envolvido no raciocínio de Lachmann consiste no fato de que não se segue da proposição de que os agentes humanos enfrentam um futuro incerto que tudo em relação ao nosso futuro deva ser considerado incerto. [15] Também não se segue do fato de que os seres humanos podem aprender — e de que, portanto, as suas ações podem mudar no decorrer do tempo — que tudo sobre o futuro das ações humanas possivelmente se modifique no decorrer do tempo. Muito pelo contrário. Tirar essas conclusões, como faz Lachmann, é autocontraditório, pois Lachmann evidentemente afirma conhecer com certeza a incognoscibilidade do conhecimento futuro e, por extensão lógica, das ações. No entanto, ele sabe algo sobre o conhecimento futuro e as ações futuras. Ele deve admitir que sabe algo sobre conhecimento e ação como tais. Da mesma forma, ao afirmar saber que os seres humanos são capazes de aprender e modificar as suas ações de acordo com aquilo que podem aprender, Lachmann deve admitir saber algo sobre o ser humano como tal. Ele deve admitir saber não só que o ser humano pode mudar o seu comportamento futuro, mas também que essas mudanças são o resultado de um processo de aprendizagem; ou seja, que trata-se do resultado do fato de o ser humano ser capaz de distinguir entre sucesso e fracasso, entre confirmação e falsificação e de tirar conclusões relacionadas a tais experiências categoricamente distintas; e que, portanto, todas as possíveis mudanças no comportamento do ser humano, imprevisíveis tal como o seu conteúdo específico possa ser, sigam um padrão previsível — uma lógica uniforme e constante da ação e da aprendizagem humanas. Usando uma analogia perfeita: embora seja verdade que eu sou incapaz de prever tudo que direi ou escreverei no futuro, isso não significa que eu não possa prever qualquer coisa sobre as minhas falas ou os meus escritos do futuro. Posso prever — e de fato posso prever com perfeita certeza, independentemente de eu falar ou escrever em inglês ou alemão — que, enquanto eu falar ou escrever em qualquer língua, todas as minhas falas e todos os meus escritos terão uma estrutura lógica constante e invariável (proposicional): que eu, por exemplo, devo usar expressões de identificação, como nomes próprios e predicadores, para afirmar ou negar alguma propriedade específica do objeto identificado ou nomeado. [16] Da mesma maneira, embora eu não possa prever quais objetivos posso perseguir no futuro, quais meios considerarei apropriados para alcançar esses objetivos e quais outros cursos de ação concebíveis escolherei rejeitar para fazer o que realmente farei (o meu custo de oportunidade), ainda posso prever que, enquanto eu agir, haverá objetivos, meios, escolhas e custos; ou seja, posso prever a estrutura geral e lógica de cada uma das minhas ações, sejam passadas, presentes ou futuras. E é precisamente disso que a teoria econômica — ou, como Mises a chamou, praxeologia — se trata: fornecer conhecimento sobre ações como tais e conhecimento sobre a estrutura que quaisquer conhecimento e aprendizagem futuros devem ter em virtude do fato de que invariavelmente devem ser o conhecimento e o aprendizado dos agentes.

Com certeza, o conhecimento da invariante estrutura lógica de ação e aprendizagem é também conhecimento adquirido, assim como o é qualquer conhecimento humano. O ser humano não é dotado disso. Porém, uma vez aprendido, o conhecimento transmitido pela praxeologia, assim como aquele transmitido pela lógica proposicional, pode ser reconhecido como necessariamente verdadeiro — válido a priori —, de modo que nenhum aprendizado futuro com a experiência poderia falsificá-lo. Embora todo o meu conhecimento sobre o mundo externo seja (e esteja para sempre) contaminado pela incerteza (não é inconcebível que a lei da gravitação não possa mais se manter no futuro ou que o sol não se levante amanhã), o meu conhecimento sobre a estrutura do meu aprendizado e da minha ação futuros é e para sempre será não hipoteticamente verdadeiro: é inconcebível que, enquanto eu estiver vivo, não agirei, alcançarei ou não alcançarei o meu objetivo e, dependendo do resultado das minhas ações, revisarei ou não revisarei o meu conhecimento. O aprendizado significa aprender com o sucesso e o fracasso; e não pode existir aprendizado do fato de que não existe sucesso ou fracasso. Portanto, escreve Mises,

O ser humano tal como existe neste planeta no atual período da história cósmica pode um dia desaparecer. Mas enquanto existirem seres da espécie homo sapiens existirá ação humana do tipo categórico com que a praxeologia lida. Nesse sentido restrito, a praxeologia fornece conhecimento exato das condições futuras. (…) As previsões da praxeologia estão, dentro da sua faixa de aplicabilidade, absolutamente certas. [17]

Como é possível, então, especialmente à luz do fato de que Lachmann estava familiarizado com Mises e os seus escritos, que ele pudesse cometido um erro lógico elementar ao não reconhecer que não se segue do fato de que somos capazes de aprender que tudo sobre o futuro das ações humanas seja incognoscível? Como ele pôde não reconhecer que apenas os aspectos das nossas ações que podem realmente ser afetados pela aprendizagem podem ser considerados imprevisíveis, ao passo em que aqueles aspectos que são parte necessária de quaisquer ação e aprendizado e que, portanto, não podem ser alterados pela aprendizagem futura — a estrutura lógica subjacente da ação e da aprendizagem em si — não podem ser considerados imprevisíveis? A resposta para esse enigma reside no fato de que, embora se considerasse um firme oponente da filosofia positivista, Lachmann ainda tenha sido vítima de um dos equívocos fundamentais dela. Assim como Friedrich A. Hayek, o seu segundo professor, Lachmann, conscientemente ou não, aceitou a visão de Karl R. Popper, um amigo e protegido de Hayek, de que todo conhecimento científico deve ser tal que, em princípio, seja falsificável pela experiência e de que todo conhecimento que não seja falsificável não é conhecimento genuíno, representando apenas tautologias empiricamente vazias — i.e., definições arbitrárias (formalismos). É assim que Lachmann, em resposta ao desafio colocado à sua tese de futuro incognoscível por Mises e pela sua ideia de uma lógica de ação, pode escrever que

precisamente em virtude da necessidade lógica inerente a isso, é impotente fazer generalizações empíricas. A sua verdade é puramente verdade abstrata e formal. Os meios e os fins que se conectam são entidades abstratas. No mundo real, os meios concretos usados e os fins concretos perseguidos estão sempre mudando à medida que o conhecimento muda, e o que parecia de valor ontem não parece hoje tão mais de valor. Apelamos em vão à lógica dos meios e fins para nos dar apoio às generalizações empíricas. [18]

