Imagine que você está no comando do estado, o qual é definido como uma instituição que possui o monopólio da jurisdição de seu território, sendo o tomador supremo de decisões judiciais para todos os casos de conflito, inclusive os conflitos envolvendo o estado e seus próprios funcionários. Adicionalmente, e em consequência desta característica citada, você possui também o direito de tributar, isto é, de determinar de maneira unilateral o preço que seus súditos têm de lhe pagar para que você efetue essa tarefa de tomar decisões supremas.
Agir sob estas restrições — ou melhor, sob esta falta de restrições — é o que constitui a política e as ações políticas. Consequentemente, já deveria estar claro desde o início que a política, por sua própria natureza, sempre significará transgressões, fraudes e delitos. Não do seu ponto de vista, é claro, uma vez que você está no comando do estado; mas sim do ponto de vista daqueles que estão sujeitos ao seu jugo de juiz supremo. Previsivelmente, você irá utilizar sua posição para se enriquecer à custa de todas as outras pessoas.
Mais especificamente, é perfeitamente possível prever quais serão suas atitudes e políticas específicas em relação à questão da moeda e do sistema bancário.
Suponha que você governe um território cuja economia já se desenvolveu além do estágio primitivo do escambo. Ou seja, onde um meio comum de troca — isto é, o dinheiro — já está sendo utilizado. De início, é fácil ver por que você estaria particularmente interessado no dinheiro utilizado e em questões monetárias em geral. Como administrador do estado, você pode em princípio confiscar o que você desejar e proporcionar a si próprio uma renda imerecida, a qual foi obtida com o trabalho alheio. Porém, em vez de confiscar vários bens de consumo ou bens de capital, você irá naturalmente preferir confiscar diretamente o dinheiro. Pois o dinheiro, sendo o bem mais facilmente comercializável e mais amplamente aceito de todos, permite a você a maior liberdade possível para gastar sua renda como quiser, com a maior variedade possível de bens. Por conseguinte, os tributos que você impuser sobre a sociedade serão tributos pagáveis em dinheiro, sejam eles impostos sobre a propriedade ou sobre a renda. Seu desejo é maximizar suas receitas tributárias.
No entanto, ao tentar fazer isso você irá rapidamente encontrar algumas dificuldades bem espinhosas. Com o tempo, suas tentativas de aumentar ainda mais sua renda tributária irão encontrar problemas: as maiores alíquotas de impostos não resultam em maiores receitas, mas sim em menores. Sua renda — seu dinheiro para ser gasto — começa a declinar, pois os produtores, sobrecarregados com impostos cada vez mais altos, simplesmente passam a produzir menos.
Nesta situação, você tem apenas uma opção para aumentar ou pelo menos manter seu atual nível de gastos: pedir dinheiro emprestado. E para isso você tem de ir aos bancos — daí o seu interesse especial também nos bancos e no setor bancário. Se você pegar dinheiro emprestado dos bancos, estes bancos irão automaticamente ter um genuíno interesse no seu bem-estar futuro. Eles farão de tudo para que você continue operante, isto é, eles irão querer que o estado dê continuidade às suas atividades espoliativas. E dado que os bancos tendem a ser participantes essenciais de uma sociedade, tal apoio certamente é algo benéfico para você. Por outro lado, e agora um lado negativo, se você pegar dinheiro emprestado dos bancos, eles não apenas irão querer que você quite o empréstimo, como também irão querer que você pague juros sobre o total emprestado.
Portanto, a questão que surge para você, o soberano, é: Como posso me livrar destas duas restrições, a saber, da resistência tributária que se manifesta na forma de receitas em queda e da necessidade de pegar dinheiro emprestado junto aos bancos e pagar juros para eles?
Não é muito difícil ver qual é a solução derradeira para o seu problema.
Você pode conquistar a sua desejada independência em relação aos pagadores de impostos e aos bancos apenas se você se estabelecer como o detentor do monopólio territorial da produção de dinheiro. No seu território, somente você pode produzir dinheiro. Mas isso ainda não é suficiente. Pois enquanto o dinheiro for um bem cuja produção é dispendiosa (como no caso do ouro, por exemplo), você terá apenas despesas adicionais caso decida assumir sua produção. De maior importância, portanto, é você se fazer valer de sua posição monopolista para reduzir os custos de produção e a qualidade do dinheiro para o mais próximo possível de zero. Em vez de dinheiro de qualidade dispendiosa, como ouro ou prata, você deve procurar fazer com que pedaços de papel sem nenhum valor, e que podem ser produzidos a custo praticamente zero, se transformem em dinheiro. (Normalmente, ninguém aceitaria pedaços de papel sem nenhum valor como forma de pagamento. Pedaços de papel são aceitáveis como pagamento somente quando representam títulos de reivindicação sobre outra coisa — por exemplo, títulos de propriedade. Em outras palavras, você terá de substituir pedaços de papel que representam títulos de propriedade sobre dinheiro genuíno por pedaços de papel que não representam titularidade sobre absolutamente nada.)
