Muitos críticos do bitcoin e de outras criptomoedas versados em Escola Austríaca de Economia ou com alguma intuição de seus preceitos sobre solidez monetária indagam sobre o lastro destes ativos. No presente artigo, no qual usarei a palavra bitcoin como metonímia para todas criptomoedas sérias (excluindo assim as shitcoins), fundamentarei filosoficamente as qualidades monetárias desta bem-vinda inovação.
A ontologia estuda o ser enquanto ser. Uma ontologia do dinheiro é fundamental para saber se estamos lidando com um ativo bem lastreado ou com ilusões monetárias que não passam de títulos de dívida. Para conhecer o ser de algo, dizia Aristóteles, deve-se conhecer suas causas, inclusive sua causa formal, princípio que determina a essência particular de algo. No caso do dinheiro, conhecer sua causa formal é conhecer o seu princípio de valor, que a Escola Austríaca professa ser subjetivo. De fato, valor refere-se a valor para o homem, o sujeito racional.
A relação entre valor e seu princípio é bem elucidada, no debate econômico, pelo paradoxo da água e do diamante. Este é mais valioso que aquela ou simplesmente tem um preço maior no mercado devido à sua raridade? O princípio praxeológico da utilidade marginal decrescente prevê que um homem sedento no deserto estará disposto a trocar todos os seus diamantes por uma garrafa d’água. “Meu reino por um cavalo”, diria um desesperado Richard III shakespeareano na Batalha de Bosworth. Ora, sendo a água necessária à vida, seu valor tenderá ao valor da própria vida em situações de escassez. Não foi de forma contra-intuitiva que Tales de Mileto considerou este líquido como o princípio de todas as coisas. É fácil rir do pensador pré-socrático hoje, mas se fizermos uma analogia da água com o tempo, pelo menos no que tange a ação humana, veremos sentido.
Toda ação humana se dá no tempo, de forma tal que as relações temporais subjazem a toda relação causal no âmbito da vida humana. A alma é a forma do nosso corpo e o tempo de vida é uma potência formal necessária para que nela sejam apreendidos os bens perenes, a serem buscados como fins. Logo, o tempo, que Santo Tomás de Aquino define como a medida do movimento, subjaz a todas as escolhas e, ainda que não seja um fim, é talvez o mais valioso dos meios. O dinheiro, que é a medida das trocas, guarda uma relação analógica com o tempo, sintetizada por Benjamin Franklin no adágio “tempo é dinheiro”. Ora, se as trocas se dão no tempo, o dinheiro deve ser capaz de medi-las intertemporalmente. Se o valor é subjetivo, o dinheiro só pode servir de reserva de valor no tempo se a ele corresponder uma substância, ou seja, algo que subsiste apesar das mudanças acidentais.
Os objetos usados como dinheiro e as tecnologias que os produzem podem mudar, mas tudo isso é matéria que recebe um ato substancial que o informa. Este ato substancial é a atribuição de valor, como meio desejável de troca, pelos agentes econômicos, de forma que o lastro do dinheiro é o próprio valor subjetivo que se lhe atribui. Dinheiro de curso forçado controlado por um governo, banco central ou qualquer outro monopólio é dinheiro da mesma forma que uma máfia que cobra taxa de proteção contra ela mesma é uma agência de proteção.
A substância é essência existente e esta é significada por uma definição. Para definir dinheiro, definamos antes moeda. O economista libertário Benjamin Rogge define moeda como aquilo que se usa como tal, ou seja, meio de troca. Quando Satoshi Nakamoto transferiu bitcoins a Hal Finney para testar o sistema, aquilo não caracterizava moeda, o que viria a ocorrer quando 10 mil unidades foram trocadas por uma pizza.