Mas, certamente, apesar da grande popularidade que essa visão de considerar todas as proposições não hipoteticamente verdadeiras — por exemplo, as leis da lógica proposicional — como formalismos empiricamente vazios tenha obtido na esteira da ascensão da filosofia positivista, trata-se de uma completa falácia. [19] Ao me referir a entidades altamente abstratas, como objetos e propriedades, ao invés de a entidades concretas como o meu cacto e as suas flores vermelhas, ainda estou falando sobre fenômenos reais. O termo “árvore” é mais abstrato que o termo “pinheiro”, mas o primeiro não tem menos conteúdo empírico que o segundo. Na mesma linha, ao dizer algo sobre fins, meios, troca, dinheiro ou juros — em vez de sobre o meu desejo de agradar a minha esposa com flores, sobre uma troca de duas laranjas por três maçãs, sobre dólares americanos ou sobre a minha troca de duas meias presentes por quatro meias daqui a três meses —, ainda estou afirmando algo sobre fenômenos reais com um conteúdo empírico. Conforme percebe Mises,

se for aceita a terminologia do positivismo lógico e especialmente a de Popper, uma teoria ou hipótese é “não científica” se em princípio não puder ser refutada pela experiência. Consequentemente, todas as teorias a priori, incluindo a matemática e a praxeologia, são “não científicas”. Isso é apenas uma disputa verbal. Nenhuma pessoa séria perde o seu tempo discutindo essa questão terminológica. A praxeologia e a economia manterão o seu significado primordial para a vida e a ação humanas independentemente de como as pessoas possam classificá-las e descrevê-las. [20]

À luz dos múltiplos erros lógicos de Lachmann, podemos agora voltar às nossas questões retóricas levantadas em resposta à sua alegação da impossibilidade de quaisquer teoria e previsão econômicas. A razão pela qual parecia absurdo que não fôssemos capazes de prever algo sobre cada troca voluntária, cada imposto, cada socialismo, cada aumento da oferta de moeda e cada lei do salário mínimo é que, embora o ser humano possa aprender muitas coisas e modificar o seu comportamento de muitas maneiras, ele é incapaz de experimentar e aprender qualquer coisa que esteja em desacordo com as leis da lógica e com a sua natureza como agente. Posso não ser capaz de prever que me envolverei em trocas voluntárias, assim como de prever o momento da troca, o que será trocado ou a relação de troca na qual os produtos ou serviços em questão serão negociados, entre outros detalhes, pois tudo isso pode de fato ser afetado pelo meu conhecimento e pelo conhecimento dos outros e mudar à medida que esse conhecimento se modifique. Mas eu posso prever com certeza perfeita que, se uma troca voluntária ocorre, independentemente de onde, de quando, do conteúdo trocado e da relação de troca em que o intercâmbio ocorre, ambos os parceiros de troca devem ter tido ordens de preferência opostas e devem ter esperado se beneficiar do intercâmbio. Nenhum aprendizado possível sequer pode mudar isso. Da mesma forma, posso não ser capaz de prever que ou quando um experimento socialista será realizado ou descontinuado. Jamais serei capaz de prever as muitas características específicas de tal experimento. Tudo isso pode ser afetado pelo aprendizado. Porém, independentemente de tudo que as pessoas possam aprender, independentemente de como o aprendizado delas possa moldar a forma peculiar do socialismo, eu ainda posso prever com absoluta certeza que, enquanto se estiver de fato lidando com o socialismo, qualquer cálculo econômico será impossível e más alocações permanentes dos fatores de produção devem ocorrer porque essa consequência já está logicamente implícita naquilo que é o socialismo. Da mesma maneira, posso não ser capaz de prever que uma moeda realmente existirá, e é certamente possível que a humanidade um dia volte ao escambo. Nem posso prever com certeza que tipo específico de moeda será empregado no futuro. Mas posso prever com certeza perfeita que, se houver alguma moeda em uso, um aumento na sua oferta deve provocar uma redução do seu poder de compra, deixando-o abaixo daquilo que, de outra forma, teria sido. Isso simplesmente se deriva da definição de moeda como um meio de troca. Por último, Lachmann também erra em relação ao exemplo da Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Ele afirma que, devido ao fato de que os empresários podem aprender — eles podem ouvir ou ler sobre a teoria de Mises —, podem modificar o seu comportamento futuro de tal modo que os efeitos previstos pela teoria não mais ocorrerão. [21] Mas tal afirmação simplesmente envolve um mal-entendido sobre o que a teoria realmente afirma. É verdade que as pessoas podem aprender com Mises, e isso pode realmente impedir que os ciclos econômicos ocorram — assim como as pessoas podem aprender com Mises e nunca se envolver com um experimento socialista em primeiro lugar. Entretanto, isso é totalmente fora do ponto em questão, pois a teoria afirma que, (1) se um banco criar crédito adicional em papel-moeda, acima e além do crédito disponibilizado pela poupança voluntária do público, e (2) se esse crédito adicional for de fato colocado nas mãos dos mutuários (tomadores de empréstimos) e a taxa de juros, portanto, for reduzida abaixo daquilo que de outra forma teria sido (i.e., a taxa natural de juros), então (e só então) haverá primeiro uma euforia (boom) — superinvestimento — e, consequentemente, uma depressão (bust) — a liquidação sistemática de alguns dos investimentos como investimentos errôneos (malinvestments). Seja o que for que os empresários possam aprender depois que uma expansão de crédito tenha realmente ocorrido, isso não pode afetar o resultado previsto, pois uma descoordenação intertemporal já está logicamente implícita nas premissas indicadas. E, se as cláusulas “se” não forem cumpridas, então a teoria dos ciclos econômicos não sofre refutação, é claro. Ela simplesmente não se aplica. [22]

 

VIII.