Sob condições concorrenciais, isto é, se todo mundo fosse livre para produzir dinheiro, uma moeda que pudesse ser produzida a custo praticamente zero seria produzida até uma quantidade em que a receita marginal se igualasse ao custo marginal; e dado que o custo marginal é zero, a receita marginal — isto é, o poder de compra deste dinheiro — também seria zero. Daí a necessidade de se monopolizar a produção do dinheiro de papel: para restringir sua oferta e, com isso, evitar condições hiperinflacionárias e o consequente abandono total do dinheiro em troca de “ativos reais” — o que faria com que todo o experimento não trouxesse vantagem alguma para você.
Uma vez monopolizada a produção de dinheiro de papel, você terá alcançado uma façanha que todos os alquimistas e seus patronos sempre sonharam alcançar: extrair algo valioso (dinheiro com poder de compra) de algo praticamente sem nenhum valor. Que façanha! É algo que não lhe custa praticamente nada para ser fabricado, mas que você pode utilizar para adquirir coisas genuinamente valiosas, como uma casa ou uma Mercedes. E você pode realizar essas maravilhas não apenas para você próprio, mas também para seus amigos e conhecidos, os quais você repentinamente descobrirá serem muito mais numerosos do que você imaginava (dentre eles vários economistas, os quais diligentemente irão explicar ao público por que o seu monopólio é na verdade algo fabuloso para todos.)
Quais serão os efeitos? Primeiramente, uma maior quantidade de dinheiro de papel não afeta de maneira alguma a quantidade ou a qualidade de todos os outros bens não-monetários que existem na economia. Existem tantos bens agora quanto existiam antes da sua façanha. Isto imediatamente refuta a noção — aparentemente abraçada pela maioria dos economistas convencionais, se não por todos — de que “mais” dinheiro pode de alguma forma aumentar a “riqueza social”. Acreditar nisso, como o fazem todos aqueles que propõem uma política de crédito fácil como forma eficiente e “socialmente responsável” de acabar com os problemas econômicos, é acreditar em mágica; é acreditar que pedras — ou melhor, tiras de papel — podem ser transformadas em pães.
Ao contrário, esse dinheiro adicional que você imprimiu irá afetar a economia de duas maneiras. De um lado, os preços dos bens e serviços serão maiores do que seriam sem essa sua mágica, e consequentemente o poder de compra por unidade de dinheiro será menor. Em uma só palavra, o resultado será inflação. E ainda mais importante: ao passo que essa maior quantidade de dinheiro não aumenta (ou não diminui) a quantidade total da riqueza social que existe atualmente (a quantidade total de todos os bens na sociedade), ela gera uma redistribuição da riqueza existente em favor de si próprio e de seus amigos e conhecidos — isto é, daqueles que recebem esse seu dinheiro antes de todo o resto da sociedade. Você e seus amigos tornaram-se relativamente mais ricos (detêm agora uma fatia maior da riqueza social total) à custa do empobrecimento de todos os outros (os quais, consequentemente, agora têm menos).
O problema, para você e seus amigos, em relação a este arranjo institucional não é que ele não funciona. Ele funciona perfeitamente, sempre em benefício seu (e de seus amigos) e sempre em detrimento de todo o resto. Tudo o que você precisa fazer é evitar a hiperinflação. Pois, neste caso, as pessoas abandonariam o seu dinheiro e passariam a utilizar ativos reais, desta forma privando você de utilizar sua varinha mágica. O problema com o seu monopólio do dinheiro de papel, se é que há algum, é apenas o fato de que tal esquema será imediatamente percebido por terceiros e denunciado como a grande e criminosa extorsão que ele de fato é.
Mas este problema também pode ser superado se, além de monopolizar a produção do dinheiro, você também se tornar um banqueiro e entrar no ramo bancário criando um banco central.
