[Este artigo foi apresentado como uma palestra proferida na conferência Property and Freedom Society em Bodrum, Turquia no dia 19 de setembro de 2021]
“O Libertarianismo é logicamente consistente com quase qualquer atitude em relação a cultura, sociedade, religião ou princípio moral. Em estrita lógica, a doutrina política libertária pode ser separada de todas as outras considerações; logicamente se pode ser, e de fato a maioria dos libertários são: hedonistas, libertinos, imoralistas, inimigos militantes das religiões em geral e do cristianismo em particular, e ainda ser adeptos consistentes das políticas libertárias. De fato, em estrita lógica, pode-se ser politicamente um devoto consistente dos direitos de propriedade e ser um vagabundo, um trapaceiro e um vigarista mesquinho e um mafioso na prática, como todos os muitos libertários vêm a ser. Estritamente na lógica, podem-se ser essas coisas, mas psicologicamente, sociologicamente e na prática simplesmente não funciona assim.” [Ênfase minha, HHH] – Murray Rothbard, “Big-Government Libertarians”, em: L. Rockwell, ed., The Irrepressible Rothbard, Auburn, Al: Ludwig von Mises Institute, 2000, p. 101
Uma parte considerável de meus escritos nos últimos anos tem se preocupado com esta última meia frase de Rothbard e suas implicações mais amplas. No centro da doutrina libertária estão as ideias de propriedade privada, de sua aquisição original e sua transferência, e o princípio correspondente de não agressão. E, de fato, pode-se afirmar com segurança que o reconhecimento dessas ideias e princípios é um requisito necessário da sociedade humana, das pessoas que vivem juntas e cooperam umas com as outras em paz. Com a mesma certeza, no entanto, o reconhecimento e a adesão a essas ideias e princípios não são suficientes para a convivência, ou seja, para relações amigáveis de vizinhança e comunhão entre os homens. Para isso, como enfatizou Edmund Burke, as boas maneiras são, na verdade, mais importantes do que quaisquer leis. Mais especificamente, as maneiras tipicamente associadas à chamada “moralidade burguesa”: de responsabilidade, consciência, veracidade, honestidade e cavalheirismo, respeito e solicitude, previsão, coragem, autodisciplina, moderação e confiabilidade.
Não há necessidade de dizer muito mais aqui sobre este assunto, uma vez que escrevi extensivamente sobre ele em outro lugar – exceto para acrescentar isto. Com minha visão sobre a importância máxima da moralidade burguesa a ser combinada com a lei libertária para uma vida de convívio, eu, querendo ou não, alcancei a posição de um dos mais proeminentes libertários contemporâneos “de direita” ou “realistas” e, como tal, me tornei um dos inimigo prediletos não apenas dos “esquerdistas” e “ambientalistas” em geral, mas especialmente e em particular também de todos os chamados libertários de “esquerda”, “progressistas” e “bleeding heart”: isto é, daquele povo que propaga tais mensagens “libertadoras” como “qualquer coisa que seja pacífica está valendo”(qualquer estilo de vida, na verdade, quanto mais anormal ou “alternativo”, melhor, como LBGT etc., etc., incluindo, pode-se perguntar, até mesmo pedofilia, necrofilia e incesto pacíficos?), “Não respeite nenhum autoridade” (nem de pais ou mães, nem de ninguém que seja “melhor” ou “superior”) e “viva e deixe viver” (nunca discrimine ou exclua ninguém por qualquer motivo concebível).
Embora tais “libertadores” adorem me denunciar como um traidor do libertarianismo: um homófobo, um xenófobo, um racista, um fascista enrustido e um cripto-nazista, para grande consternação deles, um grande e crescente contingente de pessoas de mentalidade libertária, nesse ínterim, acaba reconhecendo que foram eles que levaram a doutrina libertária a um descrédito cada vez maior, e que apenas uma ruptura radical com eles e uma virada à direita para o realismo podem restaurar o libertarianismo à respeitabilidade intelectual.
O que me leva ao tópico deste ensaio. Essa virada para a direita em direção ao realismo também levou a uma reavaliação da história intelectual e a uma reavaliação de seus vários protagonistas. Mais especificamente, chamou minha atenção para o trabalho de Carl Ludwig von Haller[1] e a descoberta de Haller como um precursor de um libertarianismo de direita realista e, de fato, sua forma mais radical, ou seja, de uma sociedade de leis privadas (ver pp. 16-17).
Haller já foi famoso, mas hoje remete a pouco mais do que uma peça de museu. Ele ocasionalmente ainda é mencionado e reivindicado por escritores conservadores como um dos seus, mas geralmente rejeitado até mesmo por eles como um “ultra-reacionário”, há muito desatualizado pelo desenvolvimento da filosofia política moderna e pelas realidades do estado moderno. E, de fato, Haller não foi apenas um oponente declarado da Revolução Francesa e de Napoleão (caps. 8 e 9, pp. 228-259), ele os considerou o resultado final catastrófico de ideias fundamentalmente erradas propagadas e disseminadas por filósofos políticos desde o século XVII (cap. 6, pp. 37-79). Depois de alguns começos altamente promissores com Hugo Grotius, que é acusado de apenas algumas pequenas confusões, Haller diagnostica em geral nada além de declínio intelectual: começando, para mencionar aqui apenas os (ainda) protagonistas mais famosos, com Hobbes, continuando até Locke e Pufendorf, e culminando com Montesquieu, Rousseau e Kant (o filósofo político, não o epistemólogo!), como os ideólogos mais confusos e perigosos com sua noção de “contrato social”. (Mais sobre isso adiante.)
Dispensado, então, pela maioria de seus contemporâneos (e praticamente todos os modernos) como um arquiinimigo do projeto de iluminista “glorioso” (na verdade, Haller normalmente se referia aos filósofos do Iluminismo depreciativamente como sofistas), Haller foi atacado por “grande” Hegel. Em seu Grundlinien der Philosophie des Rechts de 1833 (parágrafo 258), Hegel descreveu Haller como um defensor descarado de um naturalismo de poder bruto, ou seja, do governo arbitrário pelos grandes e poderosos. Falsa e enganosamente, porém, visto que a obra principal de Haller também contém um capítulo 14 (pp. 388-409) sobre as próprias limitações do poder, e um capítulo seguinte 15 (pp. 410-443) sobre o direito de resistência e, em particular, o direito à autodefesa e à autojustiça que, devido à ampla gama e extensão que lhe foi atribuída por Haller, deve parecer aos ouvidos contemporâneos nada menos que revolucionário (ver especialmente p.418, Fn.6 e p.420, Fn .12).
