Thursday, November 21, 2024
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Em defesa do revisionismo (e contra uma história a priori)

[A tarefa do intelectual libertário não se limita à teoria política e econômica, como este ensaio negligenciado de Murray Rothbard argumenta. Também se estende à compreensão da história, não do ponto de vista do Estado e da classe dominante, ou de teorizações a priori, mas olhando para os fatos brutos em questão. Fazer isso produz resultados diferentes da opinião prevalecente e, portanto, tem sido chamado de revisionismo por seus detratores e apoiadores. Este ensaio que define o revisionismo e apoia seu método foi retirado do The Libertarian Forum, de fevereiro de 1976, página 3-6, publicado como “Revisionism and Libertarianism”.]

 

O que o revisionismo tem a ver com o libertarianismo? Muitos libertários não veem nenhuma conexão. Embebidos na teoria do axioma da não agressão e de que o Estado sempre foi o maior agressor, esses libertários não veem necessidade de se preocupar com os detalhes sujos dos delitos e inter-relações entre Alemanha, Rússia, Grã-Bretanha, Estados Unidos, e outros estados particulares. Se todos os Estados são maus, por que se preocupar com os detalhes?

A primeira resposta é que a teoria não é suficiente para lidar com o mundo concreto da realidade. Se todos os Estados são maus, alguns são mais perversos do que outros, alguns Estados em particular se envolveram em uma agressão enormemente maior, tanto internamente contra seus súditos quanto externamente contra cidadãos de outros Estados. O Estado de Mônaco cometeu muito menos agressão do que o Estado da Grã-Bretanha.

Se nós, libertários, queremos compreender o mundo real e tentar alcançar a vitória da liberdade nesse mundo, devemos compreender a história real dos Estados existentes e concretos. A história fornece os dados indispensáveis ​​pelos quais podemos compreender e lidar com nosso mundo, e pelos quais podemos avaliar a culpa relativa, os graus relativos de agressão cometidos pelos vários estados. Mônaco, por exemplo, não é um dos nossos maiores problemas neste mundo, mas só podemos aprender isso com o conhecimento da história, e não com axiomas a priori. Mas é claro que aprender sobre a realidade concreta exige trabalho, não apenas uma quantidade substancial de leitura, mas também leitura com os elementos básicos do revisionismo em mente. Trabalho que investiga as complexidades da história e que não é facilmente redutível a frases de efeito e slogans.

O revisionismo é uma disciplina histórica tornada necessária pelo fato de que todos os Estados são governados por uma classe dominante que é uma minoria da população e que subsiste como um fardo parasitário e explorador sobre o resto da sociedade. Visto que sua regra é exploradora e parasitária, o Estado deve obter a aliança de um grupo de “Intelectuais da Corte”, cuja tarefa é enganar o público para que aceite e celebre a regra de seu Estado particular. Os Intelectuais da Corte defrontar-se com um grande desafio. Em troca de seu trabalho contínuo de apologética e trapaça, os Intelectuais da Corte conquistam seu lugar como sócios minoritários no poder, no prestígio e na pilhagem extraídos do público iludido pelo aparato de Estado.

A nobre tarefa do Revisionismo é desemaranhar: penetrar na névoa das mentiras e enganos do Estado e de seus Intelectuais da Corte e apresentar ao público a verdadeira história da motivação, da natureza e das consequências da atividade do Estado. Ao operar além da névoa de mentiras do Estado para penetrar na verdade, na realidade por trás das falsas aparências, o revisionista age para deslegitimar, dessanctificar, o Estado aos olhos do público previamente enganado. Ao fazer isso, o revisionista, mesmo que ele não seja um libertário pessoalmente, executa um serviço libertário de vital importância.

Consequentemente, o historiador revisionista executa tarefas libertárias cruciais independentemente de sua ideologia pessoal. Visto que o Estado não pode funcionar, não pode comandar o apoio da maioria vital para sua existência sem impor uma rede de embuste, a história revisionista se torna uma parte crucial das tarefas do movimento libertário. Crucial especialmente porque o revisionismo vai além da teoria pura para expor e revelar as mentiras e crimes específicos do Estado como ele existe na realidade concreta.