Dado que você pode criar dinheiro de papel do nada, você também pode criar crédito do nada. Com efeito, como você pode criar crédito do nada (sem a necessidade de ter antes de poupar), você pode oferecer empréstimos a taxas mais baixas que as oferecidas por quaisquer outras pessoas, até mesmo a juros zero (ou até mesmo a uma taxa negativa). Com esta capacidade, não somente a sua dependência em relação aos bancos e ao sistema bancário é eliminada, como também você poderá tornar os bancos dependentes do seu arranjo e, por conseguinte, poderá formar uma aliança e uma cumplicidade permanente entre bancos e estado. Você nem mesmo precisa se envolver no ramo da concessão de crédito. Tal tarefa, e o risco que ela traz, pode perfeitamente ser deixada para os bancos.
O que você — o seu banco central — terá de fazer é simplesmente o seguinte: você vai criar crédito do nada e vai emprestar esse dinheiro, a juros abaixo de mercado, aos bancos. Ao invés de você pagar juros aos bancos, agora são os bancos que irão pagar juros a você. E os bancos, por sua vez, irão emprestar seu dinheiro recém-criado para seus amigos favoritos a juros um pouco maiores, porém ainda abaixo dos de mercado (lucrando sobre este diferencial). Adicionalmente, para fazer com que os bancos fiquem especialmente entusiasmados para trabalhar com você, você poderá permitir que eles criem uma quantidade de crédito (na forma de depósitos em conta-corrente) maior do que o total que você já havia criado para eles (sistema bancário de reservas fracionárias).
Quais as consequências desta política monetária? Em grande parte, são as mesmas que as de uma política de crédito fácil e barato: primeiro, uma política de crédito fácil também é inflacionária. Mais dinheiro é colocado em circulação, os preços aumentam e o poder de compra do dinheiro se torna menor do que seria caso não tivesse ocorrido tal expansão creditícia. Segundo, a expansão do crédito também não tem efeito algum sobre a quantidade ou a qualidade de todos os bens atualmente existentes na economia. Ela não aumenta nem diminui a quantidade deles. Mais dinheiro é apenas isso: mais papel. Mais dinheiro não pode e nem vai aumentar a riqueza social. Terceiro, crédito fácil também gera uma sistemática redistribuição de riqueza social em favor de si próprio — o banco central — e dos bancos que participam do seu cartel. Você recebe juros sobre um dinheiro que você criou do nada a custo praticamente zero (em vez de um dinheiro que foi arduamente poupado). Os bancos fazem o mesmo: cobram juros adicionais sobre o dinheiro que você emprestou para eles a um custo negligente. Desta forma, tanto você quanto seus amigos banqueiros adquirem uma “renda imerecida”. Você e os bancos enriquecem à custa de todos os “genuínos” poupadores (os quais recebem juros menores do que receberiam caso não tivesse havido essa injeção de crédito barato sua e dos bancos no mercado de crédito).
Por outro lado, também existe uma diferença fundamental entre uma política de “imprimir e gastar” e uma política de “imprimir e emprestar”.
Pra começar, uma política de crédito fácil altera a estrutura de produção — o que é produzido e por quem — de uma maneira extremamente significativa.
Você, o chefe do banco central, pode criar crédito do nada. Você não precisa primeiro poupar dinheiro — isto é, reduzir seus próprios gastos se abstendo de comprar determinados bens não-monetários (como toda pessoa normal tem de fazer caso ela conceda empréstimos a alguém). Você pode apenas ligar a impressora e, consequentemente, sobrepujar qualquer taxa de juros que esteja sendo cobrada pelos poupadores (fornecedores de crédito) em qualquer lugar do mercado. Conceder crédito não exige nenhum sacrifício de sua parte (e é por isso que essa instituição é tão “legal”). Se as coisas derem certo, você receberá juros positivos sobre o seu investimento de papel; e se elas não derem certo — bem, na condição de produtor monopolista de dinheiro, você sempre poderá compensar suas perdas muito mais facilmente do que qualquer outra pessoa: basta cobrir os prejuízos imprimindo ainda mais dinheiro de papel.
Sem custos e sem nenhum genuíno risco pessoal de prejuízos, você pode conceder crédito de maneira essencialmente indiscriminada para qualquer pessoa e para qualquer propósito, sem se preocupar com a capacidade creditícia do devedor ou com a racionalidade de seu plano empreendedorial. Por causa desta sua política de crédito “fácil”, certas pessoas (em particular, bancos de investimento) que de outra forma não seriam consideradas suficientemente dignas de crédito, e certos projetos (em particular, de bancos e seus principais clientes) que não seriam considerados lucrativos mas sim imprevidentes ou excessivamente arriscados, acabam conseguindo crédito e sendo financiados.