Diante desse pano de fundo relacionado à história das ideias, tentarei agora apresentar Haller como um libertário radical. Até onde sei, isso nunca foi feito antes. Em geral, embora seu próprio trabalho seja volumoso, a literatura sobre Haller, especialmente a partir da segunda metade do século XX, é bastante esparsa. Ela vem principalmente do lado conservador e, como a maioria do pensamento conservador, é tipicamente fraco em rigor analítico e, em qualquer caso, completamente sem familiaridade com o libertarianismo moderno (pelo menos essa é minha impressão provisória, já que eu admito que não pesquisei cuidadosamente o assunto). Os libertários, por outro lado, têm sistematicamente negligenciado Haller, provavelmente devido à sua reputação como um conservador reacionário com uma notável predileção pelo governo principesco ou monárquico (algo anátema nos círculos libertários pelo menos até o meu Democracia, o deus que falhou).
Então, embora minha tentativa de reconstruir Haller como um libertário radical seja a primeira, espero que não seja a última. Na verdade, espero que meu pequeno artigo atraia outros libertários de mente certa a também dar uma olhada mais de perto em Haller (apesar da prosa muitas vezes cansativa, laboriosa e prolixa de Haller). Principalmente porque minha própria preocupação aqui é exclusivamente com o primeiro volume do tratado principal de Haller em seis volumes, apresentando apenas os princípios mais básicos de sua filosofia social, e sendo bastante breve e superficial, mesmo nesta tarefa limitada.
Ao encontrar a tese central de Haller pela primeira vez – que a existência dos Estados está de acordo com a lei natural (e divina), que os Estados são instituições sociais necessárias e universais, que são manifestações de uma natureza humana imutável e que como tal eles sempre existiram e sempre existirão – muitos libertários contemporâneos (e certamente todos os libertários radicais) ficarão inicialmente surpresos. Isso não soa um tanto estatista? Mesmo assim, como alguém pode alegar que Haller é um libertário? Este enigma é imediatamente resolvido, no entanto, uma vez que se percebe que a definição de Haller de um estado difere fundamentalmente da definição weberiana moderna do estado como um monopolista territorial da violência e da tomada de decisão final. Ou, mais precisamente, Haller distingue categoricamente entre estados “naturais”, que seriam parte de uma ordem social natural, e estados “artificiais”, ou seja, os supostos resultados de um chamado “contrato social”, que constituem uma violação sistemática da lei divina e a lei da natureza. Considerando que os estados naturais, como veremos, estão sujeitos às disposições do direito privado (essencialmente direito da propriedade e dos contratos) e, como tais, como qualquer sujeito ou instituição de direito privado, concebivelmente podem cometer atos injustos (e, portanto, também podem dar causa a resistências justificáveis), os estados artificiais, que segundo a definição de Haller incluem praticamente todos os estados atuais, os estados modernos sujeitos ao chamado direito público representam instituições que são desde o início e per construção injustas (e, portanto, sempre e invariavelmente dão causa a resistências justificáveis).
De acordo com Haller, os estados naturais surgem espontaneamente ou organicamente – isto é: “naturalmente” – do fato inexorável da desigualdade humana: do fato de que existem fortes e fracos, sábios e tolos, diligentes e preguiçosos, gananciosos e acomodados, pessoas ricas e astuciosas e pessoas pobres e dependentes (caps. 16 e 17, pp. 444-462). O resultado inevitável dessas desigualdades é uma estrutura hierárquica e vertical de toda e qualquer sociedade humana, com um sistema mais ou menos complexo de dependências e servidões mutuamente benéficas de um lado e liberdades e autonomias correspondentes do outro. Claro, Haller não está (e não pode estar) familiarizado com a lei de associação ricardiana (conforme melhor elucidada por Ludwig von Mises cerca de duzentos anos depois), que fornece provas de como uma “pessoa superior, melhor ou mais produtiva” e também uma “pessoa inferior, pior ou menos produtiva” podem se beneficiar da cooperação mútua, mas ele antecipa esse insight fundamental. Ele reconhece a tendência natural dos fracos de buscar ajuda e assistência dos mais fortes e dos tolos e estúpidos para consultar e pedir aos mais sábios por conhecimento e conselho, e ainda assim ele vê os benefícios fornecidos aos fortes e sábios por seus inferiores ou vassalos subordinados, servos, clientes, alunos e estudantes. E ele conclui dessa observação que existe uma tendência natural, em toda a sociedade humana, para os “poderosos” governarem os “fracos” para seus benefícios mútuos (ver também pp. 301 e seguintes).
Segundo Haller, o caráter mutuamente vantajoso – não prejudicial – da estrutura natural, vertical ou hierárquica de toda e qualquer sociedade humana é melhor exemplificado pela instituição de uma família, que também fornece o protótipo de um estado natural. Cada membro da família: pai, mãe e filho, está sujeito à mesma lei universal e tem os mesmos direitos que pertencem a toda pessoa humana: estar livre da agressão de outra pessoa. Haller denomina essa lei de direito privado “absoluto”. (p. 341; p. 450n8; ver também capítulo 14, pp. 388-409) Sua associação é voluntária e, portanto, mutuamente benéfica, embora nunca totalmente contratual, mas, mais definitivamente no caso de todas as crianças, completamente natural ou costumeira e afetada também por um elemento de amor. Entretanto, a igualdade de pai, mãe e filho em termos de direito privado “absoluto” e o caráter voluntário de seu relacionamento não implica que eles também sejam iguais em relação ao que Haller chama de direito “social” privado (ou mais apropriadamente “relativo” ou “relacional), que ele considera o segundo ramo, amplamente consuetudinário, muito negligenciado e subdesenvolvido do direito privado (p. 450n8). Em vez disso, o pai (ou a mãe, nas sociedades matrilineares), como proprietário da família comum, goza de mais liberdade em relação aos assuntos domésticos do que a mãe e o filho. Ele é o chefe da família, enquanto a mãe e os filhos são seus dependentes. Ninguém (pelo menos no início da civilização humana) está acima dele. Ele é o soberano da família (e poder soberano ou soberania, de acordo com Haller, é a característica definidora de um estado, como veremos em mais detalhes a seguir), sujeito e subordinado como tal apenas as impessoais, eternas e divinamente inspiradas leis da natureza, enquanto a mãe e os filhos também estão sujeitos e subordinados à sua autoridade pessoal.
