Thursday, November 21, 2024
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Por que os austríacos enfatizam a utilidade ordinal

David Friedman postou recentemente uma crítica à economia austríaca da tradição rothbardiana. Em seu ensaio, Friedman repete uma afirmação que já tinha feito antes – a saber, que os economistas costumavam concordar com os austríacos que a utilidade era ordinal, mas após a publicação do trabalho de John von Neumann e Oskar Morgenstern sobre teoria dos jogos em 1947, foi reconhecido que a utilidade afinal era cardinal. (Para evitar confusão, Friedman tem outras razões para acreditar que a utilidade também é cardinal, incluindo apelos intuitivos à experiência cotidiana.)

No presente artigo, explicarei primeiro o que significa os austríacos dizerem que a utilidade é ordinal e, em seguida, examinarei a contribuição de von Neumann e Morgenstern. Como veremos, sua estrutura nem arranha a antiga visão austríaca de que, na teoria econômica, a utilidade é de fato ordinal.

Por que os austríacos afirmam que a utilidade é ordinal

Os números ordinais envolvem uma classificação, como 1º, 3º, 8º e assim por diante. Em contraste, os números cardinais são tipo 2, 19, 34,7 e assim por diante. Você pode realizar operações aritméticas nos números cardinais, mas não faz sentido empregá-las nos números ordinais. Por exemplo, o número cardinal 3 é três vezes maior que o número cardinal 1. Com os números ordinais, também podemos dizer que “primeiro” é melhor que “terceiro”, mas não podemos dizer que é três vezes melhor; esse tipo de afirmação não é apenas errado, mas nem sequer faz sentido.

Na história da economia, uma grande inovação ocorreu no início da década de 1870, quando três pensadores – a saber, Carl Menger, William Stanley Jevons e Léon Walras – desenvolveram independentemente o que hoje chamamos de teoria da utilidade marginal subjetiva. Isso substituiu a antiga abordagem clássica de preço e valor, que se baseava em uma teoria objetiva do custo (ou trabalho). Às vezes as pessoas ficam surpresas ao ouvir isso, então vale a pena enfatizar: a teoria do valor-trabalho não foi uma invenção de Karl Marx, mas na verdade foi adotada (de várias formas) por alguns dos líderes da economia pró-mercado, incluindo o célebre Adam Smith.

Outra reviravolta surpreendente é que, se você ler as obras originais que deram início à Revolução Marginalista, incluindo as dos austríacos Menger e Eugen von Böhm-Bawerk, verá que eles usam exemplos ilustrativos envolvendo quantidades cardinais de utilidade. No entanto, no início do século XX, os economistas desenvolveram a teoria do preço padrão e sua explicação do comportamento do consumidor sem apelar à utilidade como uma magnitude cardinal e psíquica. (Os leitores interessados ​​podem consultar o primeiro capítulo da obra Value and Capital, de John Hicks, de 1939, para conhecer os detalhes dessa evolução do pensamento.)

Conforme exposto, por exemplo, por Murray Rothbard em sua obra clássica Homem, Economia e Estado, a utilidade é simplesmente o conceito que os economistas usam para explicar a escolha. Ou seja, se um certo bem X dá a João mais utilidade do que um bem diferente Y, tudo o que queremos dizer é que, se confrontado com uma escolha entre os dois, João escolheria X em vez de Y. Quando eles falam dessa maneira, os economistas austríacos não estão sugerindo que há uma magnitude psíquica de “utils” que João está tentando maximizar; tudo o que queremos dizer é que João prefere X a Y. Isso é tudo o que os austríacos querem dizer – e nada mais – quando dizem equivalentemente: “João obtém mais utilidade de X do que de Y”.

Como a utilidade está, em última análise, ligada à escolha, ela só pode ser expressa como uma classificação. Tudo o que podemos concluir das ações de alguém é que unidades específicas de diferentes bens são classificadas em uma determinada ordem. Se hipoteticamente soubéssemos que João escolheria baunilha em vez de chocolate e chocolate em vez de pistache, então saberíamos o primeiro, segundo e terceiro itens em sua classificação de sabores de sorvete.[1] Mas não poderíamos dizer que a preferência de João por baunilha em vez de chocolate é maior do que sua preferência por chocolate em vez de pistache.[2] Repetindo, isso seria tão absurdo quanto argumentar que a diferença entre o primeiro e o segundo é maior (ou menor, ou a mesma) que a diferença entre o segundo e o terceiro.

Como analogia, muitas vezes invoco a amizade. Faz sentido classificar seus amigos: Maria é sua melhor amiga, Sandra é sua segunda melhor amiga, Tânia é sua terceira melhor amiga e assim por diante. Mas seria absurdo afirmar que sua amizade com Maria é 38% maior do que sua amizade com Sandra. É semelhante quando os austríacos tratam da utilidade.

Finalmente, a abordagem austríaca da utilidade definitivamente exclui comparações interpessoais. Não faz absolutamente nenhum sentido perguntar se um dólar dá mais utilidade a um homem pobre do que a um homem rico, porque utilidade tem a ver com explicar (ou interpretar) as ações ou escolhas de um indivíduo. Não é a invocação do economista de uma magnitude psíquica que poderia, pelo menos em princípio, ser medida e comparada entre diferentes indivíduos.