Defino dinheiro como uma moeda suficientemente difundida para se tornar um bem de rede, ou seja, aquele cujo grau de difusão lhe agrega valor. Tendo definido a essência, estudemos a existência, ou como o dinheiro vem a ser. Para o socialista Georg Knapp, da relativista escola histórica alemã de economia, o dinheiro é cria da legislação. Sua teoria da origem do dinheiro, o chartalismo, prega que um bem se torna moeda por decreto, ignorando assim a natureza subjetiva do valor e das trocas. Até mesmo o ouro só teria valor como moeda mediante um selo governamental. Trata-se do velho debate entre natureza e convenção (physis vs nomos) cujos defensores eram respectivamente os filósofos e os sofistas. Para os chartalistas o Estado é como um deus e suas teses são como escrituras sagradas onde muito bem poder-se-ia ler:
O papel e tinta estavam sem forma, o escambo cobria a selvageria e o Espírito do Estado pairava sobre a economia. O Estado disse “Faça-se a moeda”. E a moeda foi feita.
Ora, o Estado é um agente econômico, ainda que monopolista e criminoso, e que demanda moeda. Portanto, um decreto estatal deste tipo nunca poderia ser totalmente arbitrário já que há pelo menos um agente valorizando um bem como moeda. Logo, as propriedades monetárias de um bem decorrem necessariamente de sua natureza. A explicação racional para a origem do dinheiro é chamada explicação catalática (do grego katallássō, que significa trocar com o outro), pois fundamenta-se nas trocas econômicas espontâneas. A abordagem evolutiva de Menger, a mais cogente das explicações cataláticas, propõe que um bem se torna moeda quando existe demanda dos indivíduos por meios que facilitem as trocas indiretas. Assim sendo, bens mais líquidos vão progressivamente se tornando dinheiro conforme sua difusão, que estabelece com seu valor de troca uma relação de alimentação mútua.
Segundo o Teorema da Regressão de Mises, o processo mengeriano se inicia a partir de bens que já possuem um valor não-monetário, gerando uma expectativa de que ele seja demandado per se. Se, além disso, um bem também possui características que favoreçam seu uso como meio de troca, ele assim será empregado e os bens com os melhores atributos emergirão como dinheiro amplamente aceito de um ambiente de livre competição monetária.
Há, porém, casos históricos de bens designados como moeda antes que se lhes atribuísse valor não-monetário, como o das pedras rai, discos de pedra esculpidos com um orifício central empregadas como reserva de valor pelos nativos da ilha de Yap, na Micronésia. Não vejo aqui uma violação do Teorema da Regressão de Mises caso admitamos que o valor não-monetário não requer precedência na ordem das intenções. Se há, na sociedade, demanda por moeda, é possível que, através da atividade empreendedorial, aposte-se tempo e recursos na transformação de um ente em bem monetário, bastando para tanto empregá-lo de forma produtiva para satisfazer uma necessidade não-monetária. Este bem pode se tornar moeda imediatamente caso este emprego coincida com uma das funções do dinheiro. Este pode ser usado como reserva de valor, função também cumprida por um imóvel. Pode liquidar passivos, tarefa que um automóvel penhorado também pode desempenhar. Mas a função mais relevante para o estudo ontológico do bitcoin é a de medição de valor relativo, já que as duas primeiras citadas dependem de um lastro de valor prévio.
O valor relativo dos bens, especialmente do capital, é a linha guia da atividade empreendedorial e, segundo Mises e Hayek, o principal fator que, quando distorcido, determina a ineficiência do planejamento central socialista. Sempre haverá, então, demanda por meios de evitar o caos calculacional, sejam eles monetários ou não, e é por isso que a transmissão em tempo real dos valores dos papéis negociados nas bolsas de valores, para dar um exemplo não-monetário, dá audiência aos canais de notícias.
Poder-se-ia objetar que um determinado bem requer um valor de uso não-monetário prévio para servir como parâmetro de medição de valores relativos, mas este argumento ignora o fato de que esta função tem valor por si mesma. É por isso que um bibliotecário recebe salário. Ele não escreve os textos nem imprime os livros, mas sem seu serviço de catalogação e organização é difícil ou impossível achar aquilo que se pretende ler. A utilidade do livro é direta e a do bibliotecário é indireta, pois depende da utilidade dos livros que ele organiza. Da mesma forma, um ente que meça o valor relativo dos bens diretamente úteis não precisa ser ele mesmo um bem diretamente útil, já que sua utilidade fundamenta-se no fato de que sem ele é difícil ou impossível que a ação econômica seja racional e portanto produtiva.