Certamente, mesmo como governante soberano de sua casa, o pai não pode fazer qualquer coisa que quiser. Além de se abster de agredir outros membros da família, ele é obrigado pelo direito social privado a honrar certas obrigações contratuais ou consuetudinárias em relação à mãe e ao filho (por mais diferentes que possam ser em ambos os casos), e ao descumprimento desses deveres vis-à-vis seus dependentes os liberariam de suas obrigações de serviço para com ele. Por outro lado, no entanto, qualquer negligência dos deveres por parte da mãe ou do filho daria ao pai o direito, de maior alcance e consequência, de excluí-los ou expulsá-los de sua casa, afirmando assim sua própria posição de soberano.
Seja como resultado de desenvolvimentos naturais ou do abuso de poder do soberano e do exercício do direito de resistência pelos dependentes, então, esta ‘posição original’ de uma ordem social vertical natural exemplificada por uma família está fadada a mudar e mudar novamente ao longo do tempo, continuamente trazendo novos e mais complexos tipos de dependências e liberdades correspondentes, expandindo ou restringindo o alcance do governo de um soberano e fazendo os antigos soberanos perderem e ex-dependentes ganharem soberania (ver esp. cap. 19, pp. 482 -493).
Os filhos (e, posteriormente, seus filhos), por exemplo, podem deixar a casa dos pais e trilham seu próprio caminho. Presumivelmente, eles ganham liberdades não desfrutadas anteriormente, mas eles podem se estabelecer em terras de propriedade de seus pais, continuar trabalhando no negócio de seus pais ou de outra forma continuar contando com sua assistência contínua. Portanto, mesmo que as liberdades dos filhos possam ter aumentado significativamente, eles não são soberanas em relação às suas famílias separadas recém-fundadas, mas permanecem qua locatários ou empregados como dependentes de um soberano. Da mesma forma, o soberano, como resultado desse desenvolvimento, ganha um maior número de dependentes, ao mesmo tempo que seu controle direto sobre cada um deles é sucessivamente diminuído pela interposição de um número cada vez maior de autoridades intermediárias e suas respectivas liberdades.
Alternativamente, os filhos trilham seu próprio caminho e estabelecem outra família separada, completamente independente de sua casa original. Assim, é criado um novo chefe de família soberano – outro estado – com seus próprios dependentes, mantendo uma relação puramente “extra-social” com outros soberanos. Ou seja, sua relação com outros soberanos é regulada exclusivamente pelo direito privado absoluto ou, como sinônimo deste, pelo direito das nações ou, no jargão libertário, pelo princípio da não agressão.
Da mesma forma, assim como soberanos estabelecidos – ou estados – podem aumentar seu número de dependentes ou novos soberanos podem vir a existir, os estados estabelecidos podem perder seus antigos dependentes na medida em que estes rompem seus laços com seu antigo governante para se tornarem independentes ou se vincularem a outro soberano, ou eles podem perder sua antiga soberania completamente e se tornarem dependentes indo à falência e sendo assumidos por outro soberano ou algum ex-dependente que se tornou soberano, por exemplo.
A imagem de uma ordem social natural emergindo dos escritos de Haller, então, é esta: As relações entre as pessoas podem ser de dois tipos: extra-social ou social (pp. 337ff).
As relações extra-sociais existem entre pessoas que nada têm a ver umas com as outras, que estão lado a lado, independentes umas das outras, como iguais, como homem para homem, seja em coexistência pacífica ou em guerra entre si. No entanto, embora muita atenção tenha sido dada pelos filósofos políticos às relações que existem, por exemplo, entre vários reis, estados ou nações independentes, mas também entre algum indivíduo Hans na Alemanha e algum individuo Franz na Áustria, e enquanto as relações extra-sociais são certamente parte de uma ordem social natural, elas não são a parte mais característica ou mais interessante, nem a parte original, ou primária, ou dominante de uma ordem natural. Em vez disso, as relações extra-sociais apenas emergem de relações sociais anteriores, com o exemplo principal sendo o da relação entre pai, mãe e filho. Estes, como já foi observado, não estão lado a lado e independentes uns dos outros, mas estão conectados uns aos outros por meio de várias dependências, e é apenas através da separação desses indivíduos originalmente conectados socialmente em diferentes domicílios ou famílias, então, que as relações extra-sociais entre as pessoas passam a existir. Assim, em toda ordem social que exceda o tamanho de uma única família, então, as pessoas sempre estão ou acabam ficando em ambas, relações extra-sociais e sociais com outras pessoas.
No que diz respeito às relações sociais, então, todas elas têm sua origem natural em algum benefício mútuo que surge (ou espera-se que surja) delas (ou melhor, a incapacidade de satisfazer certas necessidades ou obter certos confortos isoladamente e sem a cooperação de outros). E existem três tipos de relações sociais em que uma pessoa pode entrar.
Por um lado, as pessoas podem ser associadas umas às outras como iguais, como irmãos ou irmãs ou como membros de um clube ou grupo de interesse comum. De acordo com Haller, entretanto, este é o tipo ou forma de relação social empiricamente menos frequente. Muito mais comum, em vez disso, é que as pessoas entrem em uma relação social com outras, seja como senhor (ou governante) ou como servo (ou dependente). Os exemplos oferecidos por Haller para isso são muitos. Existe o pai (ou a mãe) versus o filho. Existe o senhorio versus o inquilino, o empregador versus o empregado, o produtor versus o consumidor, o general versus o tenente, o tenente versus o soldado, o mestre versus o aprendiz, o professor versus o aluno, o médico versus o paciente, o padre versus os irmãos, o patrono e o benfeitor versus o beneficiário e o mendigo, etc. etc.
