Jeffrey A. Tucker
[Jeffrey A. Tucker (tucker@mises.org) é vice-presidente editorial do Ludwig von Mises Institute.]
Ludwig von Mises acreditava que o tópico do polilogismo era importante o bastante para ser abordado ainda na introdução de Ação Humana:
O marxismo afirma que a forma de pensar de uma pessoa é determinada pela classe a que pertence. Toda classe social tem sua lógica própria…. Este polilogismo, posteriormente, assumiu várias outras formas. O historicismo afirma que a estrutura lógica da ação e do pensamento humano está sujeita a mudanças no curso da evolução histórica. O polilogismo racial atribui a cada raça uma lógica própria.[1]
Embora ele estivesse escrevendo em 1949, Mises já havia notado para onde as tendências estavam se encaminhando: o pensamento polilogista — a crença de que há uma multiplicidade de irreconciliáveis formas de lógica dentro da população humana, subdivididas em algumas características grupais — viria a se tornar uma característica predominante da ciência social moderna.
E, de fato, praticamente toda a política moderna se baseia de alguma forma nessa ideia. Falamos sobre interesses grupais não apenas quando nos referimos a classes, mas também nas áreas de raça, sexo, religião, aptidões, aparências e muito mais. Mesmo políticas ambientalistas podem ser entendidas nesses termos: que a própria natureza funciona de acordo com uma lógica distinta da lógica da população humana, de modo que estamos explorando a natureza a todo o momento e nem sequer sabemos disso.
Um ponto adicional sobre o polilogismo: acredita-se não apenas que exista uma variedade de formas de estrutura lógica no mundo, como também que essas formas de lógica criam um conflito, baseado na exploração, que é a base da sociedade e que necessita urgentemente de correção através de alguma intervenção externa. Assim, todas essas formas de polilogismo geram uma suposta necessidade de alguma ação social (estatal) para acomodar essas variedades de pensamento. Os exploradores devem ser derrubados, mesmo no caso do meio ambiente. Tão predominante é essa abordagem, que ela praticamente define toda a ciência social que é praticada atualmente no meio universitário.[2]
Tornando-se ciente de tudo isso ao ler Mises, o leitor pode ficar extremamente surpreendido ao ler a apresentação de Hans-Hermann Hoppe sobre as teses centrais da teoria de classes marxista e sua conclusão sumária: “Afirmo que todas elas, em sua essência, estão inteiramente corretas.”[3]
Como podemos explicar a aparente suavidade de Hoppe em relação à ideia marxista quando se sabe que Mises é tão completamente contrário a ela? Há uma resposta: o que Hoppe fez foi depurar o marxismo de suas presunções epistemológicas e reter apenas sua análise do mundo material. Isso nos permite absorver do marxismo várias constatações importantes ao mesmo tempo em que desconsideramos todo o seu polilogismo, e toda a retórica pérfida que gerou no passado e continua gerando no presente.
Um exemplo clássico do uso do polilogismo pode ser encontrado no livro Karl Marx and the Close of His System, de Eugen von Böhm-Bawerk[4], de 1896. Böhm-Bawerk oferece uma argumentação meticulosamente detalhada, que se estende por mais de 150 páginas, mostrando que Marx jamais conseguiu explicar completamente por que é que os bens não são precificados de acordo com a quantidade de trabalho contida neles, mas, ao contrário, o lucro do capital se dá em proporção à quantidade de capital investida. Tivesse Marx tentado explicar isso, como ele sempre prometeu que faria, imediatamente ficaria óbvio que toda a sua teoria da mais-valia é inteiramente contraditória em relação aos fatos reais. Este é um erro fatal na obra de Marx, pois ele não permite ao leitor testar de maneira lógica ou empírica sua alegação a respeito da mais-valia extraída pelo capitalista e não repassada aos trabalhadores.
Böhm-Bawerk adicionalmente escreve que o marxismo parece ter embutida no sistema a estratégia de desvirtuar qualquer tentativa de refutação. Toda discordância é rejeitada e desprezada com um tipo de argumento ad hominem, dizendo que o crítico é alguém irremediavelmente desvirtuado pelo pensamento burguês. “Seria muito pedir que, se ele quer introduzir interpolações subjetivas em seu sistema, estas devam ser corretas, bem fundamentadas e não contraditórias? E essa demanda razoável e sensata Marx continuamente não apenas ignorou como também contestou.” Esse foi o protesto de Böhm-Bawerk contra o uso de afirmações polilogistas embutidas nas táticas de defesa marxista.