O caso das pedras rai da Micronésia demonstra que a capacidade de mensurar a proporção entre os valores dos bens na economia pode ser imputada a um determinado bem por uma convenção social, sendo que esta não corresponde necessariamente a uma imposição estatal, mas pode manifestar-se catalaticamente como expressão sociológica de elementos culturais e axiológicos que será valorizada em virtude da própria ordem social que ela promove. Como demonstrou o antropólogo Gilberto Freyre, as convenções sociais orgânicas expressam valores previamente estabelecidos, nos quais seus produtos lastreiam seu próprio valor.
Entretanto, se é catalático o surgimento de uma parametrização das valias relativas, o preito sócio-cultural não é única maneira de produzí-la, pois a ação humana não limita a ele o rol de soluções para as necessidades da civilização. Ora, o teólogo escolástico Gabriel Biel demonstrou que a moeda emerge ex necessitate (a partir da necessidade), logo as suas funções componentes também. Tão logo se divise as virtudes técnicas de um determinado ente para parametrizar valores relativos, a necessidade de empregá-lo para tanto lhe emprestará valor eo ipso, que pode ser acrescido de componentes especulativos ou mesmo psicológicos. No caso do bitcoin, estes últimos estão intimamente relacionados, como constata Konrad Graf, ao senso de pertencimento a uma subcultura nerd ou à consciência política libertária de resistência contra o controle monetário governamental. Independentemente das particularidades, é mister que se note que a função de mensuração de valores relativos é o ponto de confluência entre o uso não-monetário e monetário de um bem, de forma tal que o valor desta função pode ser classificado como sendo ao mesmo tempo não-monetáro e monetário. Este, por sua vez é imputado tão logo ele seja empregado como meio de troca por que motivo for e, a partir de então, a capacidade deste ativo de medir valores relativos será aperfeiçoada iterativamente no mercado, formando assim uma convenção monetária tácita que permitirá sua difusão como dinheiro. O meu principal ponto neste artigo é que este processo pode ser desencadeado intencionalmente por um empreendedor que deseje ofertar dinheiro produzindo as condições técnicas necessárias para que um ente cumpra a função de medir valores relativos.
O surgimento do dinheiro, conforme demonstrado, não se dá por um decreto burocrático, nem por uma lei inevitável da natureza, mas um acúmulo incremental de ações empreendedoriais que intencionam satisfazer uma necessidade humana. Pela sua natureza, como tratado por teóricos como Kirzner e Rothbard, a poiética do empreendedor é imprevisível e inovadora, de forma tal que, nas palavras do economista Mark Thornton: “O complexo processo de desenvolvimento do dinheiro e do sistema bancário nunca poderia ser imaginado antes que de fato acontecesse”. O bitcoin é fruto da inventividade de seus criadores e nunca poderia ter sido imaginado nas suas tecnicalidades por economista algum, muito menos por políticos e planejadores centrais, algo evidenciado claramente por sua sofisticação técnica. Mas isto vale para qualquer moeda surgida no mercado. Basta imaginar o quão surpreso ficaria um homem da cultura Varna (4500 a.C.) ao saber que o mesmo ouro de seus artefatos ritualísticos seria usado na Lídia 4 milênios depois para compor um intrincado sistema monetário.