Tendo rejeitado a primeira controvérsia Lachmann sobre a impossibilidade da teoria econômica aplicável ao passado e ao futuro — e tendo feito argumentação com o raciocínio de Knight e, em especial, com o de Mises —, não apenas sobre a possibilidade de tal teoria, mas, ainda mais veementemente, sobre a possibilidade de teoria a priori e de previsão apodíctica (não hipotética), nesta seção final, a segunda controvérsia de Lachmann — a natureza “caleídica” do mundo social e o caráter casual da previsão empreendedora/empresarial — terá de ser examinada.

Ainda que seja admitida a existência de uma lógica de ação — a praxeologia —, como deve ser, não segue que o conhecimento por ela fornecido possa tornar o nosso futuro certo. A praxeologia nos permite prever com certeza alguns eventos e aspectos futuros do mundo das ações humanas, mas a sua gama de aplicabilidade é estritamente limitada. Existem muitos eventos e aspectos — e de fato muitos de um significado prático muito maior — sobre os quais a praxeologia nada tem a dizer. Conforme explica Mises, “há, mas, para Robinson Crusoé antes de conhecer o seu companheiro Sexta-feira, nenhuma ação que pudesse ser planejada ou executada sem prestar total atenção ao que os semelhantes do agente farão. A ação envolve entender as reações de outros seres humanos.” [23]

A tarefa que o agente humano (ou seja, todo mundo) enfrenta em todas as relações com os seus semelhantes não se refere ao passado; refere-se ao futuro. Conhecer as reações futuras de outras pessoas é a primeira tarefa do agente humano. (…) É óbvio que esse conhecimento que fornece a alguém a capacidade de antecipar até certo ponto as atitudes futuras de outras pessoas não é conhecimento a priori. A disciplina a priori da ação humana, a praxeologia, não lida com o conteúdo real dos julgamentos de valor; lida apenas com o fato de que os seres humanos atribuem valor e, em seguida, agem conforme as suas valorações. O que sabemos sobre o conteúdo real de julgamentos de valor só pode ser derivado da experiência. [24]

Então, muito além daquilo que a praxeologia, a tecnologia e o seguro possivelmente conseguem nos mostrar sobre o futuro, Mises (assim como Knight) concordaria com Lachmann sobre o fato de que permanece como um dos problemas mais urgentes da humanidade a necessidade de prever os julgamentos concretos de valor dos semelhantes, os meios específicos que eles escolherão para materializar os seus valorados fins e as valorações que fazem depois que os resultados das suas ações surgem. E, conforme já foi explicado, ambos também concordariam com Lachmann sobre o fato de que, como os seres humanos são capazes de aprender e a sua aprendizagem pode afetar os seus valores, as suas escolhas de meios e as suas valorações de resultados, as prescrições positivistas-falsificacionistas de como lidar com esse problema são logicamente inadequadas e impotentes. Mas o que mais podemos fazer? Ou nada pode ser feito para lidar com esse aspecto da incerteza?

Embora possa parecer que a resposta de Lachmann a essas perguntas seja semelhante à resposta de Mises — nos seus escritos, ambos se referem ao mesmo grupo de filósofos do Geisteswissenschaften e das ciências sociais, notadamente Max Weber e Alfred Schütz, e ambos mencionam o método da compreensão (Verstehen) —, essa impressão é errônea (apesar de, devido à escrita geralmente menos clara de Lachmann e a uma quantidade considerável de precaução por parte dele, ser reconhecidamente um pouco difícil decidir sobre essa questão). [25] Ao passo em que a resposta de Mises às perguntas acima é um sim inequívoco: existe um método de lidar com a incerteza inerradicável das futuras escolhas humanas; e, ainda que esse método não seja perfeito — e nunca possa sê-lo —, se nós não nos aproveitássemos dele, nós nos afastaríamos da ferramenta intelectual de ação bem-sucedida e encontraríamos decepções de modo muito mais frequente. Lachmann parece manter precisamente isto: que, independentemente do que fizermos, os nossos sucessos ou fracassos em prever as ações futuras dos nossos semelhantes são puramente aleatórios.

