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IV – Justiça e Direito de Propriedade

O Fracasso do Utilitarismo

Até muito recentemente, economistas pró-livre mercado deram pouca atenção às entidades que estavam de fato sendo trocadas no mercado que eles defendem tão firmemente.

Presos no funcionamento e vantagens da liberdade de troca, empreendimento, investimento e sistema de preços, os economistas tendem a perder de vista as coisas que estão sendo trocadas nesse mercado.

A saber, eles perdem de vista o fato de que quando $10 mil estão sendo trocados por uma máquina ou $1 por um bambolê, o que está sendo realmente trocado é o título de propriedade de cada um desses bens.

Em resumo, quando eu compro um bambolê por $1, o que eu realmente estou fazendo é trocando o meu título de propriedade do dólar em troca do título de propriedade do bambolê; o vendedor está fazendo o exato oposto.[1] Mas isso significa que as tentativas habituais dos economistas de serem wertfrei (N. T.: isentos de julgamento de valor), ou pelo menos confinar a sua defesa aos processos de comércio e troca, não pode ser mantida. Pois, se eu e o vendedor somos de fato livres para trocar o dólar pelo bambolê sem interferência coercitiva por terceiros, então isso pode ser feito apenas se esses economistas proclamarem a justiça e a validade da minha propriedade original do dólar e da propriedade do vendedor sobre o bambolê.

Em resumo, para um economista falar que X e Y deveriam ser livres para trocar Bem A por Bem B sem serem molestados por terceiros, ele deve também falar que X possui o Bem A legítima e justamente e que Y legitimamente possui o Bem B. Mas isso significa que o economista pró-livre mercado deve ter algum tipo de teoria de justiça de direitos de propriedade; ele dificilmente pode falar que X possui o Bem A justamente sem declarar algum tipo de teoria da justiça em nome de tal propriedade.

Suponha, por exemplo, que estou prestes a comprar o bambolê, e chega a informação de que o vendedor na verdade roubou o bambolê de Z. Certamente nem mesmo o suposto economista wertfrei pode continuar a despreocupadamente apoiar a proposta troca de títulos de propriedade entre mim e o vendedor. Pois agora nós descobrimos que o título de propriedade do vendedor, Y, é impróprio e injusto e que ele deve ser forçado a devolver o bambolê a Z, o dono original. O economista pode então apenas apoiar uma troca proposta entre mim e Z, em vez de Y, pelo bambolê, uma vez que ele reconheça Z como o justo dono do título do bambolê.

Em resumo, nós temos dois pretendentes mutuamente excludentes à propriedade do bambolê. Se o economista concorda em defender que apenas Z venda o bambolê, então ele está implicitamente concordando que Z tem justa, e Y injusta, reivindicação ao bambolê. E mesmo que ele continue a apoiar a venda por Y, então ele está implicitamente mantendo outra teoria de títulos de propriedade: a saber, que o roubo é justificado. Independentemente do que ele decida, o economista não pode escapar de um julgamento, de uma teoria de justiça da propriedade. Além do mais, a questão não acaba quando o economista proclama a injustiça ou o roubo e apoia o válido título de Z. Pois qual a justificação para o título de Z sobre o bambolê? É apenas por que ele não é um ladrão?

Nos últimos anos, os economistas pró-livre mercado Ronald Coase e Harold Demsetz começaram a restaurar o equilíbrio e focar na importância de uma clara e precisa demarcação de direitos de propriedade para a economia de mercado. Eles têm demonstrado a importância de tal demarcação na alocação de recursos e em prevenir ou compensar por indesejada imposição de “custos externos” provenientes da ação de indivíduos. Mas Coase e Demsetz têm falhado em desenvolver qualquer teoria de justiça para esses direitos de propriedade; ou, pelo contrário, eles têm promovido duas teorias: um, que “não importa” como os títulos de propriedade são alocados, contanto que eles sejam alocados precisamente; e dois, que os títulos devem ser alocados para minimizar “os custos sociais totais de transação”, uma vez que uma minimização dos custos deve ser uma forma wertfrei de beneficiar toda a sociedade.

Não há espaço aqui para uma crítica detalhada do critério Coase-Demsetz. É suficiente dizer que em um conflito relacionado ao direito de propriedade entre o dono de um rancho e o dono de uma fazenda pelo mesmo pedaço de terra, mesmo que a alocação do título “não importe” para a alocação dos recursos (um ponto que poderia ele mesmo ser desafiado), certamente importa do ponto de vista do dono do rancho e do dono da fazendo. E segundo, é impossível ponderar “custos sociais totais” se completamente percebermos que todos os custos são subjetivos ao indivíduo e, portanto, não podem ser comparados interpessoalmente.[2] Aqui o ponto importante é que Coase e Demsetz, juntamente com todos os outros economistas utilitaristas pró-livre mercado, implícita ou explicitamente, deixam nas mãos do governo definir e alocar títulos de propriedade privada.