O revisionismo pode ser “doméstico”; assim, os historiadores revisionistas nos últimos anos mostraram que o crescimento do Estado americano no século XX ocorreu, não em uma tentativa “democrática” de conter o “monopólio” das grandes indústrias, mas no curso de um desejo consciente de certos elementos das grandes indústrias para usar o Estado para sedimentar uma economia cartelizada e monopolizada na sociedade americana.

Os historiadores revisionistas mostraram ainda que o Estado de “bem-estar” social prejudica, ao invés de beneficiar, os próprios grupos que tal Estado supostamente ajuda e socorre. Em suma, que o Estado de bem-estar social é projetado para ajudar a coalizão dominante de certos grupos de grandes indústrias e intelectuais tecnocráticos e estatistas, às custas do restante da sociedade. Se o conhecimento de tal verdade histórica se generalizasse, seria de fato difícil para o Grande Governo moderno se manter em operação.

Embora o revisionismo histórico tenha prestado serviços importantes no front doméstico, seu principal impulso tratou da guerra e da política externa. Por mais de um século, a guerra foi o principal método pelo qual o Estado firmou seu domínio sobre um público iludido. Tem havido muita discussão ao longo dos anos entre os libertários e liberais clássicos sobre por que o liberalismo clássico, tão dominante no início e meados do século XIX na Europa Ocidental e nos EUA, fracassou ignominiosamente na época do advento do século XX. A principal razão está agora clara: a capacidade do Estado de manejar o patriotismo como arma, de mobilizar as massas do público por trás das políticas intervencionistas e de guerra dos vários Estados poderosos.

A guerra e a intervenção estrangeira são métodos cruciais pelos quais um Estado expande seu poder e exploração, e também fornecem elementos de perigo para um Estado nas mãos de outro. No entanto, o Estado – todos os Estados – tem sido particularmente bem-sucedido em iludir seus cidadãos de que luta em guerras e intervém em outros países para a proteção e benefício deles; quando a realidade é que a guerra oferece uma oportunidade de ouro para o Estado enganar seus cidadãos para que se juntem para defendê-lo e fazer avançar seus interesses e seu poder. Visto que a guerra e a política externa fornecem ao Estado seu meio mais fácil de ilusão e engano, a exposição revisionista no front das relações exteriores é a via mais importante de dessantificação e deslegitimação do aparato do Estado e da agressão do Estado.

Na exposição revisionista das verdades sobre as relações exteriores, um mito particular, fortemente defendido pela maioria dos americanos e até mesmo pela maioria dos libertários, foi de suprema importância: ‘a saber, o mito propagado pelo arqui-estatista e intervencionista Woodrow Wilson de que “ditaduras domésticas são sempre inflexíveis quanto à guerra e agressão externa; enquanto as democracias domésticas invariavelmente conduzem uma política externa pacífica e não agressiva. Embora essa correlação entre a ditadura doméstica e a agressão estrangeira tenha uma plausibilidade superficial, ela simplesmente não é verdadeira no registro factual e histórico.

Muitas ditaduras domésticas se voltaram contra si mesmas e, portanto, foram pacíficas nas relações externas (por exemplo, o Japão antes de sua “abertura” compulsória em meados do século XIX pelo Comodoro Perry dos EUA); e muitas “democracias” domésticas conduziram uma política externa belicosa e agressiva (por exemplo, Grã-Bretanha e os Estados Unidos). A existência de voto democrático, longe de ser uma barreira contra a agressão estrangeira, simplesmente significa que o Estado deve conduzir sua propaganda de forma mais intensa e inteligente, para enganar os eleitores. Infelizmente, o Estado e seus Intelectuais da Corte têm cumprido muito bem essa tarefa.