Essencialmente, a mesma relação ocorre entre os bancos comerciais que fazem parte do cartel bancário. Por causa do relacionamento especial entre você e eles, na condição de primeiros recebedores de seu crédito barato, os bancos também podem oferecer empréstimos a outros emprestadores a juros abaixo dos de mercado — e se as coisas derem certo, todos se dão bem; se as coisas derem errado, eles podem contar com a sua prestimosa ajuda — na condição de produtor monopolista de dinheiro — para socorrê-los, da mesma maneira que você socorre a si próprio sempre que há problemas financeiros: imprimindo dinheiro. Correspondentemente, os bancos também serão menos discriminadores na seleção de seus clientes e de seus planos empreendedoriais, e serão mais tendentes a financiar pessoas “erradas” e projetos “errados”.
E há uma segunda e significativa diferença entre uma política de “imprimir e gastar” e uma política de “imprimir e emprestar”, e essa diferença explica por que a distribuição de renda e de riqueza em favor de si próprio e de seus amigos banqueiros, a qual é desencadeada por políticas de crédito fácil, assume a forma específica de um ciclo econômico temporal — isto é, de uma fase inicial de aparente prosperidade geral (na qual se espera aumentos na renda e na riqueza futuras) seguida por uma fase de amplo empobrecimento (quando a prosperidade do período do boom revela-se uma ampla e dispersa ilusão).
Este ciclo econômico é a consequência lógica — e fisicamente necessária — do crédito criado do nada, do crédito sem nenhum lastro em poupança, do crédito fiduciário (ou seja, lá como você queira rotulá-lo) e do fato de que todo investimento demora a maturar — sendo que, somente mais tarde, em algum ponto futuro, é que ele irá se comprovar bem sucedido ou não.
A razão de haver ciclos econômicos é tão elementar quanto é fundamental. Robinson Crusoé pode emprestar um peixe (o qual ele não consumiu) para Sexta-Feira. Sexta-Feira pode converter essa poupança em uma rede de pesca (ele pode comer o peixe enquanto constrói a rede), e então, com a ajuda da rede, Sexta-Feira, em princípio, torna-se capaz de pagar seu empréstimo junto a Robinson, mais juros, e ainda obter lucro na forma de um peixe adicional para ele próprio. Porém, isso seria fisicamente impossível caso o empréstimo de Robinson fosse apenas um pedaço de papel, denominado em peixes, mas não lastreado por uma genuína poupança de peixes — isto é, caso Robinson não possua nenhum peixe porque ele já consumiu todos.
Consequentemente, e necessariamente, Sexta-Feira irá fracassar em seu esforço empreendedorial. É claro que, em uma simples economia de escambo, tal trapaça se torna imediatamente aparente. Pra começar, Sexta-Feira não aceitará o crédito de papel fornecido por Robinson (ele aceitará somente o crédito real, uma mercadoria); e, justamente por causa disso, o ciclo econômico nem sequer começará. Mas em uma complexa economia monetária, o fato de o crédito ter sido criado do nada, sem lastro algum, não é algo perceptível: cada nota de crédito se parece com todas as outras, e, por causa disso, as notas são normalmente aceitas pelos tomadores de crédito.
Isso não altera a fundamental realidade de que nada pode ser produzido do nada e que investimentos empreendidos sem um financiamento real (poupança) irão necessariamente falir; mas explica como um período de boom econômico — um aumento no nível de investimento acompanhado de uma expectativa de maiores renda e riqueza futuras — pode ser iniciado (Sexta-Feira aceita a nota em vez de imediatamente recusá-la). E explica por que demora algum tempo para que a realidade física se reafirme e revele que todas essas expectativas eram ilusórias.
Mas qual o problema de uma pequena crise para você? Mesmo que o seu caminho seja permeado por repetidas crises, todas elas criadas pelo seu regime baseado em dinheiro de papel e políticas do banco central, do seu ponto de vista — do ponto de vista do chefe de estado e presidente do banco central — essa forma de redistribuição de riqueza (via políticas de “imprimir e emprestar”) em favor de si próprio e de seus amigos banqueiros, embora traga resultados menos imediatos do que aqueles conseguidos com uma simples política de “imprimir e gastar”, ainda é muito mais preferível, pois é bem mais difícil de ser percebida e de ser reconhecida por aquilo que realmente é. Ao invés de ser visto como uma fraude e um parasita, você, nessa incessante busca por novas políticas de crédito fácil, pode até mesmo fingir que está engajado na altruísta tarefa de “investir no futuro” (e não de gastar em frivolidades) e de “curar” crises econômicas (e não de gerá-las).
Que mundo esse em que vivemos!