Em relação a essas várias formas de governo e dependência, de status superior e inferior, Haller enfatiza repetidamente seu caráter natural e mutuamente vantajoso. Os vários governantes não impuseram seu governo a seus dependentes correspondentes, nem os vários dependentes elevaram e nomearam seus governantes correspondentes para sua posição superior. Os governantes não recebiam dos governados seu status de governantes, mas eles o possuíam e o ocupavam por conta de seus próprios talentos ou realizações. Nenhum dos vários dependentes perdeu qualquer uma de suas liberdades ou autonomias por conta de sua dependência, mas eles eram dependentes por natureza (como crianças) ou por conta de sua própria escolha voluntária de modo a satisfazer necessidades ou desejos de outra forma inatingíveis. Como Haller resume (p. 352): “Os inferiores não dão nada ao seu superior, e ele por sua vez não tira nada deles, mas eles ajudam e usam uns aos outros; ambos agindo dentro de seus respectivos direitos, iguais em relação a seus direitos inatos e naturais, e desiguais em relação a seus direitos adquiridos, ambos exercem sua liberdade legítima de acordo com sua própria vontade e com o melhor de suas habilidades.”
Embora este retrato da complexa estrutura vertical de uma ordem social natural possa suscitar alguns críticos, como dos tipos libertários de esquerda mencionados anteriormente de “não respeitar nenhuma autoridade”, por exemplo, dizerem que essa estrutura é inconsistente com a conhecida doutrina econômica da soberania do consumidor, de acordo com a qual é a demanda do lado dos dependentes, ou seja, os consumidores, inquilinos, pacientes, alunos, etc., que consolidam ou destroem seus supostos governantes e, portanto, se for alguém, são eles (os dependentes) que governam e devem ser reconhecidos como governantes, o retrato de Haller está, na verdade, em total conformidade com a doutrina econômica e até acrescenta um aspecto importante, muitas vezes negligenciado ou ignorado.
Claro, Haller está plenamente ciente do fato de que todo relacionamento entre governante e governado pode ser dissolvido se não for mais considerado mutuamente benéfico. Os consumidores podem recorrer a outro produtor, o soldado a outro general, os alunos a outro professor, os pacientes a outro médico, etc., etc. Da mesma forma, um ex-consumidor pode se tornar um produtor e o consumidor se tornar produtor, o soldado general e o general soldado, o aluno professor e o professor aluno, o paciente médico e o médico paciente, etc. Mas o que nunca muda, devido à desigualdade natural de todos os homens, é a distinção entre governante (ou superior) e governado (ou inferior) e o fato de que em todo e qualquer tipo de relação social é sempre o governante enquanto governante quem mais contribui para o bem-estar social e é o promotor do avanço social.
Da mesma forma, Haller aponta mais duas características inter-relacionadas, características de uma ordem social natural, que são de grande importância para sua estabilidade interna. Por um lado, ele observa que praticamente ninguém, nenhum governante ou governado, é exclusivamente governante ou governado. Em vez disso, cada pessoa está familiarizada e aprendeu a exercer os dois papéis, de governante e governado, mesmo que apenas em contextos ou circunstâncias diferentes. O pai governante também pode ser um inquilino dependente, o chefe do clube de futebol local e um empregado dependente. O filho dependente também pode ser um empregador governante, paciente ou cliente dependente de um médico ou advogado e um professor governante de alunos. O tenente pode governar seus soldados e, ao mesmo tempo, ser governado por um general, que por sua vez está sujeito ao governo de seu senhorio, etc.
Em segundo lugar e não obstante esta intrincada e ubíqua mistura dos papéis de governante e governado, no entanto, existe em toda sociedade de tamanho considerável também uma tendência natural para a estratificação social, ou seja, o surgimento de uma classe governante “superior” de pessoas desfrutando de maiores liberdades e confortos e uma classe “inferior” correspondente de pessoas com menos liberdades e maiores dependências. Naturalmente, com todas as relações sociais sendo mutuamente benéficas, existe mobilidade ascendente e descendente, mas a própria estratificação nas classes sociais superiores e inferiores deve ser considerada como uma constante natural. Num extremo, estão as pessoas que são chefes de família e, ao mesmo tempo, grandes proprietários de terras, donos de fazendas, fábricas e firmas, de mansões e propriedades alugadas; pessoas que empregam centenas ou mesmo milhares de funcionários, de conselheiros, professores, advogados, médicos, gerentes, seguranças, cozinheiros, empregadas domésticas e servos, etc. Na ponta do outro extremo, há diaristas, vagabundos, mendigos ou os recebedores de esmolas. E entre esses extremos, então, existem incontáveis gradações e incessantes flutuações com relação ao status social de diferentes pessoas e a extensão correspondente das liberdades ou dependências desfrutadas ou voluntariamente buscadas e aceitas por elas.
Claro, Haller não nega que essa ordem hierárquica pode ser enviesada ou distorcida pela violência, conquista e usurpação e, na conclusão deste ensaio, discutirei as razões, os erros fundamentalmente intelectuais, que Haller identifica como a fonte de tais distorções, sejam duradouras ou permanentes (em vez de meramente temporárias), à medida que se tornam cada vez mais características do mundo contemporâneo. No entanto, o estado natural das coisas, de acordo com Haller, é o governo do “mais poderoso” (cap. 13, pp. 355-387). Ou seja, os escalões superiores e elevados da hierarquia social, os membros da classe alta, são tipicamente ocupados e compostos pelas melhores e mais realizadas pessoas, ou seja, aquelas dotadas dos maiores talentos e das mais altas realizações. E é precisamente seu status de “melhor”, mais talentoso, realizado e bem-sucedido, que persuade e leva as pessoas “inferiores”, menos talentosas, realizadas e bem-sucedidas a se ligarem a elas como seus dependentes. Em vez disso, fixar a si mesmo, ser dependente e governado por alguém inferior e de menor realização é simplesmente antinatural e absurdo; e qualquer relacionamento desse tipo, caso venha a existir, invariavelmente levaria ao conflito, resistência ou rebelião. Em contraste distinto, a dependência voluntária de uma pessoa vem de forma mais natural e fácil quanto mais alto for o posto ou status de um governante, porque quanto maior e mais realizado o governante, melhor e mais segura para satisfazer as próprias necessidades. Assim, em tempos de paz, por exemplo, escreve Haller (p. 374), quando a preocupação central é viver e viver confortavelmente, as pessoas naturalmente tur n para as pessoas mais ricas e nobres para assistência. Durante a guerra, por outro lado, quando a principal preocupação das pessoas é ser protegida da agressão e da destruição, elas naturalmente se sujeitarão ao governo dos mais corajosos e astutos. E, ocasionalmente, quando, raramente o suficiente, “grandes questões” sobem ao nível de questões ou preocupações sociais contenciosas, ou seja, questões fundamentais sobre certo ou errado e verdadeiro ou falso, as pessoas olharão para as pessoas mais sábias e voluntariamente se sujeitarão a seus autoridade. De fato, observa Haller (p. 369), a lei natural ou princípio de que o superior governará e exercerá autoridade sobre o inferior e o inferior reconhece e aceita essa relação como natural e uma questão de curso também se aplica no campo dos jogos e esportes: fama, honra, troféus e prêmios são invariavelmente concedidos ou concedidos aos vencedores, os campeões, enquanto os perdedores, embora relutantemente, não podem deixar de aceitar sua derrota.