Para prosseguir no estudo da ontologia do bitcoin, é preciso entender algo essencial sobre o dinheiro como substância segunda, ou seja, como a abstração universal de todas as formas de dinheiro, cujas substâncias são chamadas primeiras. O filósofo econômico Georg Simmel dividia os valores da sociedade em concretos (a utilidade não-monetária dos bens) e abstratos (aquilo que se imputa adicionalmente a determinados bens pela sua utilidade como moeda). A qualidade monetária depende de que seu valor seja abstraído dos valores concretos e não de convenções arbitrárias ou de processos fraudulentos. Assim sendo, os acidentes da substância segunda dinheiro, que são os diversos ativos empregados como meio de troca ao longo da História, obterão seu valor abstrato da mesma forma que os valores concretos por ele refletidos, ou seja, através dos processos espontâneos e imprevisíveis do mercado.
Devemos agora averiguar o que é um bitcoin. Trata-se de um pedaço de informação digital que conta como um apontamento contábil eletrônico, mas que difere completamente dos lançamentos contábeis eletrônicos através dos quais os bancos criam unidades da moeda de curso forçado com lastro em nada. A fraude inflacionista na qual o atual sistema bancário se baseia reside justamente na ausência de fundamentação ontológica para a sua oferta monetária. O bitcoin, por outro lado, vem a ser não por decreto mas pela resolução concreta de uma equação matemática que requer recursos e energia empregados no processo de mineração e, pela sua própria arquitetura algorítmica, está limitado a 21 milhões de unidades. Enquanto o sistema monetário fiduciário mantém-se pela ilusão de que bancos poderiam honrar seus passivos com os correntistas e pelo fato de ser imposto coercitivamente contra os usuários, o bitcoin é aquiescido pela ação humana desimpedida que aposta livremente em suas características técnicas que incluem a transparência e segurança da blockchain. Empreendedores arriscaram seu capital no projeto do bitcoin para oferecer soluções à vida financeira dos potenciais clientes, que fornecem uns aos outros benefícios de uma rede descentralizada ao mesmo tempo em que a utilizam. Já no sistema fiduciário, cada usuário adicional é tratado como um ativo colateral que contribui para que os controladores majoritários centralizados piramidem ainda mais papeis de dívida em cima deles. A diferença entre a subtancialidade do bitcoin e de qualquer moeda de curso forçado é mais que a de uma brutal magnitude. É de natureza.
Para demonstrar que o bitcoin é dinheiro, contudo, devemos ir além de provar sua superioridade relativa ao sistema fiduciário. Para que alguém seja chamado filósofo não basta simplesmente ser superior a um Cortella ou Chauí.
Ludwig von Mises classificou o dinheiro (num sentido strictu sensu, excluindo-se da seguinte enumeração os substitutos do dinheiro) em três categorias. A primeira é o dinheiro commodity, que são bens naturalmente demandados com características que favorecem seu uso monetário e que por isso alcançaram ampla aceitação como meio de troca. A segunda é o dinheiro creditício, que são instrumentos financeiros comerciáveis cujo valor monetário é derivado de expectativas futuras. A terceira é o dinheiro fiduciário, o papel-moeda de curso forçado imposto por governos. Se o bitcoin não se encaixa nas duas últimas categorias, ele teria que ser uma commodity para poder ser dinheiro.
Aristóteles distingue a riqueza natural, que decorre da capacidade das mercadorias de satisfazer diretamente as necessidades humanas e está relacionada ao valor de uso, da riqueza monetária, que media as trocas de riqueza natural segundo uma proporcionalidade e está relacionada ao valor de troca. Ora, sendo as necessidades humanas particulares e mutáveis, é através do dinheiro que os valores de troca podem ser ajustados para guiar racionalmente a canalização da riqueza natural para satisfazê-las. Para o filósofo estagirita, uma economia monetária é condição imprescindível para o exercício das virtude políticas, já que estas exigem uma justiça que ele define como dar a cada um a justa medida em vista do bem comum. O dinheiro sólido deriva sua bondade da sua capacidade de ser conveniente à necessidade do homem de racionalizar as trocas econômicas, que não deriva unicamente de sua natureza (physis) mas de uma convenção social (nomos). Por isso o termo grego para dinheiro é nomisma (origem etimológica da palavra numismática). Contudo, da mesma forma que as leis escritas só podem ser justas quando fundamentadas em uma natureza moral, as convenções sociais que dão existência ao dinheiro devem alicerçar-se na natureza técnica do ente monetário para que ele seja um bom dinheiro. É através das relações harmônicas do livre mercado que o resultado das ações humanas mais provavelmente inclina-se à verdade das coisas. Assim, se as trocas voluntárias que refletem a concretude das preferências individuais são a causa formal da nomos que origina o dinheiro sólido, este tipo de convenção se distingue daquela imposta arbitrariamente por governos. Constata-se ainda que estas ações, quando livres, definem ipso facto o valor de troca das coisas, de forma tal que quando a convenção social eleva uma moeda à condição de dinheiro, ela o faz empregando-a como commodity.