Quanto à posição de Mises, é essencial reconhecer que — e por que — ele rejeita a visão de que o futuro das ações humanas pode ser considerado aleatório ou casual. Entreter essa visão pode significar uma de duas coisas. Pode significar que não sabemos literalmente nada. Mas isso é claramente falso, pois sabemos de algo: sabemos que os eventos futuros em questão são ações humanas e demonstrarão a estrutura inerente a cada ação — e que, portanto, embora o nosso conhecimento possa ser deficiente, ainda estamos em posição de dizer mais que um simples ignoramus. [26] Ou pode significar que, em relação ao problema das futuras escolhas humanas, sabemos tudo sobre o comportamento da classe inteira de eventos, mas nada sabemos sobre nenhuma escolha singular, exceto que seja um elemento de toda a classe de escolhas humanas. A visão de que as ações humanas podem ser consideradas exemplos de “probabilidade de classe” já foi anteriormente rejeitada. Nós não sabemos — e nunca saberemos — tudo sobre toda a classe de ações humanas. Mas disso não se seguirá que teremos de confessar ignorância total em relação às escolhas humanas singulares (além do fato conhecido de que todas elas são escolhas). Na verdade, sabemos algo (mais) sobre cada evento singular: sabemos que cada evento singular é o resultado de agentes individuais agindo com base em conhecimento individual sujeito a mudanças por aprendizagem individual, de tal modo que cada evento — conforme se desenrola na história humana, passado e futuro — deva ser concebido como um evento único e não repetível (estando cada evento numa classe por si só); e também sabemos que, para compreender (entender) o passado ou antecipar as ações futuras dos nossos semelhantes, teremos de prestar atenção e tentar entender os seus conhecimentos individuais, os seus valores individuais e o seu know-how pessoal. É assim que Mises caracteriza a tarefa epistemológica enfrentada pelo ser humano nas suas relações com os seus semelhantes: como uma “probabilidade de caso”. “Probabilidade de caso (ou a compreensão específica das ciências da ação humana) (…) significa: Sabemos, em relação a um determinado evento, alguns dos fatores que determinam o seu resultado; mas há outros fatores determinantes sobre os quais nada sabemos.” [27] Embora categoricamente diferente da situação da probabilidade de classe, a situação da probabilidade de caso dificilmente é uma situação em que o futuro seja aleatório ou casual. De fato, no campo da história humana, passada e futura, em algum aspecto estamos numa posição epistemológica melhor (não pior) que a posição em que estamos no campo dos eventos naturais, da tecnologia e do seguro. Pois nesse último campo estamos categoricamente impedidos da possibilidade de entendimento. Cada evento singular deve ser tratado como um membro de uma classe de homogêneos, exceto pelos eventos singulares indistinguíveis dos membros da classe. Em contraste, no campo da história humana, passada e futura, somos capazes de distinguir entre cada evento singular (cada evento pode ser tratado como heterogêneo); e, para melhorar a nossa compreensão do passado e as nossas antecipações das ações futuras dos nossos semelhantes, sabemos (e somos capazes de aprender) algo sobre as causas individuais — o conhecimento pessoal — que afetam de maneira única o resultado de cada evento humano singular (sendo cada evento merecedor da sua própria atenção especial).

Então, embora nem aleatória nem casual, a tarefa de antecipar as ações dos nossos semelhantes com base numa compreensão da sua individualidade não se encontra sem as suas inescapáveis dificuldades e imperfeições, pois toda compreensão de um indivíduo é sempre um entendimento dos seus valores e conhecimento passados. Porém, conforme a citação anterior de Mises, a nossa primeira tarefa na vida é conhecer as reações futuras de outras pessoas. “O conhecimento dos seus julgamentos de valor passados e das suas ações passadas, embora indispensável, é apenas um meio para esse fim.” [28] Portanto, em todas as nossas tentativas de antecipar o futuro, além da compreensão das ações passadas de um determinado indivíduo, devemos também necessariamente fazer um julgamento sobre a relativa estabilidade (ou instabilidade) das várias partes do seu sistema de valores e de conhecimento conforme demonstrada no passado; ou seja, devemos formar uma opinião sobre a sua personalidade, o seu caráter. Conforme explica Mises, devemos “supor que, em geral, sem mudança nas demais condições, a conduta futura das pessoas será igual, não desviando-se sem razão especial da sua conduta passada, porque supomos que aquilo que determinou a sua conduta passada também determinará a sua conduta futura. Por mais diferentes que possamos saber que sejamos de outras pessoas, tentamos adivinhar como elas reagirão às mudanças no seu ambiente. Do que sabemos sobre o comportamento passado de alguém, construímos um esquema sobre o que chamamos de caráter pessoal. Supomos que esse caráter não mudará se nenhuma razão especial interferir e, indo um passo adiante, até mesmo tentamos prever como mudanças definidas nas condições afetarão as suas reações.” [29] Da mesma forma, se estivermos preocupados com o comportamento futuro de grupos de indivíduos (em vez de com apenas o comportamento de um indivíduo único), não podemos deixar de classificar os indivíduos de acordo com a semelhança ou a dessemelhança do seu caráter ou da sua personalidade; ou seja, não podemos deixar de formar ideias de caracteres de grupo — tipos ideais — e classificar indivíduos conforme a sua aproximação a esses tipos. “Se um tipo ideal se refere às pessoas”, explica Mises, “isso significa que, em algum aspecto, essas pessoas estão valorando e agindo de forma uniforme ou semelhante. Quando se refere às instituições, significa que tais instituições são produtos de formas uniformes ou similares de valoração e ação ou que influenciam a valoração e a ação de maneira uniforme ou semelhante.” [30]