Da mesma forma, essa mesma lei ou princípio de estratificação social, como Haller enfatiza repetidamente, fornece ao mesmo tempo a melhor garantia de estabilidade social e proteção contra conflitos e distúrbios sociais (pp. 377ff). A estabilidade de cada sociedade, ou seja, a associação pacífica, tranquila e convivial dos homens, está sempre ameaçada por dois lados. Por um lado, pela inveja dos despossuídos em relação aos ricos e, por outro, pelo abuso de poder dos poderosos. No entanto, a inveja dos que não têm, mesmo que não possa ser totalmente erradicada, é minimizada ou moderada na mesma medida em que a posição dos que têm depende de talento ou realização superior. Na verdade, quanto maior e mais aparente a superioridade dos ricos, menor e mais atenuada a inveja ou ressentimento dos pobres. E no que diz respeito ao abuso de poder pelos poderosos, isso também nunca pode ser totalmente descartado, é claro. Porém, quanto mais sua posição de poder se baseia em seu talento e realizações superiores e sua autoridade e status são voluntariamente reconhecidos e aceitos por outros, menos razão haverá para abusar, ofender ou ferir alguém. Ao contrário, mais razão para eles agirem com nobreza e generosidade em relação aos menos poderosos ou impotentes para manter e assegurar sua própria posição.
Diante do pano de fundo dessas considerações sobre o domínio natural dos “poderosos” sobre os fracos e necessitados, a estratificação das pessoas em classes sociais altas e baixas e a importância central em particular dos membros da antiga classe para a manutenção da estabilidade social , tranquilidade e bem-estar geral, e à luz de nossa discussão anterior sobre o papel e a posição do pai como chefe de família como protótipo de um estado, podemos agora prosseguir para a exposição final de Haller de sua doutrina do “estado natural.”
Desde o início, deve-se ter em mente que a compreensão e definição de Haller de um estado natural é totalmente diferente do que nós, “modernos”, viemos a entender e dizer com o termo. O conceito de estado de Haller corresponde ao seu uso pré-moderno, ou seja, o significado que tinha durante a maior parte da Idade Média. Daí o rótulo de “ultra-reacionário” atribuído a ele por seus críticos modernos.
A base física natural de todos os estados é a terra, ou seja, a propriedade de pedaços de terreno contíguos ou não contíguos (p. 450, p. 460). O proprietário e, portanto, o governante desta terra pode ser uma pessoa individual – um príncipe, um rei, um imperador, um czar, um sultão, um xá, um cã, etc. – e o estado é, portanto, referido como um estado principesco ou um principado. Ou então o proprietário é uma associação ou cooperação de vários indivíduos – de senadores como em Roma, doges como em Veneza, ou “Eidgenossen” (confederados) como na Suíça, etc. – e o estado é então referido como um estado republicano ou uma república. Em qualquer caso, entretanto, seja governado por um príncipe ou por alguma cooperativa, todo estado e todo governante de estado está sujeito ao mesmo direito privado que qualquer outro proprietário e pessoa “menor”. A diferença entre um estado e o governante de um estado e outras pessoas e suas propriedades, como Haller enfatiza repetidamente, não é categórica, mas apenas de grau (pp. 450 e seguintes).
O governo direto de um príncipe se estende apenas à sua própria propriedade, assim como no caso de qualquer outra pessoa e sua propriedade, e como veremos em breve, é apenas em relação a esta “autogestão” da própria propriedade que existe uma espécie de diferença entre um príncipe e todos os outros. Em qualquer caso, estando submetido ao direito privado, um príncipe não governa outras pessoas e suas propriedades, no entanto, (p. 479) – exceto na medida em que estes voluntariamente se vincularam ao príncipe e estabeleceram algum tipo de relacionamento social com ele para melhor satisfazer essa ou aquela necessidade. Assim, em distinto contraste com o estado moderno, um príncipe não pode aprovar unilateralmente decretos legislativos ou impor impostos a outras pessoas e suas propriedades (p. 450, Fn. 8). Em vez disso, quaisquer dependências ou servidões que possam existir em relação a um príncipe variam de um dependente para outro e, em qualquer caso, são todas voluntariamente aceitas e podem ser dissolvidas uma vez que não sejam mais consideradas mutuamente benéficas. – E Haller adiciona algumas observações terminológicas esclarecedoras para esclarecer ainda mais esse status de um príncipe como um mero sujeito de direito privado (ver p. 480, nota 14): A maneira mais apropriada de se referir ao status de um príncipe, rei, etc. , então, é identificá-lo simplesmente como o chefe de uma determinada família, como o chefe da casa de Bourbon, ou a casa de Habsburgo, Hohenzollern ou Wittelsbach, etc., por exemplo. Menos apropriado, e já um pouco enganador, é referir-se a eles como o rei da França e os reis da Áustria, Prússia ou Baviera, porque isso insinua, falsamente, que eles são algo como os donos de toda a França, Áustria, etc. E totalmente equivocado é chamá-los de governo da França, Áustria, Prússia e Baviera, como se fossem meramente empregados da população francesa, austríaca, prussiana ou bávara.