Uma commodity é um bem fungível (cada unidade dele é perfeitamente intercambiável com outra devido à pouca ou nenhuma distinção individual) negociado em grandes quantidades, barateando cada unidade por ganhos de escala. O bitcoin certamente é fungível e, à medida em que se valoriza, é dividido em unidades cada vez menores, os satoshis, que são baratas e negociadas em grandes quantidades. Sua materialidade é evidenciada pela quantidade de recursos físicos despendidos em sua mineração e pela quantidade discreta de capacidade informacional que ocupa. Podemos dizer, portanto, que o bitcoin é um dinheiro commodity tão logo as pessoas deem finalidade monetária ao conjunto de informações armazenados na blockchain que ele representa.
Resta agora saber se esta é uma escolha virtuosa e para tanto devemos avaliar se o bitcoin possui os atributos ontológicos de uma boa moeda. Sua escassez é garantida pelo algoritmo, o que a torna uma excelente reserva de valor. Sua portabilidade é tanta quanto a tecnologia digital permite. Sua durabilidade é indefinida e protegida pela criptografia avançada da blockchain, que também lhe fornece o atributo da identificabilidade, ou seja, de saber quem é o dono, e lhe imputa a utilidade não-monetária de indexar o valor relativo das trocas de mercado. Sua liquidez é aumentada pelo fato do bitcoin também servir de meio de pagamento. Considerando que vivemos sob o socialismo, no qual governos ameaçam sistematicamente a privacidade financeira e a propriedade privada dos cidadãos, qualidades de proteção e furtividade tornam-se extremamente desejáveis. Não pretendo entrar no mérito comparativo da segurança de diferentes criptomoedas, como a Cardano e o Ethereum, mas o fato é que o bitcoin, aqui tomado como representante de todas as boas criptomoedas, é muito superior ao ouro físico neste quesito, que sempre pode ser confiscado por odiosos agentes totalitários do Estado. Neste sentido, o bitcoin cumpre o segundo requisito de Ludwig von Mises para definir se um dinheiro é sólido, que é impedir que o governo se imiscua no setor monetário.
Quanto ao primeiro requisito, que é consolidar as escolhas do mercado quanto aos bens monetários amplamente empregados para racionalizar as trocas, o bitcoin pode ser inferior ao ouro, já que este seria a escolha num ambiente livre de socialismo e onde as forças de segurança privadas concorrendo no mercado cumprissem adequadamente a função de proteger os ativos físicos das pessoas honestas. Entretanto, sendo resultante da ação humana voluntária, valendo-se de características técnicas inovadoras e engenhosas e possuindo por si mesmo um valor psicológico, cultural e político; podemos afirmar categoricamente que o bitcoin é dinheiro sólido.
Alguns leitores podem estar se perguntando qual a utilidade prática deste estudo ontológico. É famoso o relato de Plutarco de que Tales de Mileto foi alvo de zombarias por caminhar tão absorto com a observação dos astros que ele caiu num buraco no chão, mas poucos sabem que ele estava longe de ser um nefilibata e que suas elocubrações astronômicas lhe renderam ganhos muito práticos. Seus conhecimentos em astronomia lhe permitiram prever uma safra anormalmente alta de azeitonas, ao que ele prontamente alugou prensas de azeite a baixas tarifas. Quando suas previsões se concretizaram e o mercado foi inundado de azeitonas, a demanda por prensas de azeite foi às alturas e Tales as sublocou a tarifas, com o perdão do trocadilho, astronômicas.