O teórico marxista Rudolf Hilferding respondeu a Böhm-Bawerk de uma maneira que apenas ressaltou o problema com o polilogismo: ele fez exatamente aquilo que Böhm-Bawerk previu que um marxista faria. Ele desdenhou a fonte e, em um enfadonho e prolixo discurso, ignorou todos os críticos de Marx da mesma forma que o próprio Marx o fez. Em relação à minuciosa tentativa do grande Böhm-Bawerk de lidar com os detalhes da teoria marxista, Hilferding escreve:
Como porta-voz da burguesia, ele entra na discussão apenas nos pontos que a burguesia tem interesses práticos em defender. Nas batalhas econômicas e políticas da época, ele fielmente reflete o conflito de interesses das cabais dominantes, porém evita a tentativa de considerar a totalidade das relações sociais, pois sente corretamente que qualquer consideração desse tipo seria incompatível com a continuada existência do modelo econômico burguês.[5]
Hilferding ainda diz que o argumento de Böhm-Bawerk pode ser desconsiderado porque ele não lidou com o marxismo “em sua totalidade” como um sistema integral de pensamento que, é de se supor, deve ser aceito por fé. Enquanto Böhm-Bawerk fala sobre valores subjetivos, preços individuais e sua relação com o capital investido, Marx, segundo Hilferding, “considera a teoria do valor não como um meio de determinar preços, mas como o meio para descobrir as leis do movimento da sociedade capitalista”.
Escreve Hilferding:
Em vez de utilizar as relações econômicas ou sociais como o ponto de partida de seu sistema, eles escolheram para representar esse ponto de partida a relação individual entre homens e coisas. Eles consideram essa relação, desde uma perspectiva psicológica, como sendo sujeita a leis naturais e inalteráveis. Eles ignoram as relações de produção em sua determinação social, e a ideia de uma evolução das situações econômicas é estranha à mentalidade deles.[6]
A crítica de Hilferding pode ser resumida como sendo uma aplicação desse repúdio polilogista: como um membro da classe dominante apegado aos métodos burgueses de pensamento, Böhm-Bawerk simplesmente não é capaz de pensar da maneira correta sobre essas coisas. O pensamento marxista, o qual se resume inteiramente às leis da história e aos determinantes sociais que conduzem o mundo material, é estranho a ele simplesmente porque sua mente é incapaz de ver a verdade.
E essa continua sendo a base de vários argumentos políticos. É claro que hoje a retórica está em um nível muito mais baixo, porém essa é a maneira usual na qual a discussão política ocorre em nossa sociedade pós-marxista, em que as pressuposições polilogistas conduzem o debate. Por exemplo, é impossível os capitalistas entenderem a lógica do debate ambientalista, pois eles estão fora de sintonia com a natureza e suas necessidades. Os brancos não podem sequer tentar entender as demandas dos negros por privilégios e redistribuição, pois a experiência negra e sua maneira de pensar são estranhas à experiência branca e sua maneira de pensar. O mesmo é válido para questões relacionadas a sexo, sexualidade, religião e capacidades físicas.
Hoje é normal pressupor que um indivíduo não pode sequer se atrever a falar sobre as controvérsias de nossa época, caso ele não pertença ao “grupo oprimido” sendo discutido. Ainda assim, se uma mulher, ou um negro ou um gay oferecer um ponto de vista que vai contra a agenda política daqueles grupos poderosos que se pretendem porta-vozes da categoria, tal pessoa será desprezada como sendo alguém que, por algum motivo, não possui uma consciência mais elevada e que está irremediavelmente contaminada por uma mentalidade obscurantista. Ela não é uma mulher genuína, ele não é um negro genuíno, ele não é um gay genuíno, eles não são deficientes físicos genuínos, ele não representa a genuína visão do Islã etc.