É um fato curioso que economistas utilitaristas, geralmente tão céticos das virtudes da intervenção governamental, sejam tão contentes em deixar o alicerce fundamental do processo do mercado – a definição de direitos de propriedade e a alocação de títulos de propriedade – totalmente nas mãos do governo. Presumivelmente eles assim o fazem porque eles mesmos não têm uma teoria de justiça de direitos de propriedade; e, portanto, colocam o fardo de alocar títulos de propriedade nas mãos do governo.

Assim, se Smith, Jones e Doe possuem propriedade e estão prestes a trocar seus títulos, utilitaristas simplesmente alegam que se esses títulos são legais (ou seja, se o governo coloca um carimbo de aprovação neles), então eles consideram que esses títulos são justificados. É apenas se alguém viola a definição de legalidade do governo (por exemplo, no caso de Y, o vendedor ladrão) que os utilitaristas estão dispostos a concordar com a visão geral e governamental de injustiça de tal ação. Mas isso significa, obviamente, que, uma vez mais, os utilitaristas falharam em seu desejo de escapar de ter uma teoria de justiça da propriedade. Na realidade, eles possuem tal teoria e é certamente uma teoria simplista a qual o que quer seja que o governo defina como legal está certo.

Como em muitas outras áreas da filosofia social, então, nós vemos que utilitaristas, ao buscar seu vão objetivo de serem wertfrei, de “cientificamente” rejeitar qualquer teoria de justiça, na realidade possuem tal teoria: a saber, colocar o seu carimbo de aprovação em qualquer que seja o processo pelo qual o governo chegue à alocação de títulos de propriedade. Além disso, nós percebemos que, como em muitas ocasiões parecidas, utilitaristas em sua vã busca pelo wertfrei na verdade acabam por apoiar como correto e justo qualquer coisa que o governo acabe por decidir, ou seja, por cegamente fazer apologia ao status quo.[3]

Consideremos o carimbo utilitarista de aprovação em relação à alocação de títulos de propriedade por parte do governo. Poderia esse carimbo de aprovação atingir ao menos o limitado objetivo utilitarista da certa e precisa alocação de títulos de propriedade? Suponha que o governo apoie os títulos existentes de propriedade mantidos por Smith, Jones e Doe. Suponha, então, que uma facção do governo pede o confisco desses títulos e a redistribuição dessa propriedade a Roe, Brown e Robinson. As razões para esse programa pode surgir de um grande número de teorias sociais ou mesmo do bruto fato de que Roe, Brown e Robinson têm maior poder político do que o trio original de proprietários. A reação a essa proposta pelos economistas pró-livre mercado e outros utilitaristas é previsível: eles irão se opor a essa proposta com base em que direitos de propriedade certos e definidos, portanto socialmente vantajosos, estão sendo ameaçados. Mas suponha que o governo, ignorando os protestos dos nossos utilitaristas, prossiga com a redistribuição desses títulos de propriedade. Roe, Brown e Robinson são definidos agora pelo governo como proprietários devidos e legais, enquanto quaisquer reivindicações àquela propriedade pelo trio original Smith, Jones e Doe são consideradas indevidas e ilegítimas, se não subversivas. Qual será agora a reação dos nossos utilitaristas?

Deve ser claro que, uma vez que os utilitaristas baseiam sua teoria de justiça da propriedade apenas naquilo que o governo define como legal, eles não podem ter nenhuma base para qualquer pedido de restituir a propriedade em questão aos seus donos originais. Eles podem apenas, de forma arbitrária, e a despeito de qualquer relutância emocional de sua parte, simplesmente apoiar a nova alocação de títulos de propriedade como definido e apoiado pelo governo. Não apenas os utilitaristas devem apoiar o status quo dos títulos de propriedade mas devem também apoiar qualquer status quo existente e independentemente do quão rápido o governo decida deslocar e redistribuir tais títulos. Além disso, considerando o retrospecto, podemos de fato falar que confiar no governo para ser o guardião dos direitos de propriedade é colocar a raposa para guardar o galinheiro.

Vemos, portanto, que a suposta defesa do livre mercado e de direitos de propriedade por utilitaristas e economistas pró-livre mercado é de fato um junco muito fraco. Carecendo de uma teoria de justiça que vá além da existente aprovação do governo, utilitaristas podem apenas seguir toda mudança e deslocamento da alocação governamental após elas ocorrerem, não importando o quão arbitrária, rápida ou politicamente motivados tais deslocamentos possam ser. E, uma vez que eles não fornecem nenhuma barreira firme às realocações governamentais de propriedade, os utilitaristas, em última análise, não podem por si mesmos oferecer nenhuma defesa dos direitos de propriedade. Uma vez que as redefinições governamentais podem e irão ser rápidas e arbitrárias, eles não podem fornecer uma certeza para os direitos de propriedade a longo prazo; e, portanto, eles não podem nem mesmo garantir eficiência econômica e social que eles mesmos buscam.[4] Tudo isso está implícito nos pronunciamentos dos utilitaristas de que qualquer sociedade futura deve se confinar a qualquer definição de títulos de propriedade que o governo estiver apoiando no momento.