A filosofia do dinheiro pode aguçar a sabedoria prática em relação aos investimentos. A partir daquilo que definimos até agora, podemos estudar que tipo de ativo é o bitcoin. Para tanto, é necessário saber se ele é capital.
O economista Eugen von Böhm-Bawerk define dois tipos de capital, sendo o primeiro deles os meios usados diretamente para a aquisição de bens finais, o chamado capital privado. O dinheiro encaixa-se nesta definição. O segundo tipo é o capital social, aquele que gera rendimentos por ser empregado diretamente no processo produtivo. O dinheiro não é um capital social, já que, ao contrário do que pensaria um keynesiano se ele pensasse, ele não gera riqueza per se mas somente quanto investido adequadamente em máquinas, insumos e imóveis. Santo Tomás de Aquino já dizia: “pecunia pecuniam parere non potest” (dinheiro não pode gerar dinheiro). Logo, o bitcoin é capital privado, mas não capital social, diferentemente talvez, de uma NFT (non-fungible token), que pode ser empregado em processos de autenticação de transações eletrônicas referentes a diversas cadeias produtivas.
Por outro lado, o capital privado investido canaliza recursos para atividades produtivas que geram renda futura, e esta é a razão pela qual São Bernardino de Siena considerou a legítima cobrança de juros por lucrum cessans (o custo de oportunidade de destinar aquele montante para investimento alternativo). O sistema de preços é crítico como ferramenta informacional de apoio à tomada de decisão do investidor e é costumeiramente distorcido pelos efeitos inflacionários. O bitcoin, por basear-se em uma tecnologia que impede a inflação, contribui para tornar mais eficiente a informação transmitida pelo sistema de preços e não distorce os valores relativos do capital por efeito Cantillon (que ocorre quando a injeção de liquidez num ponto da economia altera, a partir deste, as relações de oferta e demanda). Por isso pode-se afirmar que a tecnologia do blockchain, ao viabilizar um dinheiro com tais características, é um capital social.
Características importantes do bitcoin como ativo financeiro decorrem de suas peculiaridades técnicas. Uma delas é ser anti-cíclico. Quando a moeda fiduciária se desvaloriza nas fases próximas ao estouro das bolhas financeiras, o bitcoin se valoriza devido ao aumento na sua procura. Durante a fase de recuperação e deflação, quando a poupança da sociedade começa a ser restaurada (e que geralmente é acompanhada por uma subida dos juros), o bitcoin costuma depreciar, já que a renda fixa volta a ser compensadora. Dessa forma, ele preserva valor do proprietário na fase de boom, em que recursos escassos são desperdiçados em maus investimentos mas rapidamente torna a ser atrativo como investimento quando a economia disponibiliza novos fluxos de poupança. O bitcoin é também um ativo anti-choque, já que funciona como reserva de valor. Enquanto as políticas monetárias expansionistas dilapidam o poder de compra da moeda fiduciária subsidiando o consumo e queimando capital produtivo, o bitcoin se valoriza, funcionando como uma válvula de escape que inibe o desvio de recursos para fins não produtivos. Quando a bolha financeira estoura, não apenas preserva-se uma parte do capital social da economia como também um grau de independência das pessoas compradas neste ativo em relação aos bancos, mitigando uma elevação demasiado brusca da taxa de juros e viabilizando uma retomada mais rápida dos bons investimentos.
Estes atributos fundamentam o uso do bitcoin como hedge, uma proteção contra choques e crises, mas sua capacidade para tanto depende do prazo a ser considerado. Durante os primeiros meses da guerra entre Rússia e Ucrânia em 2022 houve uma queda vertiginosa do bitcoin enquanto o ouro manteve-se estável. Esta maior volatilidade deve-se ao fato do componente especulativo responder por boa parte do valor do bitcoin em um dado momento, mas não depõe contra suas qualidades de hedge no longo prazo.