O que está em jogo aqui é a desconstrução de toda a base para qualquer tipo de discussão intelectual. Se nós não conseguimos concordar em seguir regras universais para estabelecer a veracidade de alegações, então todas as discussões são reduzidas a uma série de demandas seguidas de ataques ad hominem a qualquer um que resista a essas demandas. O próprio Mises entendeu que, se quiséssemos evitar esse destino, teria de haver algum entendimento e concordância quanto às regras da lógica. George Koether relata[7] que Mises dizia a seus alunos que o primeiro livro de economia que eles deveriam ler era um livro sobre lógica escrito por Morris Cohen, um livro que, com efeito, é um dos últimos textos completos sobre lógica publicado para uso universal nas salas de aula universitárias.[8] Enquanto isso, crescem as reclamações de que atualmente a lógica como uma disciplina deixou de fazer parte do currículo do ensino médio ou até mesmo do ensino universitário, o que significa que, após 16 anos de estudo formal, é difícil encontrar algum estudante que tenha sido ensinado até mesmo as regras básicas sobre como pensar.
Esta é mais uma evidência de como esse aspecto específico do marxismo — seu ataque radical ao núcleo do pensamento lógico, um assunto que (junto com a gramática e a retórica) tem sido parte do “trivium” desde a Idade Média — triunfou no pensamento convencional atual, chegando a tal ponto que, caso algum professor seja suspeito de exigir que seus alunos se atenham a regras lógicas universais, e se recuse a aceitar o argumento do “interesse de classe” como uma verdade auto evidente, pode ser excluído do meio acadêmico meramente por ser defensor de opiniões “politicamente incorretas”.
A abordagem feita por Hoppe sobre o marxismo, entretanto, abstém-se totalmente da questão polilogista, e abraça princípios lógicos universais como o método essencial com o qual reaplicar a teoria política marxista em um contexto completamente diferente. Em seus escritos sobre a teoria de classes, Hoppe passa por toda a lista familiar: a história é definida pela luta de classes; a classe dominante possui um interesse em comum; o domínio de classe é definido por relações de propriedade que envolvem exploração; há uma tendência à centralização do interesse de classe; e a centralização e a expansão dos domínios exploradores levam a uma inevitável tentativa de dominação global. O que Hoppe está abordando aqui não é o polilogismo como tal, mas sim um aspecto mais restrito da política marxista e suas alegações a respeito das forças sociais da história. E ele afirma que todas estão, em sua essência, corretas. A base para essa afirmação de Hoppe reflete sua visão da teoria marxista da exploração, a qual ele considera correta em suas características analíticas, mas não em sua aplicação.
Hoppe lida com o erro da aplicação da teoria marxista de maneira rápida e decisiva. A visão marxista diz que é exploração o trabalhador trabalhar cinco dias e receber como salário o equivalente a apenas três dias do valor do produto que criou. E, ainda assim, é uma verdade incontestável dizer que os trabalhadores voluntariamente aceitam contratos salariais. Trata-se, portanto, de um tipo bastante estranho de exploração, uma que é mutuamente benéfica para ambas as partes, e que é praticada voluntária e alegremente por bilhões de pessoas diariamente. Os interesses do trabalhador e do capitalista são concordantes: o trabalhador prefere receber uma fatia menor de bens no presente do que uma fatia maior no futuro, ao passo que o capitalista possui a preferência oposta. Marx não enxergou isso porque foi incapaz de entender que é impossível trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto no valor.
Mas o que dizer quanto à teoria da exploração que realmente existe no mundo? Hoppe argumenta que ela é fornecida pela abordagem austro-libertária, e pode ser entendida tão logo compreendermos que a classe dominante é aquela que possui acesso aos poderes do estado. Essa abordagem advém da nova definição de exploração criada por Hoppe, a qual ocorre quando um indivíduo exitosamente adquire o controle parcial ou total de recursos escassos que ele não produziu, não poupou, não adquiriu por meio de contratos com seu proprietário/produtor anterior, ou dos quais ele não se apropriou originalmente. O estado pode ser visto como uma empresa totalmente voltada à prática da exploração nesse sentido do termo. Essa exploração cria vítimas, que podem derrubar seus exploradores tão logo elas se tornarem conscientes da possibilidade de uma sociedade livre de exploração, na qual a propriedade privada é universalmente respeitada ao invés de ser sistematicamente violada por uma classe dominante.
O que é interessante nessa abordagem hoppeana da teoria marxista, e sua remodelação à luz da teoria austro-libertária, é que ela contorna completamente o núcleo polilogista da teoria marxista. Não há necessidade de postular que os exploradores e os explorados estão, de alguma forma, socialmente programados a pensar de maneira distinta, usando princípios lógicos irreconciliáveis. Muito pelo contrário: a abordagem de Hoppe assume a aplicabilidade universal de um único conjunto de princípios lógicos.