Consideremos um exemplo hipotético de falha da defesa utilitarista da propriedade privada. Suponha que de alguma forma o governo seja persuadido da necessidade de se render a um clamor para uma sociedade de livre mercado laissez-faire. Antes de se dissolver, entretanto, ele redistribui títulos de propriedade, concedendo a propriedade de todo o território de New York à família Rockefeller, e o de Massachusetts à família Kennedy, etc. Então ele é dissolvido, dando fim à tributação e todas as outras formas de intervenção governamental na economia. Entretanto, enquanto a tributação foi abolida, as famílias Rockefeller, Kennedy, etc. prosseguem ao mandar em todos os residentes no que são agora “seus” territórios, extorquindo o que agora é chamado de “aluguel” sobre todos os habitantes.[5]

Parece claro que nossos utilitaristas não teriam nenhuma armadura intelectual com a qual desafiariam essa nova distribuição; de fato, eles teriam que apoiar os títulos dos Rockefeller, Kennedy, etc. como “propriedade privada” igualmente merecedores de apoio assim como os títulos de propriedade comuns que eles haviam apoiado alguns meses antes. Tudo isso porque os utilitaristas não têm uma teoria de justiça da propriedade além do apoio a qualquer status quo que venha a existir.

Considere, além disso, a caixa grotesca na qual o proponente utilitarista da liberdade se coloca em relação a instituição da escravidão humana. Contemplando a instituição da escravidão, e o “livre” mercado que uma vez existiu na compra, venda e aluguel de escravos, o utilitarista deve confiar na definição legal de propriedade que apenas apoia a escravidão com base em que os senhores de escravos compraram seus títulos de escravos legalmente e de boa fé. Certamente, qualquer apoio a um “livre” mercado de escravos indica a inadequação dos conceitos utilitaristas de propriedade e a necessidade de uma teoria de justiça para fornecer uma base para direitos de propriedade e uma crítica aos títulos de propriedades oficiais existentes.

 

Rumo a uma Teoria de Justiça da Propriedade

O utilitarismo não pode ser apoiado como base para direitos de propriedade ou, a fortiori, para a economia de livre mercado. A teoria de justiça a ser atingida deve ir além da alocação governamental de títulos de propriedade e pode, portanto, servir como base para criticar tais alocações. Obviamente, nesse espaço eu posso apenas esboçar o que eu considero ser a correta teoria de justiça de direitos de propriedade. Essa teoria tem duas premissas fundamentais:

  1. o direito de propriedade absoluto de cada indivíduo sobre sua própria pessoa, seu próprio corpo; isso pode ser chamado de direito de autopropriedade; e
  2. o direito absoluto sobre propriedade material da pessoa que primeiro encontra um recurso material inutilizado e então de alguma forma ocupa ou transforma esse recurso pelo uso de sua própria energia.

Esse pode ser chamado de princípio da apropriação original – o caso em que alguém, na expressão de John Locke, “misturou o seu trabalho” com um recurso inutilizado. Deixemos Locke resumir esses princípios:

“Todo homem tem a propriedade de sua própria pessoa. A isso ninguém tem direito algum exceto ele mesmo. O esforço de seu corpo e o trabalho de suas mãos, podemos dizer, são devidamente dele. Qualquer coisa, então, que ele remova do estado que a natureza tem proporcionado e deixado, ele mistura o seu trabalho com isso e une a isso algo que é seu, e assim torna isso sua propriedade. Isso sendo por ele removido do estado comum colocado pela natureza, por seu trabalho tem algo anexado a ele que exclui o direito comum de outros homens.”[6]

Consideremos o primeiro princípio: o direito de autopropriedade. Esse princípio afirma o direito absoluto de cada homem, em virtude de ser um ser humano, de “possuir” seu próprio corpo; ou seja, de controlar esse corpo livre de interferência coercitiva. Uma vez que a natureza do homem é tal que cada indivíduo deve usar sua mente para aprender sobre si mesmo e o mundo, para selecionar valores e para escolher fins e meios para sobreviver e prosperar, o direito de autopropriedade dá a cada homem o direito de executar essas atividades vitais sem ser impedido ou restrito por molestamento coercitivo.

Considere, então, as alternativas – as consequências de negar a cada homem o direito de possuir sua própria pessoa. Há apenas duas alternativas:

  1. uma certa classe de pessoas, A, tem o direito de possuir outra classe, B; ou
  2. todos têm o direito de possuir sua igual parte de todos os outros.