As nossas antecipações, baseadas na compreensão do passado, na construção de tipos de caracteres e de tipos ideais e na classificação de indivíduos e grupos em tais tipos, são necessariamente previsões hipotéticas — ou melhor, provisórias. Ao atribuirmos um determinado caráter a um agente, tentamos reduzir a incerteza em torno do seu comportamento futuro. Formamos um julgamento provisório sobre partes mais ou menos estáveis da sua personalidade e prevemos que as mudanças futuras no seu comportamento, sejam elas quais forem, serão mudanças em consonância com o seu caráter; i.e., mudanças que seguem um padrão geral (previsível). A nossa previsão pode ser bem-sucedida ou não. Podemos ter classificado mal o agente. Ou, ao contrário do nosso julgamento, o agente pode modificar o seu próprio caráter; e, de fato, ao longo do tempo alguns tipos de caracteres podem deixar de existir e outros podem surgir, exigindo o desenvolvimento de um sistema de classificação diferente e em constante mudança. Ou as nossas construções de caracteres podem se tornar muito abstratas ou muito específicas; ou seja, ainda que possam fazer previsões corretas, podemos descobrir, em retrospectiva, que aquilo que preveem é de menor importância que o antecipado. A previsão pode vir a dizer muito pouco de muita importância — ou muito de pouca importância —, exigindo mais revisões tipológicas. Ademais, avaliando as nossas previsões como bem-sucedidas ou não, o significado de sucesso e fracasso é necessariamente ambíguo. Nas ciências naturais, o sucesso significa que até agora a sua hipótese não foi falsificada; então aplique-a novamente; e o fracasso significa que a sua hipótese, da maneira como ela se encontra, está errada; então mude-a. Nos negócios com os nossos semelhantes, as implicações não são — e nunca podem ser — tão claras. Talvez a nossa previsão estivesse errada porque algumas pessoas, como às vezes pode acontecer, agiram fora de caráter — nesse caso, gostaríamos de usar a nossa hipótese novamente, ainda que tivesse sido aparentemente falsificada. Ou talvez a nossa previsão tenha sido bem-sucedida, mas o indivíduo em questão sofreu uma mudança no seu caráter — nesse caso, não queremos usar a nossa hipótese novamente, ainda que ela tivesse sido aparentemente confirmada. Ou talvez o agente em questão soubesse da nossa previsão e tenha agido deliberadamente de modo a confirmar ou falsificar a nossa hipótese — nesse caso, podemos ou não querer mudar a nossa previsão futura. Cada sucesso e cada fracasso, então, trazem apenas resultados inconclusivos e exigem outro julgamento provisório, uma compreensão nova e atualizada dos agentes envolvidos e uma avaliação renovada dos seus caracteres à luz das suas ações mais recentes — e assim por diante. Portanto, ao contrário da situação nas ciências naturais — nas quais o sucesso e o fracasso têm um significado indiscutível; nas quais podemos concluir que aquilo que era falso no passado também será assim no futuro e que aquilo que funcionou uma vez provavelmente voltará a funcionar; e nas quais podemos, portanto, adquirir sucessivamente um estoque crescente de conhecimento —, ao lidarmos com o problema de antecipar as ações dos nossos semelhantes, nunca podemos descansar em nossos louros passados, mas devemos sempre começar de novo e julgar a aplicabilidade do nosso conhecimento passado novamente, nunca podendo possuir um estoque de conhecimento no qual futuramente poderemos cegamente confiar.

Nada nessa visão sobre a natureza da história humana, passada e futura — visão de Mises — provavelmente parecerá a qualquer pessoa como novo ou revolucionário. De fato, se não fosse pela visão positivista muito diferente sobre o assunto, tal visão pareceria quase trivial, um evidente truísmo. Conforme observa Mises,

os métodos de investigação científica [nas ciências sociais] não são categoricamente diferentes dos procedimentos aplicados por todos no seu comportamento mundano diário. São meramente mais refinados e, na medida do possível, purificados de inconsistências (incoerências) e contradições. A compreensão (o entendimento) não é um método de procedimento peculiar apenas aos historiadores. É praticado por bebês assim que superam o estágio meramente vegetativo dos seus primeiros dias e das suas primeiras semanas. Não existe resposta consciente do ser humano a nenhum estímulo que não seja direcionada pela compreensão. [31]

Não é totalmente surpreendente, então, que Lachmann, também, embora as suas considerações metodológicas (em contraste com as considerações de Mises) sejam em grande parte não sistemáticas e marcadas por uma abundância de expressão metafórica e de falta de rigor analítico, deva às vezes parecer estar em essencial concordância com essa visão de bom senso conforme acolhida por Mises. Lachmann também faz referência frequente à compreensão, a tipos ideais e instituições. [32] No entanto, apesar de tais semelhanças aparentes, Mises e Lachmann chegam a conclusões completamente diferentes em relação à natureza da incerteza humana — incerteza empreendedorial/empresarial. Ao passo em que, para Mises, o resultado do método da compreensão é a incerteza moderada, para Lachmann é uma incerteza radical. Como isso pode ser explicado?

Ao retratar da melhor maneira possível — conforme o que se demonstrou de mais consistente — as feições de Lachmann, a discordância entre a posição dele e a posição de Mises pode ser vista como resumindo-se a um fato contingente — empírico. Existe concordância sobre o método a ser empregado; há discordância apenas sobre o quão bem-sucedido esse método realmente é — notavelmente assim e na maioria das vezes, como diria Mises, ou tão-somente de forma ocasional e insignificante, como retrucaria Lachmann. Em vez de discordarem em princípio, na metodologia, eles só discordam numa questão de fato: se o mundo social é realmente caleídico ou não. E os fatos, então? Embora a questão empírica de se habitamos um mundo caleídico ou não possa parecer de importância bastante pequena, dado que devemos lidar com o mundo em qualquer caso e nada temos de disponível além da compreensão para lidar com ele — e embora questões dessa natureza possam facilmente degenerar em disputas semânticas ociosas, como se um copo de água está meio vazio ou meio cheio —, questões empíricas — discordâncias sobre fatos — são acessíveis à pesquisa empírica e podem, em princípio, ser decididas com base na observação dos fatos. Todavia, à luz brilhante dos fatos empíricos, a teoria da incerteza radical de Lachmann não é melhor que à luz pálida da lógica.

Então, para gerar um mundo radicalmente incerto de mudança caleídica, Lachmann deve admitir, por uma questão de fato empírico, que agentes individuais não possuem algo como um caráter. A compreensão, conforme se explicou, é sempre o entendimento das ações passadas. Para poder prever com sucesso ações futuras baseadas na compreensão de ações passadas, é necessário que se admita que o passado e o futuro estejam de alguma forma relacionados — não no sentido de que o passado determinaria o futuro, mas sim no sentido de que os valores e o know-how passados de um indivíduo (que determinaram as suas ações passadas) moldam e restringem os seus valores e o seu know-how futuros (que determinam as suas ações futuras). De fato, se isso não fosse admitido como sendo o caso — se os valores e as ações do passado de um indivíduo fossem vistos como inteiramente não relacionados aos seus valores e às suas ações do futuro —, o estudo da história seria totalmente inútil. Só estudamos o passado de um indivíduo porque acreditamos na possibilidade de que esse conhecimento seja útil para  nos auxiliar a antecipar algo sobre a sua conduta futura. Sem essa crença, o estudo da história deve ser considerado pura perda de tempo. Na visão de Mises, o elo que conecta o passado de um indivíduo ao seu futuro e a razão empírica para o nosso interesse no estudo da história estão na existência de caracteres e personalidades individuais. É a existência do caráter de uma pessoa, embora possa se modificar ao longo do tempo, que assegura a continuidade da mudança: mudança social padronizada em vez de fluxo caleídico. Portanto, somente se os agentes individuais fossem considerados personalidades completamente desarticuladas, de tal modo que as minhas ações de amanhã sempre fossem totalmente não relacionadas e não afetadas pelas minhas ações de hoje ou de ontem, poderia o cenário de incerteza radical de Lachmann se tornar realidade. Apesar de que seria realmente um pesadelo se tivesse alguma vez existido, pode-se dizer com segurança que isso não tem nenhuma semelhança conosco nem com o mundo que habitamos. De fato, é difícil imaginar como um mundo de personalidades desarticuladas poderia ser reconciliado até mesmo com a biologia humana. Pelo mero fato da nossa natureza física — que é um fato contingente, mas, enquanto estivermos vivos, uma contingência relativamente estável —, não podemos ser como Lachmann acha que somos — ou então morreríamos rapidamente.