Na história das relações exteriores, portanto, a história a priori simplesmente não funciona; não há nada a fazer a não ser engajar-se em uma investigação histórica detalhada e concreta das guerras e agressões de determinados Estados, tendo em mente que o histórico da política externa das “democracias” precisa de ainda mais desmoralização do que a conduta externa das ditaduras. Não há como deduzir graus relativos de culpa pela guerra e pelo imperialismo a partir de axiomas libertários ou do simples grau de ditadura interna em qualquer país em particular. O grau de culpa pela guerra ou pelo imperialismo é uma questão puramente probatória, e não há como escapar da tarefa de examinar atentamente as evidências.

O resultado de um olhar empírico tão frio para as evidências, para a história de determinados Estados no mundo moderno, está fadado a ser um choque para os americanos criados dentro da mitologia das relações exteriores proposta pelos Intelectuais da Corte da mídia e do nosso sistema educacional. Nomeadamente, que o maior agressor, o maior imperialista e incitador de guerras, no século XIX e ao longo da primeira metade do século XX, foi a Grã-Bretanha; e, ainda, que os Estados Unidos se alistaram, durante a Primeira Guerra Mundial, como um parceiro júnior do Império Britânico, apenas para substituí-lo como a maior potência imperial e incitadora de guerras após a Segunda Guerra Mundial.

A ideologia wilsoniana é simplesmente um mito pernicioso, especialmente quando aplicado à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos no século XX, e os libertários devem simplesmente se preparar para desaprender esse mito e entrar em sintonia com a verdade histórica. Uma vez que os libertários conseguirem desaprender muitos dos mitos domésticos promulgados pelo Estado americano, espera-se que eles possam desaprender em seus corações também o difuso mito da política externa. Só então o liberalismo clássico, e ainda mais o libertarianismo pleno, será capaz de alcançar um Renascimento completo no mundo ocidental, e especialmente nos EUA.

O maior embuste do Estado americano (e britânico), então, é sua política externa supostamente defensiva e pacifista. Quando os revisionistas afirmam, portanto, que a maior culpa pela guerra e pelo imperialismo no século XX pertence aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha, eles não estão necessariamente sustentando que os vários inimigos dos Estados Unidos foram domesticamente e internamente menos ditatoriais ou agressivos do que o governo dos Estados Unidos.

Certamente, os revisionistas libertários não sustentam esta tese. Nenhum libertário afirmaria que a política interna da União Soviética, da China comunista, da Alemanha nazista ou mesmo da Alemanha do Kaiser Wilhelm era menos despótica do que a da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. Pelo contrário. Mas o que os revisionistas libertários, assim como outros, afirmam é que os EUA e a Grã-Bretanha foram, como uma questão de fato empírico, os principais agressores e promotores da guerra em cada uma dessas guerras e conflitos específicos. Tais verdades podem ser desagradáveis ​​para “historiadores” a priori, mas são fatos da realidade, no entanto.

Além disso, como indicado acima, é precisamente o uso da guerra e da mitologia da guerra que levou à aceleração do estatismo doméstico nos EUA e na Grã-Bretanha neste século. Na verdade, todo avanço significativo do estatismo americano ocorreu no curso de uma de suas guerras alegadamente “defensivas”. A Guerra Civil aniquilou os direitos dos estados e gerou um sistema bancário inflacionário e estatista, um regime de altas tarifas e subsídios às ferrovias e impostos federais sobre a renda; A Primeira Guerra Mundial inaugurou o planejamento moderno e o Estado da Guerra do Bem-Estar do “New Deal” nos EUA; e a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria completaram essa tarefa e levaram ao atual Grande Governo Leviatã sob o qual sofremos hoje.

É altamente relevante e vital para a compreensão do florescente Estado americano saber que cada uma dessas consequências não foram acidentes infelizes provocados por “agressores” estrangeiros, mas o resultado de uma política agressiva e bélica consciente e deliberada promovida pelo Estado americano.