A primeira alternativa implica que, enquanto a classe A merece os direitos do ser humano, a classe B é na realidade sub-humana e, portanto, não merece tais direitos. Mas uma vez que eles são de fato seres humanos, a primeira alternativa se contradiz em negar direitos humanos naturais a um grupo de humanos. Além disso, permitir que a classe A possua a classe B significa que ao primeiro é permitido explorar e, portanto, viver de forma parasitária às custas do último; mas, como a economia pode nos dizer, esse mesmo parasitismo viola o requerimento econômico básico para a sobrevivência humana: produção e troca.

A segunda alternativa, que podemos chamar de “comunalismo participativo” ou “comunismo”, afirma que todo homem tem o direito de possuir a sua igual parte de todos os outros. Se há três bilhões de pessoas nesse mundo, então todos têm o direito de possui um terço de bilionésimo de cada pessoa. Em primeiro lugar, esse ideal se baseia em um absurdo – proclamando que todo homem tem o direito de possuir uma parte de todos os outros e, contudo, não tendo direito de possuir a si mesmo. Segundo, nós podemos imaginar a viabilidade de tal mundo – um mundo no qual nenhum homem é livre para agir sem prévia aprovação ou comando de todos os outros em sociedade. Deve estar claro que nesse tipo de mundo “comunista” ninguém seria capaz de fazer nada e a raça humana rapidamente pereceria. Mas se um mundo de zero autopropriedade e cem por cento de propriedade sobre outros significa morte para a raça humana, então quaisquer passos nessa direção também contradizem a lei natural do que é melhor para o homem e sua vida na terra.

Por fim, entretanto, o mundo participativo comunista não pode ser colocado em prática. É fisicamente impossível que todos supervisionem todos os outros e, assim, exerçam sua igual parte da propriedade sobre todos os outros homens. Na prática, então, qualquer tentativa de instituir propriedade universal e igualitária sobre outros é utópica e impossível – e a supervisão e, portanto, o controle e a propriedade de outros seriam necessariamente transmitidos para um grupo especializado de pessoas que assim se tornariam a “classe dominante”. Logo, na prática, qualquer tentativa de uma sociedade comunista irá automaticamente se tornar o domínio de uma classe e nós voltaríamos à nossa primeira alternativa rejeitada.

Concluímos, então, com a premissa do direito de autopropriedade universal absoluto como nosso primeiro princípio de justiça da propriedade. Esse princípio, obviamente, rejeita automaticamente a escravidão como totalmente incompatível com o nosso direito primário.[7]

Voltemo-nos agora ao caso mais complexo da propriedade de objetos materiais. Pois mesmo que todo homem tenha direito a autopropriedade, as pessoas não são aparições flutuantes; elas não são entidades autossubsistentes; elas podem apenas sobreviver e prosperar ao se agarrar à terra à sua volta. Elas devem, por exemplo, se estabelecer em áreas terrestres; elas devem também, a fim de sobreviver, transformar os recursos dados pela natureza em “bens de consumo”, em objetos mais adequados para seu uso e consumo. Alimentos devem ser cultivados e comidos, minerais devem ser minerados e então transformados em capital e finalmente em bens de consumo úteis, etc. O homem, em outras palavras, deve possuir não apenas a sua própria pessoa, mas também objetos materiais para seu controle e uso. Como, então, os títulos de propriedade desses objetos devem ser alocados?

Consideremos, como nosso primeiro exemplo, o caso de um escultor moldando um trabalho de arte de argila e outros materiais, e assumiremos simplesmente por enquanto que ele possui esses materiais enquanto deixamos de lado a questão da justificação de sua propriedade. Examinemos a questão: quem deve possuir o trabalho de arte conforme ele surge da modelagem do escultor? A escultura é, de fato, a “criação” do escultor, não no sentido que ele criou a matéria do nada, mas no sentido de que ele transformou a matéria dada pela natureza – a argila – em outra forma ditada por suas próprias ideias e moldada por suas próprias mãos e energia. Certamente, é raro uma pessoa que, com o caso colocado dessa forma, diria que o escultor não tem o direito de propriedade do seu próprio produto. Pois se todo homem tem o direito de possuir o seu próprio corpo e se ele deve se agarrar aos objetos materiais do mundo a fim de sobreviver, então o escultor tem o direito de possuir o produto que ele fez, através de sua energia e esforço, uma genuína extensão de sua própria personalidade. Ele colocou o carimbo de sua pessoa sobre o material bruto ao “misturar seu trabalho” com a argila.

Como no caso da propriedade do corpo das pessoas, novamente temos três alternativas lógicas:

  1. o transformador, o “criador”, tem o direito de propriedade sobre sua criação; ou
  2. outro homem ou grupo de homens tem o direito de se apropriar da escultura à força sem o consentimento do escultor; ou
  3. a solução “comunal” – todo indivíduo no mundo tem uma igual parte na propriedade da escultura.