Príncipes ou, no caso de repúblicas, senadores, doges, etc., são sempre membros das classes sociais altas, é claro. Mas não é o tamanho de suas propriedades, o número de “seu povo”, ou seja, o número de seus dependentes direta ou indiretamente, ou sua renda ou riqueza que os torna os chefes de estado. Na verdade, pode haver pessoas que possuem mais terras, que empregam mais pessoas e cuja renda e riqueza excede a de um príncipe, senador ou doge, e ainda que não se qualificam como chefes de estado (pp. 474-75). Na verdade, como o exemplo já mencionado, nos primórdios fictícios da humanidade, de uma única unidade familiar como protótipo de um estado demonstra, o mero “tamanho”, segundo Haller, não tinha essencialmente nada a ver com a questão de uma relação social ou posição se qualificar ou não se qualificar como um estado. Na verdade, e especialmente digno de nota, Haller ainda expressa uma forte preferência por uma multiplicidade de pequenos principados ou repúblicas (p. 432), muito na linha do meu próprio apelo por uma Europa de mil Liechtensteins em vez de uma UE unificada, como a melhor garantia contra a possibilidade de abuso de poder por parte de um governante estatal.
Então, o que é que afinal, de acordo com Haller, distingue o chefe (ou chefes) de um estado, seja grande ou pequeno, de todas as outras pessoas e suas propriedades? Não é que, como já foi explicado, um príncipe ou uma associação de senadores jamais estariam ou se encontrariam em uma posição social de inferioridade. Ninguém em uma sociedade baseada na divisão do trabalho está livre dessa experiência temperante. Até mesmo o maior dos reis precisa de médicos e conselheiros e deve se curvar à autoridade superior deles, por exemplo. Em vez disso, resumido em apenas uma palavra, o que constitui um chefe de Estado é a soberania ou independência (pp.473-481). Ele (ou eles), que é (ou são) totalmente livre para tomar decisões sobre sua (ou suas) pessoa e propriedade, porque não há ninguém acima dele (ou deles) a quem ele (ou eles) deve (m) ) uma justificativa; que não está sujeito à autoridade de ninguém, seja em virtude de costumes ou contratos, e que pode, portanto, fazer ou não fazer com sua propriedade o que bem entender, sem ter que responder a ninguém, exceto Deus e a lei natural eterna – ele (ou eles) se qualificam como chefe (s) de estado. E, em contraste, então: todo aquele que é dependente de outra pessoa ou cuja propriedade está sujeita a algum tipo de servidão, como todo vassalo, locatário, empregado, inquilino, locatário ou devedor, por exemplo, não se qualifica como um estado, independentemente de quão grande, poderoso, rico ou influente ele (ou eles) poderiam ser. – Como Haller admite e de fato enfatiza repetidamente, entretanto, a dependência vem em graus, e a diferença entre um soberano e um dependente não é de forma alguma aquela entre o dia e a noite. Uma dependência pode ser tão leve a ponto de ser quase imperceptível, um dependente pode até comandar mais recursos do que um governante soberano, e sua posição ou status diferente pode acabar se resumindo a não mais do que uma diferença em proeminência e prestígio.
Da definição de Haller de um chefe de estado submetido ao direito privado, distinto de todas as outras pessoas meramente pela soberania de seu governo sobre sua própria propriedade, então, segue sua rejeição categórica da definição alternativa agora dominante de um estado como uma agência de proteção e provedor de justiça.
Para Haller, os estados qua estados nada mais são do que uma empresa privada e, como tal, não têm função ou propósito comum (pp. 470-472). Isso não quer dizer que eles não tenham propósito. Toda instituição e todo relacionamento social tem um propósito. Mas eles não têm um propósito comum, e sim uma variedade ou uma infinidade de diferentes propósitos privados – e isso vale também para os estados. O propósito e função de um estado, então, é custear e permitir a seu chefe (s) uma vida boa e confortável, de acordo com a sua (ou a deles) própria, variando e mudando a concepção do que ele (ou eles) considera (m) uma vida “boa” e “confortável”. Mais enfaticamente, no entanto, os estados não podem ser definidos como agências de proteção ou provedores de justiça de acordo com Haller (pp. 463-465), porque a tarefa e o direito de proteger a própria pessoa e propriedade, ou seja, agir de acordo com os princípios da lei natural, conforme estabelecida por Deus, se aplica igualmente a todos e a todas as instituições e relações sociais e, portanto, não pode ser considerada exclusiva dos Estados e nem sua característica definidora. Na verdade, observa Haller, as pessoas não fecham contratos ou entram em acordos que sejam óbvios corriqueiros. E é óbvio que você não pode ferir outras pessoas ou danificar suas propriedades e que você pode se defender e usar a violência defensiva se for ferido ou se sua propriedade for danificada, tomada ou confiscada por terceiros (ver também o capítulo 15). É claro que os estados, por sua maior proeminência, podem assumir um papel mais importante como promotores e defensores da justiça. Mas promover e defender a justiça é igualmente e ao mesmo tempo direito e obrigação inalienáveis mesmo das pessoas mais humildes.
Isso me leva à seção de conclusão do presente ensaio.
Neste ponto, o subtítulo da magnum opus de Haller pode ser relembrado: Teoria da Ordem Natural-Social Contrastada com a Quimera da Ordem Civil-Artificial. O que foi apresentado até agora é a primeira parte positiva deste trabalho. Ou seja, o que Haller considera o resultado natural de pessoas morando juntas, em todos os lugares e em todos os momentos. Essa ordem natural não é considerada perfeita, é claro. Nada nos assuntos humanos é ou jamais será perfeito. Mas é o melhor arranjo possível para preservar todas as liberdades humanas naturais, para melhor satisfazer as necessidades de todos e se ajustar às novas circunstâncias. É claro que, como todas as instituições humanas, está sujeita à possibilidade de abusos, mas dentro de sua estrutura também fornece os meios e medidas para prevenir, combater, evitar ou evadir-se de tais abusos.
Como deveria estar completamente óbvio agora, no entanto, a ordem social natural e o estado natural de Haller não tem absolutamente nada a ver com a sociedade moderna e o estado moderno com o qual estamos todos muito familiarizados hoje em dia. O estado moderno e a sociedade moderna não podem nem mesmo ser considerados um exemplo e consequência do estado de Haller que se tornou desonesto. Em vez disso, o estado e a sociedade modernos, que Haller, escrevendo há cerca de duzentos anos, denomina de estado artificial e sociedade civil artificial e reconhece estar em formação já desde o século XVII e estar em plena fruição pela primeira vez com a Revolução Francesa, é uma besta de natureza completamente diferente.