A maior qualidade do bitcoin e das criptomoedas em geral é a margem que existe para sua adaptabilidade técnica. É verdade que o bitcoin ainda não atingiu o patamar que eu denomino “dinheiro civilizacional”, que é o dinheiro cuja difusão e benefícios abarcam praticamente toda a população. Um ativo atinge este estágio quando é usado como meio de troca pela mais humilde e pouco instruída idosa de um bairro de periferia comprando chuchu na vendinha da esquina. Mas há pessoas trabalhando na solução das dificuldades de transmissibilidade, que incluem altos custos de transação, enquanto termino de escrever este artigo.
Aristóteles escreve sobre dinheiro em duas de suas obras sobre ética (Magna Moralia e Ética a Nicômaco) e na sua obra Política; mas não na sua Economia, pois esta trata do lar e da família, que é a finalidade de toda atividade produtiva. O filósofo estagirita denominou crematística, no livro I da Política, a arte de produzir riqueza. Quando os empreendedores inovam o setor monetário e quando pessoas escolhem uma moeda melhor para armazenar o valor de seu trabalho, há uma demonstração de sabedoria técnica cremastística por parte destes agentes que, aliada a uma sabedoria prática que dê ao dinheiro bom uso fazendo-o cumprir sua função de servir às finalidades mais elevadas do ser humano, contribuirá para o desenvolvimento material, intelectual, moral e espiritual da civilização. Georg Simmel nos lembra que é na complexidade aparentemente impessoal da divisão de trabalho no livre mercado que florescem os melhores traços da nossa individualidade.
As tecnologias de criptomoedas são emblemáticas do conceito austrolibertário de eficiência dinâmica das instituições, que versa sobre a potência do livre-mercado de transcender os limites técnicos e sociais de sua própria capacidade produtiva num dado momento através de um círculo virtuoso da atividade empreendedorial. Por isso mesmo é difícil prever o horizonte temporal da hegemonia das criptomoedas já que elas podem nos ajudar a vencer a própria motivação de sua gênese, que é a destruição monetária perpetrada pelo sistema fiduciário estatal. Entretanto, enquanto a ameaça da inflação, da reserva fracionária, do curso forçado e da criminalidade comum assombrarem a poupança da humanidade, haverá um futuro para as criptomoedas.
Grande Kogos, nosso deputado… artigo denso cuja compreensão requer mais que uma leitura superficial. O kogos é a prova viva – para desespero dos ateus e Jihadistas – queimem todos os ateus -, que o anarcocapitalismo para ser consistente requer o auxílio da Igreja de Roma. Ao contrário do que dizem alguns católicos desinformados, não ser compatível catolismo e libertarianismo
“Há, porém, casos históricos de bens designados como moeda antes que se lhes atribuísse valor não-monetário, como o das pedras rai, discos de pedra esculpidos com um orifício central empregadas como reserva de valor pelos nativos da ilha de Yap, na Micronésia”
Os alemães administraram essas ilhas. Como explorar um povo sem moeda? através do trabalho. Só que depois de um tempo o povo meio que se revoltou e parou de trabalhar. Sem nada para confiscar e com aquelas pedras inúteis para os alemães – mas reserva de valor para os locais, o que fazer? o governador que administrava o local mandou pintar em todas a pedras enquanto a população não trabalhasse: propriedade do estado alemão. Eu chamaria isso de pedra pintada, a ascendente do papel pintado atual. Os nativos se sentiram tão pobres por “perder” toda a sua riqueza – as pedras continuaram exatamente onde estavam, que consentiram em voltar a trabalhar, desde que sua riqueza fosse ‘devolvida’…”
E tem gente que não entende como foi possível para os globalistas enfiarem lockdowns, máscaras e veneno nas veias, em uma população dócil e crédula…