Novamente, colocado de forma direta, há muito poucos que não reconhecem a monstruosa injustiça de confiscar a propriedade do escultor, seja por um ou por muitos outros, ou pelo mundo todo. Pois baseado em qual direito eles o fariam? Com base em qual direito eles se apropriariam do produto da mente e energia do criador? (Novamente, como no caso dos corpos, qualquer confisco supostamente em nome do mundo todo iria, na prática, se tornar uma oligarquia de confiscadores).

Mas o caso do escultor não é qualitativamente diferente de todos os casos de “produção”. O homem ou os homens que extraíram a argila do solo e venderam ao escultor também foram “produtores”; eles também misturaram suas ideias e sua energia e o seu know-how tecnológico com o material dado pela natureza a fim de surgir com um produto útil. Como produtores, os vendedores de argila e das ferramentas do escultor também misturaram seu trabalho com os materiais naturais para transformá-los em bens e serviços mais úteis. Todos os produtores têm, portanto, direito à propriedade de seus produtos.

A cadeia da produção material é logicamente reduzida, então, dos bens de consumo e trabalhos de arte até os primeiros produtores que coletaram ou mineraram o solo e recursos dados pela natureza para usá-los e transformá-los através de sua energia pessoal. E o uso do solo é logicamente reduzido até a propriedade legítima dos primeiros usuários dos recursos previamente inutilizados, sem dono e virginais dados pela natureza. Citemos novamente Locke:

“Ele que é nutrido pelas nozes que pega sob o carvalho ou pelas maçãs que coleta das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si mesmo. Ninguém pode negar que o alimento é dele. Eu pergunto, então, quando eles começaram a ser seus? Quando ele os digeriu? Ou quando ele os comeu? Ou quando ele os cozinhou? Ou quando ele os trouxe para casa? Ou quando ele os coletou? Está claro que se a primeira coleta não os tornou seus, nada mais poderia; que o trabalho colocou a distinção entre eles e o comum. Que adicionou algo a eles além do que a natureza, a mãe comum de todos, tinha feito, e então eles se tornaram seu direito pessoal. E irá alguém dizer que ele não tinha o direito àquelas nozes ou maçãs das quais ele assim se apropriou porque ele não tinha o consentimento de toda a humanidade para torná-los seus? Seria isso roubo assim assumir para si o que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário, o homem teria morrido de fome, apesar da abundância que Deus deu a ele. … Assim, o pasto que meu cavalo comeu, a grama que o meu servo cortou e o minério que eu desenterrei em minha propriedade, onde eu tenho direito a eles em comum com outros, se tornam minha propriedade sem a determinação ou consenso de ninguém. O trabalho que foi meu, os removendo do estado comum em que estavam, marcaram minha propriedade neles.”[8]

Se todo homem possui sua própria pessoa e, portanto, seu próprio trabalho e se por extensão ele possui qualquer propriedade material que ele “criou” ou coletou do “estado de natureza” previamente inutilizado e sem dono, surge a pergunta final do ponto de vista lógico: quem tem o direito de possuir ou controlar a terra em si? Em resumo, se o coletor tem o direito de possuir as castanhas e frutas que ele apanha e o fazendeiro tem o direito de possuir sua colheita de trigo ou pêssegos, quem tem o direito de possuir a terra na qual essas coisas cresceram? É nesse ponto que Henry George e seus seguidores, que teriam chegado até aqui em nossa análise, tomam outro caminho e negam o direito individual de possuir um pedaço de terra, o solo no qual essas atividades ocorreram. Os georgistas argumentam que, enquanto todo homem deve possuir os bens que ele produz ou cria, uma vez que a natureza ou Deus criaram a terra, nenhum indivíduo tem direito de assumir a propriedade dessa terra.

Contudo, somos novamente confrontados por nossas três alternativas lógicas: ou a terra pertence ao pioneiro, o primeiro usuário, o homem que primeiro a coloca em produção; ou ela pertence a um grupo de terceiros ou ao mundo todo, com cada indivíduo possuindo sua igual parte de todo o acre de terra. A opção de George pela última solução dificilmente resolve seu problema moral: pois se a terra deve pertencer a Deus ou à natureza, então por que é mais moral que todo o acre do mundo seja possuído pelo mundo todo do que conceder propriedade individual? Na prática, novamente, é obviamente impossível que toda pessoa do mundo exerça a sua propriedade sobre uma porção de um terço de bilionésimo de cada acre da superfície terrestre; na prática, uma pequena oligarquia exerceria o controle e posse, em vez de o mundo como um todo.