Eis aqui o principal ponto de partida, um que esclarece a aparente diferença entre Mises e Hoppe, e ressalta uma importante agenda ideológica para o futuro. De quais maneiras a reconstrução hoppeana do marxismo se aplica aos desdobramentos modernos do marxismo? Tão logo removemos a suposição polilogista que fundamenta a política atual, podemos ver que várias relações de grupos de interesse são de fato caracterizadas exatamente por esse tipo de exploração descrita por Hoppe. E são precisamente as leis e a legislação que tornam possível esse tipo de exploração. Leis que privilegiam uma raça, uma religião, um sexo ou uma classe de aptidões geram um grupo de vítimas nas categorias não privilegiadas, e consolidam uma forma de solidariedade coletiva que antes poderia existir no máximo em forma muito embrionária. Ao passo que diferenças entre grupos podem ser resolvidas por meio de trocas, comércio e mercado, a entrada do estado para “arbitrar” essa relação amplifica e institucionaliza o conflito entre grupos.
Isso é verdade no que concerne, por exemplo, à sexualidade. Uma vez que o estado começa a subsidiar a manifestação de uma determinada forma de preferência sexual, ele faz com que os indivíduos possuidores de outras preferências sexuais tenham a impressão de que estão sendo pilhados ou explorados de alguma forma, e o único método de defesa é se organizar e unir para impedir que tal exploração continue. Essa tendência pode se tornar especialmente explosiva quando envolve assuntos como raça e sexo, porém os conflitos também surgem em outras áreas, como legislação ambiental e legislação pró-deficientes.
Da mesma forma que a exploração subsidiada pelo estado levou Marx a perceber, porém diagnosticar erroneamente, a natureza da exploração em sua época, várias formas atuais de exploração estatal podem levar as pessoas a adotar credos anticapitalistas baseando-se em um diagnóstico errado quanto às raízes dos conflitos envolvendo raça, sexo, religião, aptidões e meio ambiente. Não é verdade que grupos demográficos distintos estarão sempre em conflito, como se essa fosse uma característica inerente a eles; essa ilusão é criada pela ausência daquilo que Hoppe chama de “capitalismo limpo”, em que todas as relações da sociedade são caracterizadas por associações e trocas voluntárias.
Parte desse erro de diagnóstico leva as pessoas a abraçarem uma abordagem polilogista da estrutura da mente humana. Porém, tão logo a estrutura hoppeana da exploração e do conflito se torna clara, não há necessidade de se recorrer a explicações complicadas para abordá-los. O problema fundamental não está embutido de alguma forma na diversidade de estruturas lógicas operando no mundo; a explicação para os conflitos na sociedade está enraizada em uma causa muito mais direta e simples: o próprio estado.
Desta forma, portanto, a teoria hoppeana do conflito social tem o potencial não apenas de acabar com as velhas políticas marxistas e seus efeitos destrutivos para o mundo, mas também de derrubar e extirpar toda a base polilogista das ciências sociais da forma como se desenvolveram nos últimos cem anos — e todo o aparato de intervencionismo estatal que resultou delas.
Quanto a isto ser possível, tudo se resume à pergunta sobre o que é mais fundamental para a visão de mundo marxista: seu polilogismo ou sua teoria da exploração? O principal objetivo do projeto hoppeano é descartar o primeiro ao mesmo tempo em que retém uma versão da última, de forma que esta possa ser utilizada contra o estado e seus interesses.
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Notas
[1] Ludwig von Mises, Human Action, Scholar’s Edition (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1998 [1949]), p. 5.
[2] Meu amigo B.K. Marcus resume toda a sua experiência universitária como sendo “quatro anos de defesa do polilogismo”.
[3] Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2006), pp. 117–38.
[4] Eugen von Böhm-Bawerk, Karl Marx and the Close of His System (Nova York: Augustus M. Kelley, 1949).
[5] Ibid., p. 121.
[6] Ibid., pg. 196.
[7] Austrian Economics Newsletter 20, no. 3 (Outono de 2000).
[8] Morris Cohen, An Introduction to Logic and Scientific Method (Nova York: Read Books, 2007); publicado originalmente em 1934.