Na verdade, os agentes, desde os primeiros estágios da infância, exibem um caráter pessoal, possuem uma identidade pessoal e concebem o seu passado e o seu futuro como formando um todo: a sua história de vida pessoal. Nós não começamos a construir uma casa hoje e então, amanhã, sem qualquer razão especial, fazemos algo inteiramente não relacionado. Em vez disso, as nossas ações passadas influenciam, circunscrevem e restringem as nossas ações futuras. Nem sempre começamos do zero, mas na maioria das vezes continuamos o que já estava iniciado e planejado como parte de uma longa sequência de ações. E, ainda que abandonemos tal plano integrado, normalmente adotamos outro. Caso contrário, se não existisse essa continuidade nas nossas ações, seria impossível explicar uma das características mais marcantes da vida humana — a existência e a utilização contínua de um estoque de bens de capital. Produzir um bem de capital significa começar algo que se estenda para o futuro; e utilizar um bem de capital existente significa continuar algo iniciado no passado. Se o futuro não estivesse realmente relacionado com o passado, deveríamos esperar que os bens de capital, na medida em que surgirem, sejam tão rapidamente abandonados no futuro quanto pudessem ter sido adotados no passado. No entanto, embora existam algumas ruínas de bens de capital abandonados, a maioria dos bens de capital de ontem ainda está empregada hoje e amanhã — o que é uma prova empírica da contínua influência do passado sobre o futuro. Como autor de um livro sobre capital, Lachmann, de todas as pessoas, deveria ter sido capaz de reconhecer essa verdade; e isso, por si só, deveria ter lhe dado motivo suficiente para descartar a sua tese de mudança caleídica e incerteza radical.

Ademais, igualmente difícil para Lachmann seria explicar outra característica fundamental da história humana — a existência de diferenças duradouras entre vários indivíduos na sua capacidade de prever o futuro; ou seja, não só o fato de que eu posso ser mais capaz de prever as ações de A, B e C, ao passo em que você pode ser mais capaz de prever as ações de D, E e F, mas também o fato de que você e eu, confrontados com o mesmo grupo de indivíduos — G, H e J —, possamos exibir diferentes habilidades duradouras de previsão. Na visão de Mises, esses fatos não representam problema algum. Indivíduos diferentes não sabem e não podem conhecer (entender) o passado de todos igualmente bem. Conhecem diferentes indivíduos de forma diferente; e, consequentemente, espera-se que a sua capacidade de previsão seja diferente dependendo de quais ações precisem ser previstas. Da mesma forma, supondo que diferentes indivíduos estejam interessados em prever as ações do mesmo indivíduo ou do mesmo grupo de indivíduos, deve-se esperar que existam sistematicamente — e, portanto, de forma duradoura — diferentes taxas de sucesso entre esses preditores. Na visão de Mises, cada previsão requer não apenas uma compreensão do passado, mas também um julgamento provisório — influenciado, mas não determinado pelo conhecimento do passado — quanto à estrutura de caráter subjacente dos agentes individuais em questão. Como uma tarefa essencialmente cognitiva envolvendo diferentes e complexas operações intelectuais, nada poderia ser menos surpreendente que o fato de que diferentes indivíduos, com talentos notavelmente diferentes em todas as outras áreas de esforço intelectual, também terão um desempenho diferente quando se trata de prever os seus semelhantes. Porém, se o passado e o futuro de um indivíduo não estivessem relacionados, conforme Lachmann acredita ser o caso, então todos devem prever o comportamento de todos os outros igualmente bem (ou igualmente mal). Uma pessoa com uma compreensão das ações passadas de um indivíduo não deve ser capaz de prever as ações futuras dele com mais sucesso que outra pessoa que não esteja tão familiarizada com o indivíduo em questão. Já que o passado não está conectado com o futuro, não saber disso não pode fazer diferença nas nossas habilidades de previsão. E, já que sem o nosso conhecimento de ações passadas nada mais existe de recurso para formarmos um julgamento de caráter, somos todos igualmente ignorantes, estamos todos igualmente sem leme; portanto, também não deve existir diferença duradoura na nossa taxa de sucesso ou fracasso. Espera-se que sucessos e fracassos se distribuam aleatoriamente entre agentes e fortunas pessoais para se dissiparem tão rapidamente quanto forem encontrados.