Mas além dessas dificuldades na posição georgista, nossa justificação proposta para a propriedade do solo é a mesma que a justificação para a propriedade original de todas as outras propriedades. Pois, como indicamos, nenhum produtor realmente “cria” matéria; ele toma a matéria dada pela natureza e a transforma por sua energia pessoal de acordo com suas ideias e sua visão. Mas isso é precisamente o que o pioneiro – o “apropriador original” – faz, quando ele faz da terra previamente inutilizada sua propriedade privada. Exatamente como o homem que faz aço a partir do minério de ferro transforma esse minério a partir do seu know-how e com sua energia e exatamente como o homem que toma o ferro do solo faz o mesmo, também o faz o apropriador original que limpa, cerca, cultiva ou constrói sobre a terra. O apropriador original, também, transformou o caráter e utilidade do solo dado pela natureza através do seu trabalho e sua personalidade. O apropriador original é exatamente tão legítimo dono da propriedade quanto o escultor ou o fabricante; ele é exatamente tão “produtor” quanto os outros.

Além disso, se um produtor não tem direito aos frutos do seu trabalho, quem teria? É difícil de enxergar por que um bebê recém-nascido paquistanês deveria ter a reivindicação moral a uma parte da propriedade de um pedaço de terra em Iowa que alguém acabou de transformar em um campo de trigo e vice-versa, obviamente, no caso de um bebê de Iowa e um fazendeiro paquistanês. A terra em seu estado original é inutilizada e sem dono. Georgistas e outros comunalistas de terra pode alegar que a população “na realidade” a possui, mas se ninguém a usou ainda, ela na realidade não é possuída e controlada por ninguém. O pioneiro, o apropriador original, o primeiro usuário e o transformador dessa terra é o homem que primeiro coloca essa simples coisa sem valor em uso e produção. É difícil ver justiça em privá-lo de sua propriedade em favor de pessoas que nunca chegaram num raio de mil milhas da terra e que podem nem mesmo saber da existência da propriedade à qual se espera que tenham uma reivindicação. É ainda mais difícil ver justiça em um grupo de oligarquias forasteiras possuindo a propriedade e às custas da expropriação do criador ou apropriador original que tinha originalmente colocado o produto em existência.

Finalmente, ninguém pode produzir nada sem a cooperação do solo, mesmo que apenas para ficar sobre ele. Nenhum homem pode produzir ou criar nada apenas pelo seu trabalho; ele deve ter a cooperação da terra e de outros materiais naturais brutos. O homem vem ao mundo apenas consigo mesmo e o mundo ao seu redor – a terra e os recursos naturais dados a ele pela natureza. Ele toma esses recursos e os transforma através do seu trabalho, mente e energia em bens mais úteis ao homem. Portanto, se um indivíduo não pode possuir terra original, também não pode no sentido mais abrangente possuir quaisquer frutos do seu trabalho. Agora que seu trabalho foi inextricavelmente misturado com a terra, ele não pode ser privado de um sem ser privado do outro.

O problema moral envolvido aqui é ainda mais claro se considerarmos o caso dos animais. Animais são “terra econômica”, uma vez que eles são recursos originais dados pela natureza. Ainda assim, quem iria negar em sua totalidade o título de um cavalo a um homem que o ache e o domestique? Isso não é diferente de nozes e frutas que são geralmente concedidas ao coletor. Contudo, no caso da terra também o apropriador original toma a terra previamente “selvagem” e não domesticada e a domestica ao colocá-la em uso produtivo. Misturar o seu trabalho com pedaços de terra deve dar a ele um título exatamente tão válido quanto no caso dos animais.

De nossos dois axiomas básicos, o direito de todo homem a autopropriedade e o direito de todo homem de possuir recursos naturais previamente inutilizados dos quais ele primeiro se apropriou ou transformou através do seu trabalho – todo o sistema de justificação dos direitos de propriedade podem ser deduzidos. Pois se alguém justamente possui terra e a propriedade que encontra e cria, então ele, obviamente, tem o direito de trocar essa propriedade pela propriedade justa e adquirida de forma similar de outra pessoa. Isso estabelece o direito de livre troca de propriedade, bem como o direito de dar propriedade de uma pessoa a outra pessoa que aceita recebê-la. Assim, X pode possuir sua pessoa e trabalho e a fazenda que ele cuida e cultiva trigo; Y possui os peixes que pesca; Z possui os repolhos que cultiva e a terra sob eles. Mas então X tem o direito de trocar parte de seu trigo por alguns peixes de Y (se Y concordar) ou repolhos de Z; e quando X e Y fazem uma acordo voluntário de trocar trigo por peixes, então aqueles peixes se tornam propriedade justamente adquirida de X para fazer com ela o que desejar, e o trigo se torna propriedade de Y exatamente da mesma forma. Além disso, um homem pode, obviamente, trocar não apenas os objetos tangíveis que ele possui, mas também seu próprio trabalho, que ele obviamente possui. Assim, Z pode vender seus serviços ao ensinar os filhos do fazendeiro X em troca de parte da colheita do fazendeiro.