E quanto a Senso Comum?!

Às vezes, as pessoas — até mesmo outros economistas — não acreditam que os austríacos neguem a possibilidade de comparações interpessoais de utilidade. “Você realmente quer me dizer”, exclamam eles, “que você não sabe se um homem faminto obtém mais utilidade de um sanduíche do que um homem adormecido obtém de veneno de rato?”

O problema aqui é que essa abordagem usa a palavra “utilidade” no sentido cotidiano, em vez do sentido formal que os austríacos usam na teoria econômica. Para repetir, “mais utilidade” no uso austríaco é simplesmente uma maneira equivalente de dizer “escolheria a alternativa”. Portanto, não é que os austríacos não saibam se o homem faminto obtém mais utilidade do sanduíche do que o homem adormecido obtém do veneno de rato; em vez disso, os austríacos dizem que tal afirmação não faz sentido. Seria como perguntar se um arco-íris tem mais ansiedade do que o número 7.

Podemos ver essa distinção (talvez confusa) entre uma definição formal e técnica e um uso intuitivo e cotidiano do campo da física. (Walter Block originalmente veio com essa analogia.) Em física, diríamos que uma pessoa que pega uma pena do chão e a levanta até a altura do peito realiza mais trabalho do que alguém que segura um peso de 22 quilos na altura do peito. por dez minutos. Mas na linguagem cotidiana, todos concordamos que é preciso “mais trabalho” para segurar o peso do que para levantar a pena. Isso ocorre porque, para os físicos, “fazer trabalho” significa que aplicamos uma força em um corpo e este sofre um deslocamento, enquanto em termos leigos “fazer trabalho” significa “fazer esforço” ou “realizar uma tarefa intrinsecamente desagradável”.

Da mesma forma, quando as pessoas invocam o bom senso para dizer que “a criança pequena obtém mais utilidade do carrinho de brinquedo do que a criança mais velha”, estão invocando um conceito diferente do formal que os austríacos têm em mente ao discutir a teoria da utilidade. Se alguns economistas quiserem tentar vincular essa noção intuitiva e de senso comum de felicidade psíquica com suas teorias formais de determinação de preços e valor de mercado, eles podem tentar. Mas o aparato da teoria do preço e da teoria da utilidade marginal subjetiva, conforme apresentado por Rothbard, por exemplo, não precisa se basear em tais noções intuitivas.

Teoria da Utilidade Esperada de Von Neumann e Morgenstern

O polímata John von Neumann e o economista austríaco (por geografia) Oskar Morgenstern escreveram um trabalho pioneiro em teoria dos jogos, especializado nos chamados jogos de soma zero. Na segunda edição de seu trabalho (publicado em 1947), eles produziram um resultado muito elegante: se a classificação ordinal de loterias de um indivíduo sobre os resultados possíveis (ou prêmios) obedecesse a certos axiomas plausíveis, então o indivíduo sempre escolheria entre loterias tais que ele parecia estar maximizando a expectativa matemática de uma função de utilidade cardinal em que cada prêmio recebesse um número específico.

Por causa do resultado de von Neumann e Morgenstern, muitos economistas (incluindo David Friedman, como vimos acima) concluíram que a insistência anterior na utilidade ordinal está claramente ultrapassada. No entanto, o resultado de von Neumann e Morgenstern não faz nada para alterar o argumento preexistente da utilidade ordinal, como agora argumentarei.

Em primeiro lugar, os axiomas necessários para satisfazer seu teorema são falsificados na experiência cotidiana. Por exemplo, o chamado paradoxo de Allais é um exemplo popular em que a maioria das pessoas, quando confrontadas com algumas loterias hipotéticas sobre diferentes quantias de dinheiro, classificaria as loterias de uma forma que viola os axiomas de von Neumann e Morgenstern, tornando impossível atribuir números cardinais à utilidade das quantias em dólares subjacentes.

Mas, de forma mais geral, a teoria da utilidade esperada de von Neumann e Morgenstern simplesmente diz que se as classificações ordinais de alguém obedecem a certas regras, então podemos modelar as escolhas da pessoa “como se” a pessoa tivesse magnitudes cardinais atribuídas aos elementos constituintes da escolha. No entanto, isso não é a mesma coisa que dizer que realmente existe uma magnitude cardinal de algo que o escolhedor está buscando maximizar.

Uma analogia pode ser útil neste ponto. Suponha que estamos considerando as escolhas de uma pessoa entre vários pacotes de moeda dos EUA consistindo de moedas e notas. Ou seja, queremos presentear uma pessoa com coisas como “duas notas de 20 dólares e três moedas de dez centavos” versus “cinco notas de 10 dólares e quatro centavos”, e sempre saber qual dessas alternativas a pessoa preferiria.