É quase desnecessário dizer que nada disso se encaixa na realidade histórica. Com base na minha profunda e longa compreensão da minha esposa, por exemplo, posso antecipar as suas ações e reações em quase todas as circunstâncias previsíveis; e vice-versa, ela pode me prever praticamente à perfeição. Há poucas surpresas, e provavelmente ninguém mais poderia nos prever melhor do que podemos prever um ao outro. Da mesma forma, posso prever, com grande precisão e melhor que quase todo mundo, o comportamento dos meus filhos, ao passo em que eles (ainda) têm consideravelmente mais dificuldade em entender a mim e ao meu caráter. Da mesma forma, posso antecipar melhor que quase ninguém as ações e reações de muitos da minha família e dos meus amigos sob uma grande variedade de circunstâncias; e eles, conhecendo-me, podem prever com sucesso muitas ou até mesmo a maioria das minhas reações. Não há nada de radical ou caleídico sobre a incerteza envolvida. Ademais, sei um pouco sobre a história dos homens e das mulheres, dos alemães, austríacos, turcos, americanos, italianos, mexicanos, protestantes, católicos, judeus, negros, asiáticos, professores universitários, políticos, empresários, funcionários privados e públicos — e assim por diante — e, em muitos aspectos, posso prever o comportamento dos membros desses grupos com muito sucesso; e certamente de maneira mais bem-sucedida que a pessoa média. Ademais, em relação às previsões sobre o comportamento do mesmo (grupo de) indivíduo(s) por diferentes preditores, ainda que todos os preditores tenham acesso igual ao registro de eventos passados e possam basear a sua previsão num entendimento desse passado, eles definitivamente não são igualmente bem-sucedidos nas suas previsões. Mais importante: no campo mais estreito do empreendedorismo capitalista, no qual os preditores devem estimar os seus custos de produção presentes e atuais e formar um julgamento sobre a demanda futura dos consumidores, a fim de concluir com sucesso uma troca antecipada de dinheiro presente por dinheiro futuro, e no qual existe um conjunto de critérios objetivos para o sucesso — lucro e prejuízo; operação contínua e falência; e crescimento, estagnação ou declínio dos valores de capital —, o grau de sucesso entre diferentes indivíduos é notavelmente diferente. Ao passo em que muitos daqueles que tentam, fracassam e abandonam o posto de empresário capitalista acabam se envolvendo em tarefas menos arriscadas e menos intelectualmente exigentes, muitos outros conseguem permanecer nos negócios ano após ano, e alguns têm conseguido acumular grandes fortunas durante a sua vida e até mesmo formar herdeiros capazes de preservar ou aumentar essa fortuna para além do seu período de vida. Esse fato empírico também se encontra em aberta contradição com a ideia de mudança caleídica e, em vez disso, confirma o grande valor cognitivo do método da compreensão (ainda mais à luz do fato de que a capacidade preditiva superior dos capitalistas-empreendedores simultaneamente reduz a incerteza enfrentada por todos os seus funcionários ao lhes fornecer uma renda presente, ainda que eles próprios não pudessem ter antecipado corretamente a demanda futura pela sua própria linha de trabalho).

Certamente tudo isso — o poder preditivo do método da compreensão manifestado nos fatos empíricos de formação e manutenção de capital, do cotidiano bem-sucedido (previsão de familiares, amigos, colegas e conhecidos) e de sucessos empresariais duradouros —, em conjunto com a certeza apodíctica proporcionada pela praxeologia e pela ampla certeza prática fornecida pela tecnologia e pelo seguro, deve ser mais que suficiente para dissipar toda essa conversa sobre incerteza radical e mudança social caleídica como contraditória e sem sentido — ou manifestamente falsa.

 

__________________________

Notas

[1] Ludwig von Mises, Theory and History (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1985), p. 203.

[2] Ludwig Lachmann, “From Mises to Shackle: An Essay on Austrian Economics and the Kaleidic Society”, Journal of Economic Literature 14 (1976): 55–59.

[3] Conferir: Oskar Morgenstern, “Perfect Foresight and Economic Equilibrium”, em Selected Economic Writings of Oskar Morgenstern (New York: New York University Press, 1976), editado por A. Schotter, especialmente a página 175; Roger W. Garrison, “Austrian Economics as Middle Ground”, em Method, Process, and Austrian Economics (Lexington, Massachussets: Lexington Books, 1982), editado por Israel Kirzner; idem, “From Lachmann to Lucas: On Institutions, Expectations, and Equilibrating Tendencies”, em Subjectivism, Intelligibility and Economic Understanding: Essays in Honor of Ludwig M. Lachmann (New York: New York University Press, 1986).

[4] Conferir: Richard von Mises, Probability, Statistics, and Truth (London: George Allen and Unwin, 1957), especialmente os capítulos 1 e 3; Frank Knight, Risk, Uncertainty, and Profit (Chicago: University of Chicago Press, 1971), especialmente o capítulo 7; Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics (Chicago: Henry Regnery, 1966), especialmente o capítulo 6.

[5] Richard von Mises, Probability, Statistics, and Truth (London: George Allen and Unwin, 1957), p. 109.

[6] Conferir: Ludwig Lachmann, The Market as an Economic Process (Oxford: Basil Blackwell, 1986), capítulo 2, especialmente as páginas 27–29; ver também: Gerald P. O’Driscoll Jr. e Mario J. Rizzo, The Economics of Time and Ignorance (Oxford: Basil Blackwell, 1985), capítulo 2, especialmente as páginas 24–26.

[7] Ver Hans-Hermann Hoppe, Kritik der kausalwissenschaftlichen Sozialforschung (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1983); idem, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1993), capítulo 7.

[8] Da mesma forma, seria para mim autocontraditório afirmar, sobre as minhas ações realizadas ao longo do tempo, o que teria de ser admitido se eu quisesse considerá-las casos de eventos asseguráveis (probabilidade de classe): que eu nada sei sobre qualquer uma das minhas ações, exceto que elas sejam ações minhas (da mesma forma como se pode legitimamente dizer, por exemplo, que eu nada sei sobre qualquer resultado singular de um jogo de roleta, exceto que cada um é resultado da mesma roleta). Na verdade, eu sei mais sobre cada uma delas. Sei que cada ação é influenciada pelo meu conhecimento e que o meu conhecimento será modificado dependendo do resultado de cada ação, de tal modo que cada ação será realizada por um eu diferente e deva ser considerada um evento único (formando uma classe inteira por si só).