O revisionismo, portanto, nos revela com toda a sua severidade que o Estado Inimigo dos Estados Unidos está puramente em casa e não no exterior. Os Estados estrangeiros serviram apenas como bodes expiatórios para o engrandecimento do poder do Estado americano em casa e no exterior, sobre os cidadãos nacionais e os povos estrangeiros. O Inimigo não é um bicho-papão estrangeiro, mas está aqui entre nós. Somente a compreensão total dessa verdade por libertários e outros americanos pode nos permitir identificar os problemas que enfrentamos e prosseguir para garantir a vitória da liberdade. Antes de vencermos nossos inimigos, devemos saber quem eles são.

Para defender suas depredações, o Estado americano pôde, com a ajuda de seus Intelectuais da Corte, empregar uma poderosa arma de propaganda para silenciar seus oponentes e iludir ainda mais seu público. Nomeadamente, para rotular os críticos das suas políticas imperialistas e de guerra como agentes conscientes ou inconscientes ou simpatizantes das políticas internas dos seus vários inimigos de Estado.

E assim, ao longo deste século, os revisionistas, mesmo revisionistas libertários, têm sido continuamente acusados ​​de serem ferramentas ou simpatizantes do Kaiser, dos nazistas ou dos comunistas – às vezes todos de uma vez ou seriatim. Nesta era pós-wilsoniana, mesmo os libertários a priori foram enganados para jogar os libertários revisionistas no mesmo saco.

Mesmo a imbecilidade de pensar por um momento que um libertário pode realmente ser um nazista ou comunista não impediu os libertários enganados de difamar e denegrir seus colegas mais clarividentes. O que é necessário acima de tudo é abandonar a mitologia pós-wilsoniana e a história a priori da propaganda americana do século XX, e perceber que o rei (americano) realmente está nu. As penetrantes verdades do revisionismo são necessárias para desemaranhar os libertários junto com outros americanos.

 

Artigo original aqui

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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1 COMENTÁRIO

  1. Não é nenhuma hipérbole chamar Murray Rothbard de gênio. A minha definição é bem precisa: existem muitos papagaios por aí com um discurso denso, sofisticado e articulado. São indivíduos com uma vasta cultura. Ficaria difícil não coloca-los ao lado de Rothbard, Herr Hoppe, Mises, Menger e o pessoal do Alabama. Acreditem, Lenin era um gênio, Marx, Gramsci, Marcuse… De maneira que a grosso modo nós temos ciência contra ciência. O que fazer? Simples: os gênios de verdade, e não embusteiros que falam pelos cotovelos, NUNCA terminam seu discurso apelando para a violência agressiva. De maneira que tudo fica mais claro quando percebe-se que tudo resume-se à uma disputa entre moralistas e utilitaristas.

    Esse assunto do revisionismo é crucial. Algo que sempre me incomodou era justamente a existência de algumas verdades absolutas sobre a história. Os mesmos que diziam que não se escreve história de maneira isenta – ainda que se possa faze-la de maneira honesta, eram justamente os mesmos a atacar qualquer um que somente fizessem somente perguntas. Que tipo de conhecimento pode se sustentar com cães de guarda que defendem suas “teoria” a chutes e pontapés?

    Quando as putinhas do sistema escreverem sobre este período, essas alopradas ja terão seus nazistas definidos, os quais chamarão de negacionistas. Qualquer um que tentar mudar isso serão chamados de revisionistas. Aqui o critério de um libertário do futuro torna-se simples: existiam no passado dois grupos: pandemions e negacionistas. Quem usava a violência para justificar sua ciência?

    O mais notável da ética-jurídica e moral libertárias é que elas são universais, atemporais e onipresentes. Ou seja, eu posso saber o que é certo e errado em qualquer civilização, no passado, presente e futuro ou em Marte. E isso somente levando em consideração violações injustas de propriedade privada. Essa simplicidade é um ataque e incomoda aqueles que defendem a violência como forma de se atingir a paz social.

    É curioso, considerando que Rothbard tinha proximidade com os liberais clássicos, poder afirmar que o antigo liberalismo seria uma transição para o libertarianismo, da mesma forma que o socialismo seria para o comunismo. Em ambos os casos a coisa desandou… o que nos sobrou foram os liberaloides do estado mínimo…

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