Começando com o conjunto completo de classificações de preferência ordinal da pessoa entre quaisquer duas combinações possíveis de moeda americana (talvez com um limite de US$1.000 no valor total, para manter nossas classificações finitas), poderíamos então provar um teorema: se as classificações ordinais da pessoa exibissem certas características plausíveis, então poderíamos modelar suas escolhas “como se” estivessem maximizando o valor financeiro total da cesta. Especificamente, poderíamos atribuir um valor de, digamos, “1 util” a um centavo, então definir o valor de 5 centavos como 5 utils, o valor de uma moeda de dez centavos como 10 utils, o valor de uma nota de $20 como 2.000 utils e assim por diante. Então nossa pessoa parece estar maximizando uma função de utilidade cardinal sempre que se depara com uma escolha entre dois conjuntos diferentes de moeda.

Nesta demonstração hipotética, teríamos realmente “provado” a existência da utilidade cardinal? Claro que não! Em primeiro lugar, no mundo real as pessoas violariam nossos “axiomas” o tempo todo. Por exemplo, alguém que queira usar uma máquina de venda automática pode preferir três moedas de 25 centavos em vez de uma nota de dólar, mesmo que a última tenha 100 utils enquanto a primeira tenha apenas 75 utils. Essa pessoa parece se comportar “irracionalmente” de acordo com nossa “teoria da maximização de um centavo”, mas na realidade entendemos por que a pessoa pode escolher três moedas de 25 centavos em vez da nota de um dólar.

No entanto, além desse tipo de consideração, mesmo em seus próprios termos, realmente não provamos que faz sentido atribuir 1 util a um centavo, 5 utils a 5 centavos e assim por diante. Por um lado, poderíamos facilmente atribuir 2 utils a um centavo, 10 utils a 5 centavos e assim por diante, e obter o mesmo resultado. Na estrutura de von Neumann e Morgenstern, eles admitem que as funções de utilidade cardinais são únicas apenas “até uma atribuição positiva de valores finitos a grandezas finitas”, de modo que deveria ter cortado pela raiz a noção de que estávamos realmente lidando com quantidades psíquicas subjacentes que governavam as escolhas humanas.

O último ponto que farei diz respeito à tentativa de resposta ao meu argumento. Especificamente, os defensores da afirmação de que von Neumann e Morgenstern provaram a existência de utilidade cardinal dirão que, quando se trata de temperatura, também aqui as magnitudes relatadas não são únicas. Por exemplo, a água congela a 32 graus Fahrenheit, 0 graus Celsius ou 273,15 graus Kelvin. Mas todos concordamos que a temperatura é uma magnitude cardinal. Então, o que os austríacos têm a dizer?

No entanto, aqui, a razão pela qual concordamos que a temperatura é cardinal é que ela se relaciona a um fenômeno físico subjacente do empurrão das moléculas. Em particular, há uma temperatura zero absoluta (que é calibrada para zero na escala Kelvin), que corresponde a zero movimento físico (exceto para efeitos quânticos). Em contraste, dizemos que um morto tem utilidade zero? E quanto a alguém sendo torturado, ele tem ainda menos utils?

Essas considerações devem demonstrar que os austríacos ainda estão em terreno sólido ao afirmar que, na teoria formal, a utilidade é um conceito ordinal. Mesmo os elegantes resultados de von Neumann e Morgenstern não anulam esse fato.

 

Artigo original aqui

Leia também

Reconstruindo a Economia de Bem-estar e de Utilidade

Hoppe numa única lição, ilustrada na economia de bem-estar

________________________

Notas

[1] Observe que estamos falando aqui de uma classificação hipotética e instantânea dos três sabores. Na prática, tudo o que poderíamos fazer é observar João escolhendo um sabor específico dentre um determinado conjunto de opções. Por exemplo, se observássemos João escolhendo baunilha em vez de chocolate, depois o observássemos escolhendo chocolate em vez de pistache e, um pouco mais tarde, o observássemos escolhendo pistache em vez de baunilha, isso não seria evidência de “irracionalidade” por causa de uma suposta intransitividade de preferências. Em vez disso, o austríaco diria que as preferências de João mudaram entre as escolhas, que estavam necessariamente ocorrendo em momentos diferentes. (Ou também pode-se argumentar que as escolhas anteriores influenciaram as posteriores, pois talvez João tenha enjoado de baunilha etc.)

[2] Em suas discussões com alguns de nós por e-mail, David Friedman levantou uma excelente objeção: não poderíamos ao menos concluir que a preferência de João por baunilha sobre pistache é maior do que sua preferência por baunilha sobre chocolate? Confesso que nunca tinha considerado essa pergunta inteligente antes. No entanto, mesmo em seus próprios termos, levanta a questão: Maior em que sentido? Qual é a magnitude subjacente cuja grandeza estamos discutindo? Além disso, na prática real, nunca poderíamos observar João fazendo essas escolhas distintas entre três ou mais itens.

Robert P. Murphy
Robert P. Murphy
Robert P. Murphy é Ph.D em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market É também dono do blog Free Advice.
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1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo!

    A revolução marginalista é sem dúvida o que faz da Escola de economia austríaca ser a teoria econômica por definição.

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