Temos assim estabelecido a justificação para o direito de propriedade do processo de livre mercado. Pois a economia de livre mercado, tão complexa quanto esse sistema parece na superfície, não é nada mais do que uma vasta rede de trocas de títulos de propriedade voluntárias e mutuamente acordadas entre duas pessoas ou duas partes tais como nós vimos ocorrer entre os fazendeiros de trigo e repolho ou entre o fazendeiro e o professor. Na economia de livre mercado desenvolvida, o fazendeiro troca o seu trigo por dinheiro. O trigo é comprado pelo dono do moinho que processa e transforma o trigo em farinha. O dono do moinho vende o pão ao atacadista, que por sua vez o vende ao varejista, que finalmente vende ao consumidor. No caso do escultor, ele compra a argila e as ferramentas dos produtores que desenterraram a argila da terra ou daqueles que compraram argila dos mineiros originais, e ele comprou suas ferramentas dos produtores que, por sua vez, compraram o material bruto dos mineiros de minério de ferro.

Como o “dinheiro” entra na equação é um processo complexo, mas deve estar claro aqui que, conceitualmente, o uso do dinheiro é equivalente a qualquer commodity útil que é trocada por trigo, farinha, etc. Em vez de dinheiro, a commodity trocada poderia ser tecido, ferro ou qualquer outra coisa. Em cada etapa do processo, trocas de títulos de propriedade mutuamente benéficas – de bens, serviços ou dinheiro – são acordadas e executadas.

E sobre a relação capital-trabalho? Aqui, também, como no caso do professor vendendo os seus serviços ao fazendeiro, o trabalhador vende seus serviços ao fabricante que comprou o minério de ferro ou ao transportador que comprou toras dos madeireiros. O capitalista cumpre a função de poupar dinheiro para comprar o material bruto e então pagar os trabalhadores antecipadamente em relação à venda do produto para eventuais clientes.

Muitas pessoas, incluindo aqueles utilitaristas defensores do livre mercado como John Stuart Mill, têm estado dispostos a conceder a validade e justiça (se eles não são utilitaristas) ao produtor que possui e recebe os frutos do seu trabalho. Mas eles são relutantes em um ponto: herança. Se Roberto Clemente é dez vezes melhor e mais “produtivo” como jogador do que Joe Smith, eles estão dispostos a conceder justiça a Clemente receber dez vezes mais; mas qual, eles perguntam, seria a justificação para alguém cujo único mérito é ter nascido um Rockefeller herdar muito mais riqueza do que alguém nascido um Rothbard?

Muitas respostas poderiam ser dadas a essa pergunta. Por exemplo, o fato natural é que todo indivíduo deve, por necessidade, nascer em uma diferente condição, em um lugar e tempo diferentes e de pais diferentes. Igualdade de nascimento ou criação, portanto, é uma quimera impossível. Mas no contexto de nossa teoria de justiça de direitos de propriedade, a resposta é focar não no recebedor – não na criança Rockefeller ou na criança Rothbard – mas concentrar em quem dá, no homem que concede a herança. Pois se Smith e Jones e Clemente têm direito ao seu trabalho e à sua propriedade e de trocar títulos dessas propriedades por propriedades de outros obtidas de forma semelhante, então eles também têm direito de dar sua propriedade para quem quer que eles desejem. A questão não é direito de “herança” mas o direito de deixar legado, um direito que deriva do próprio título de propriedade. Se Roberto Clemente possui seu trabalho e o dinheiro que ganha a partir dele, então ele tem o direito de dar esse dinheiro ao bebê Clemente.

Armados com uma teoria de justiça de direitos de propriedade, apliquemo-la à frequentemente controversa questão de como nós devemos considerar títulos de propriedade existentes.

 

Rumo a uma Crítica dos Títulos de Propriedade Existentes

Entre aqueles que pedem pela adoção de um livre mercado e de uma sociedade livre, os utilitaristas, como pode ser esperado, desejam validar todos os títulos de propriedade existentes como definidos pelo governo. Mas vimos a inadequação dessa posição, mais claramente no caso da escravidão, mas de forma semelhante na validação que ela dá a quaisquer atos de confisco e redistribuição governamental, incluindo nossa hipotética propriedade “privada” da área territorial de um estado por parte dos Kennedy e Rockefeller. Mas quanto de redistribuição dos títulos existentes estaria implícita pela adoção de nossa teoria de justiça da propriedade ou de qualquer tentativa de colocar essa teoria em prática? Não seria verdade, algumas pessoas acusam, que todos os títulos de propriedade existentes, ou pelo menos todos os títulos de terras, foram resultados de concessões do governo e redistribuição coercitiva? Seriam todos os títulos de propriedade, portanto, confiscados em nome da justiça? E a quem esses títulos seriam concedidos?