A transformação sucessiva e a substituição final da ordem natural e do estado natural pelo moderno e artificial é o resultado de um erro intelectual fundamental, implacavelmente promovido em várias versões ligeiramente diferentes, mas essencialmente sempre idênticas, por incontáveis teóricos do “contrato social” até este dia. Na verdade, é o resultado de um erro intelectual e de uma teoria falha das maiores proporções, como Haller não se cansa de demonstrar em grandes detalhes (ver especialmente o capítulo 11). Uma teoria, como ele nota exasperadamente, tão patentemente falsa, do começo ao fim, que chega a ser quase risível; uma quimera tão desprovida de bom senso e separada da realidade que apenas um “intelectual” – um “sofista” na terminologia de Haller – poderia inventá-la. E ainda uma teoria que literalmente viraria o mundo de cabeça para baixo. Isso transformaria servos humildes em governantes de príncipes e filhos em senhores de pais (capítulo 4, especialmente p. 25, nota 6; e também p. 284), e isso seria destrutivo de todas as liberdades humanas (p. 335 f.).
A teoria, conforme resumida por Haller, se resume a quatro proposições (p. 295-296).
- Originalmente, no estado de natureza, a humanidade vivia fora de quaisquer relações sociais, ou seja, em relações exclusivamente extra-sociais, lado a lado e em um estado de completa liberdade e igualdade.
- No entanto, neste estado de coisas, os direitos e liberdades naturais do homem não estavam garantidos.
- Consequentemente, as pessoas se associavam e delegavam o poder de providenciar e garantir proteção e segurança gerais e abrangentes a uma ou várias pessoas entre elas.
- Por meio dessa instituição de um estado, então, a liberdade de cada indivíduo seria melhor e mais seguramente preservada e protegida do que antes.
Seguindo Haller, devo agora, como minha tarefa final, assumir cada uma dessas proposições por vez para demonstrar, com toda a brevidade devida, o absoluto absurdo de toda a doutrina, suas múltiplas contradições internas e as consequências desastrosas decorrentes de sua aceitação.
A primeira proposição e premissa da teoria já deve ser rejeitada como mera ficção ou farsa, sem qualquer base factual que seja. Nunca algo como um estado de natureza descrito pelos teóricos do contrato social existiu em qualquer lugar. Nunca ninguém viveu inteiramente fora das relações sociais. Se o fez, não precisava de uma linguagem como meio de comunicação e, se usou a linguagem isso prova a existência de relações sociais com os outros. Na verdade, como já foi demonstrado, as relações sociais, exemplificadas pela instituição de uma família, precedem as relações extra-sociais (que só podem ocorrer pela separação dos filhos dos pais). Nem – como demonstram a instituição familiar e o fato de que nem todos nascemos simultaneamente, mas sequencialmente, um após o outro – alguém jamais viveu durante toda a sua vida em um estado de coisas caracterizado por completa liberdade e igualdade. Em vez disso, desde o início, o estado da natureza humana é caracterizado por desigualdades e liberdades desiguais, por governantes e governados, senhores e dependentes. Essas desigualdades não são o resultado ou a consequência de contratos ou acordos anteriores, nem exigem contratos ou acordos para sua explicação ou justificativa. Ao contrário, eles precedem todos os contratos e acordos e fornecem a base natural e a justificativa para todas as relações e associações sociais mutuamente benéficas – acordadas ou contratadas (ver pp. 300-303).
Sob análise, a segunda proposição não se sai melhor. Mesmo os críticos da teoria dos contratos sociais permitem que essa proposição muitas vezes passe despercebida. No entanto, como Haller perceptivelmente aponta, ela também vira as coisas de cabeça para baixo e coloca a carroça na frente dos bois. É verdade que o perigo potencial que emana de alguma pessoa C ou o medo de um ataque de C pode ajudar a unir A e B. Mas a associação de A e B não se baseia na insegurança ou no medo. Em vez disso, é o resultado da confiança mútua ou mesmo do amor. A e B não temem um ao outro ou acreditam que seus direitos possam ser ameaçados ou violados por sua associação, mas, pelo contrário, A e B confiam ou amam um ao outro e se associam por esse motivo. O medo e a desconfiança são motivos não para se associar, mas para se distanciar e separar dos outros. Afirmar, em vez disso, como faz Hobbes, por exemplo, que as relações sociais emergem de um estado de coisas de medo universal, de uma bellum omnium contra omnes, é, então, simplesmente absurdo. Da mesma forma, contra todos os teóricos do contrato social, como em particular a atração e associação mútua natural dos sexos demonstra mais uma vez, a cooperação humana baseada na confiança e no amor precede todos os conflitos e guerras, e a cooperação humana está sempre disponível e capaz (de novo: não infalivelmente, mas tão satisfatoriamente quanto humanamente possível!) de lidar também com tais eventos extraordinários, extra ou anti-sociais (ver pp. 303-305).
O que nos leva à terceira proposição e com ela ao cúmulo do absurdo. E é aqui, então, com a crítica de Haller a esta tese em particular, que qualquer dúvida ainda persistente na mente de alguém sobre o status do autor de uma grande obra sobre “A Restauração da Teoria do Estado” deve finalmente ser enterrada, e o status de Haller como um libertário radical – na linguagem moderna: como um anarcocapitalista – deve ser firmemente cimentado. Porque aqui, duzentos anos atrás, Haller apresenta praticamente todos os argumentos também levantados contra a legitimidade do estado (moderno) pelo libertarianismo contemporâneo e libertários na tradição de Murray Rothbard.
Para começar, é notado que não existe nenhum registro de que algo semelhante a um contrato como imaginado pelos teóricos do contrato social tenha sido consumado em qualquer lugar. E Haller imediatamente vai ao cerne da questão: por que nunca existiu e por que qualquer contrato desse tipo é inconcebível. No estado de natureza, ele escreve (p. 322), cada um, para sua proteção e segurança, poderia contar com seus próprios poderes e meios de autodefesa ou poderia escolher alguém mais poderoso do que ele, e equipado com mais ou melhor meios de proteção, e vincular-se em termos mutuamente acordados a tal pessoa como seu vassalo ou servo; e ele poderia encerrar e deixar qualquer associação e retornar à autossuficiência defensiva ou ligar-se a outro protetor presumivelmente melhor. Por que, então, Haller se pergunta, alguém consideraria uma melhoria, se ele não pudesse mais escolher seu próprio protetor e modo de proteção, mas tal decisão fosse tomada por outros, ou seja, “o povo?” Como isso é liberdade ?!