[9] Sobre as visões metodológicas de Frank Knight em particular, conferir o seu livro The Ethics of Competition and Other Essays (Nova Iorque: Harper Bros., 1935); e idem, On the History and Method of Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1956).

[10] Ludwig Lachmann, The Market as an Economic Process (Oxford: Basil Blackwell, 1986), p. 32.

[11] Ibid., citado em G. L. S. Shackle, Time in Economics (Amsterdam: North Holland, 1958), p. 105.

[12] Desde Carl Menger, os austríacos consideravam os historicistas alemães como antieconomistas e inimigos intelectuais seus. Os historicistas — em especial o seu líder, Gustav Schmoller, e o sucessor dele, Werner Sombart — retribuíam amplamente essa animosidade.

[13] Ludwig von Mises, Theory and History (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1985), páginas 199, 203–204.

[14] Ludwig Lachmann, The Market as an Economic Process (Oxford: Basil Blackwell, 1986), páginas 30–31.

[15] Ver também: Hans-Hermann Hoppe, Kritik der kausalwissenschaftlichen Sozialforschung, capítulo 3, especialmente a página 47.

[16] Conferir Paul Lorenzen, Normative Logic and Ethics (Mannheim: Bibliographisches Institut, 1969), capítulo 1. Lorenzen explica:

Eu chamo um uso de convenção se eu sei de outro uso que eu poderia aceitar em vez disso. (…) No entanto, não conheço outro comportamento que possa substituir a utilização de sentenças elementares. Se eu não aceitasse nomes e predicadores apropriados, eu não saberia como falar. (…) Cada nome próprio é uma convenção, (…) mas utilizar nomes próprios não é uma convenção: é um padrão único de comportamento linguístico. Portanto, irei chamá-lo de “lógico”. O mesmo acontece com os predicadores. Cada predicador é uma convenção. Isso é demonstrado pela existência de mais de uma língua (linguagem) natural. Mas todas as línguas utilizam predicadores. (p. 16)

Ver também: Wilhelm Kamlah e Paul Lorenzen, Logische Propädeutik (Mannheim: Bibliografisches Institut, 1968), capítulo 1.

[17] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1978), páginas 84–85.

[18] Ludwig Lachmann, The Market as an Economic Process (Oxford: Basil Blackwell, 1986), p. 31; para as visões semelhantes de Hayek, conferir o seu texto “Economics and Knowledge”, em Friedrich A. Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago: University of Chicago Press, 1948).

[19] Ver Arthur Pap, Semantics and Necessary Truth (New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1958); Brand Blanshard, Reason and Analysis (LaSalle, Illinois: Open Court, 1962); Friedrich Kambartel, Erfahrung und Struktur (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968); Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property, capítulo 6.

[20] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1978), p. 70. Igualmente tão incompreensível quanto a acusação de que a praxeologia é empiricamente vazia porque as suas proposições são infalsificáveis é a acusação apresentada contra Mises e Menger por Gerald P. O’Driscoll Jr. e Mario J. Rizzo de que a crença na existência de “teoremas apodícticos praxeológicos” e “leis econômicas exatas” significa a suposição de algum tipo de “determinismo rígido”! (The Economics of Time and Ignorance, Oxford: Basil Blackwell, 1985, p. 23) E também teríamos de desistir da crença na existência de leis universais e imutáveis da lógica se adotássemos o determinista “subjetivismo dinâmico” de O’Driscoll e Rizzo?

[21] Ludwig Lachmann, “The Role of Expectations in Economics as a Social Science”, em idem, Capital, Expectations, and the Market Process (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977).

[22] Ver Ludwig von Mises, “‘Elastic Expectations’ and the Austrian Theory of the Trade Cycle”, Economica 10 (1943): páginas 251–252; ver também: George Selgin, “Praxeology and Understanding”, Review of Austrian Economics 2 (1988): 54.

[23] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1978), p. 49.

[24] Ludwig von Mises, Theory and History (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1985), p. 311.

[25] Para uma avaliação semelhante, ver George Selgin, “Praxeology and Understanding”, Review of Austrian Economics 2 (1988): 54.

[26] Conferir Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics (Chicago: Henry Regnery, 1966), p. 107.

[27] Ibid., páginas 107–110. Mises observa que

eventos históricos têm uma característica comum: são ações humanas. A história os compreende como ações humanas; concebe o seu significado pela cognição instrumental e entende o seu sentido ao verificar as suas características individuais e únicas. O que importa para a história é sempre o significado das pessoas envolvidas: o sentido que atribuem ao estado das coisas que desejam modificar, o significado que atribuem às suas ações e o sentido que atribuem aos efeitos provocados pelas ações. (Ibid., p. 59)

[28] Ludwig von Mises, Theory and History (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1985), p. 311.

[29] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1978), páginas 49–50; e ele continua então a dizer: “Em comparação com a certeza aparentemente absoluta fornecida por algumas das ciências naturais, tais suposições e todas as conclusões delas derivadas parecem bastante instáveis; os positivistas podem ridicularizá-las como não científicas. Entretanto, são a única abordagem disponível para os problemas em questão e indispensáveis para que qualquer ação seja realizada num ambiente social.”

[30] Ludwig von Mises, Theory and History (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1985), p. 316.

[31] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1978), p. 48.

[32] Ver Ludwig Lachmann, The Market as an Economic Process (Oxford: Basil Blackwell, 1986), páginas 34–42.

Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo e A Economia e a Ética da Propriedade Privada.
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Fernando Chiocca on Ayn Rand está morta
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Maurício J. Melo on Bem-estar social fora do estado
Maurício J. Melo on A guerra do Ocidente contra Deus
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Maurício J. Melo on A vietnamização da Ucrânia
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Ivanise dos Santos Ferreira on Os efeitos econômicos da inflação
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Ex-microempresario on O bombardeio do catolicismo japonês
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Marco Antônio F on Anarquia, Deus e o Papa Francisco
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Francês on O mistério continua
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