Mais especificamente, a menção de o “povo” fornece a palavra-chave para uma enxurrada de perguntas complementares embaraçosas. Quem são essas “pessoas” que supostamente delegam seus poderes ao Estado e a seus chefes para então garantir toda a sua segurança e proteção? São todos que podem respirar e, se não, por que não (ver pp. 312ff.)? É toda a população mundial que constitui “o povo?” Ou existem diferentes “pessoas” e como, então, traçar os limites e determinar quem pertence ou não pertencer a este “povo” ou àquele? E quanto ao fato de que constantemente há pessoas morrendo e nascendo? Um contrato pode vincular apenas aqueles que realmente o fecharam e, portanto, o contrato não deve ser continuamente renovado e redesenhado, então, sempre que um recém-nascido entra em cena?
Além disso, por que o chefe de uma família ou um príncipe, por exemplo, concordaria que seus filhos ou servos deveriam ter uma palavra igual na escolha de seu governante ou suserano? E se eles tivessem tal opinião, isso não implicaria que algum relacionamento anteriormente harmonioso – mutuamente benéfico – entre pais e filhos ou entre um príncipe e seus servos ficaria cada vez mais infectado por ciúme, tensão e contenda? Da mesma forma, independentemente de quem é considerado e contado como membro do “povo”, é concebível que todos eles, por unanimidade, concordariam sobre quem deveria ser seu suserano? E se não for esse o caso, o que pode ser tomado como uma certeza, como este contrato pode ainda ser considerado vinculativo também para os discordantes ou dissidentes? E isso não implica, então, que toda a rede complexa de relações harmoniosas características de uma ordem social natural será distorcida ou destruída e substituída por um sistema de partidarismo e partidos rivais ou mesmo hostis afetando e infectando todo e qualquer pedaço do tecido social? (pp. 323-324)
Mesmo assim: as perguntas não param. Quem quer que seja apontado por um partido do “povo” como o protetor supremo de todos os partidos, então, pode impor sua vontade a todos, partidários e dissidentes – quão abrangentes são suas competências? Quais restrições, se houver, são impostas às suas ações? As pessoas ainda têm permissão para se proteger e se defender contra ações prejudiciais ou ilícitas de outras pessoas? As pessoas ainda podem portar armas ou construir uma fortaleza? Um pai ainda pode bater em seu filho por má conduta grave? O empregador ainda pode despedir seu empregado por comportamento negligente? O proprietário ainda pode expulsar um inquilino delinquente de sua propriedade ou proibir a entrada de outros? Ou todos devem se desarmar e algum ou todos esses conflitos potenciais ficarem sob a jurisdição do Estado? Certamente, não se pode esperar uma resposta unânime para essas questões. No entanto, o que pode ser afirmado com certeza é que a interposição do Estado em qualquer assunto é uma violação do direito natural, uma violação dos direitos de propriedade privada e uma restrição arbitrária da liberdade humana, ou seja, o oposto do alegado propósito do instituição de um estado (pp. 328-330).
Por último, mas não menos importante, resta ainda mais uma questão sem resposta para revelar mais uma vez a total confusão e bagunça da teoria do contrato social: quem quer que seja nomeado por uma parte do “povo” para ser – supostamente – o empregado “do povo” inteiro e o provedor de segurança e protetor de todos eles, vai precisar de recursos para fazer isso. Ele precisa de mão de obra, bens materiais e os meios para financiá-los, e é seu empregador, ou seja, o “povo”, que deve provê-lo de tudo isso. Mas quanto dinheiro, pessoal e equipamento de proteção são necessários para fazer o trabalho? E quem entre as pessoas deve contribuir com que parte do total? Certamente, é impossível chegar a um acordo unânime sobre esta questão. Certamente o chefe de Estado, a quem todos os poderes teriam sido delegados, iria pedir cada vez mais recursos, argumentando que quanto mais recursos tivesse à sua disposição, mais segurança poderia oferecer. Mas por que alguém que não escolheu voluntariamente essa pessoa como seu protetor, que se considerou capaz de prover sua própria segurança ou que considerou seu suposto protetor como alguém parcial, como um partidário ou mesmo como um inimigo perigoso, entregaria qualquer quantia de seu dinheiro ou outra propriedade para ele de forma a ser desperdiçada ou mesmo usada para oprimi-lo e roubá-lo cada vez mais de sua própria propriedade? Relações harmoniosas e serviços voluntários e pagamentos seriam substituídos por coerção, servidão e impostos, e coerção, servidão e impostos, então, seriam usados para cada vez mais coerção, servidão e impostos futuros (pp. 330-332).
A bellum omnium contra omnes, então, que não existia no estado de natureza – na verdade só é provocada pela instituição do estado (artificial), e é continuamente incitado e promovido pelo estado de modo a expandir constantemente seu seus próprios poderes à custa da perda crescente de todas as liberdades privadas. E então, Haller sarcasticamente observa, esse terrível estado de coisas, resultado da propaganda, da implacável tagarelice intelectual dos teóricos do contrato social, é o que devemos considerar como as novas e melhoradas liberdade e autonomia humanas. Que piada cruel.
Artigo original aqui
[1] Veja Wikipedia s.v. “Karl Ludwig von Haller“, última modificação em 29 de agosto de 2021, 19:57. A magnum opus de Haller é Restauration der Staats-Wissenschaft oder Theorie des natürlich-geselligen Zustands der Chimaere des künstlich-bürgerlichen entgegengesetzt, 4 vols. (Winterthur, Switzerland, 1817–34).
Baita artigo!!!
Que negócio maravilhoso!
P.S. esses dois trechos tem uns errinhos digitação
“pessoas naturalmente tur n para as pessoas mais ricas e nobres”
“Para Haller, os estados qua estados nada mais são do que uma empresa privada”