Tomemos primeiramente o caso mais fácil: onde a propriedade existente foi roubada, conforme reconhecido pelo governo (e, portanto, por utilitaristas) bem como por nossa teoria de justiça. Em resumo, suponha que Smith roubou um relógio de Jones. Nesse caso, não há dificuldade em solicitar que Smith abdique do relógio e devolva ao seu verdadeiro dono, Jones. Mas e os casos mais difíceis – em resumo, onde os títulos de propriedade existentes são ratificados por confisco estatal de uma vítima prévia? Isso pode ser aplicado a dinheiro ou especialmente a títulos de terras, uma vez que a terra é uma parte constante, fixa e identificável da superfície terrestre.

Suponha primeiro, por exemplo, que o governo tenha tomado terras ou dinheiro de Jones através de coerção (quer seja por taxação, quer por imposta redefinição de propriedade) e tenha concedido a terra a Smith, ou alternativamente, tenha ratificado ato direto de confisco por parte de Smith. O que diria a nossa política de justiça nesse caso? Nós diríamos, juntamente com a visão geral de crime, que o agressor e dono injusto, Smith, deve ser forçado a renunciar ao título de propriedade (quer seja terra, quer seja dinheiro) e cedê-lo ao seu verdadeiro dono, Jones. Assim, no caso de um injusto dono identificável e de uma vítima ou justo dono identificável, o caso é claro: a restituição à vítima de sua propriedade de direito. Smith, obviamente, não deve ser compensado por essa restituição, uma vez que a compensação seria feita cumprir injustamente sobre a própria vítima ou sobre o corpo geral de pagadores de impostos. De fato, há um caso muito melhor para adicional punição a Smith, mas não há espaço aqui para desenvolver a teoria de punição para crime ou agressão.

Suponha, em seguida, um segundo caso, no qual Smith roubou um pedaço de terra de Jones mas Jones morreu; ele deixa, contudo, um herdeiro, Jones II. Nesse caso, procedemos como antes: há um agressor identificável, Smith, e um herdeiro identificável da vítima, Jones II, que agora herdou a condição de justo dono do título. Novamente, Smith deve ser forçado a renunciar a terra e cedê-la a Jones II.

Mas suponha um terceiro caso mais difícil. Smith ainda é o ladrão, mas Jones e toda a sua família e seus herdeiros morreram, seja pelo próprio Jones ou por causas naturais. Jones não deixou testamento; o que então deve acontecer com a propriedade? O princípio fundamental é que Smith, sendo o ladrão, não pode manter os frutos de sua agressão; mas, nesse caso, a propriedade se torna sem dono e disponível da mesma forma que qualquer pedaço de propriedade sem dono. O “princípio da apropriação original” se torna aplicável no sentido de que o primeiro usuário ou ocupante da propriedade recém-declarada sem dono se torna o adequado e justo dono. A única estipulação é que o próprio Smith, sendo o ladrão, não está apto para essa apropriação original.[9]

Suponha agora um quarto caso e um que é geralmente mais relevante aos problemas de títulos de terras no mundo moderno. Smith não é um ladrão e nem recebeu a terra diretamente por uma concessão do governo; mas seu título é derivado de seu ancestral que injustamente se apropriou do título da propriedade; o ancestral, Smith I, digamos, roubou a propriedade de Jones I, o dono de direito. Qual deveria ser a disposição da propriedade agora? A resposta, do nosso ponto de vista, depende completamente se os herdeiros de Jones, os substitutos das vítimas identificáveis, ainda estão vivos ou não. Suponha, por exemplo, que Smith VI “possui” a terra legalmente, mas que Jones VI é ainda existente e identificável. Então teríamos que falar que, enquanto Smith VI não é ele mesmo um ladrão e não é punível como tal, seu título da terra, sendo unicamente derivado de herança passada por Smith I, não dá a ele verdadeira propriedade, e que ele, também, deve renunciar à terra – sem compensação – e entregá-la a Jones VI.

Contudo, pode-se protestar, e as melhorias que os Smith II-VI podem ter adicionado à terra? Não mereceria Smith VI compensação por essas adições legitimamente possuídas à terra original recebida de Jones I? A resposta depende da mobilidade e separabilidade dessas melhorias. Suponha, por exemplo, que Smith rouba um carro de Jones e o vende a Robinson. Quando o carro é apreendido, então Robinson, apesar de ter comprado o carro de Smith de boa fé, não tem título mais válido do que Smith, que era nulo, e, portanto, deve entregar o carro a Jones sem compensação. (Ele sofreu fraude de Smith e deve tentar extrair compensação de Smith, não da vítima Jones). Mas suponha que Robinson, nesse meio tempo, tenha melhorado o carro. A resposta depende de se essas melhorias são separáveis do carro. Se por exemplo, Robinson instalou um novo rádio que não existia antes, então ele certamente deve ter o direito de retirá-lo antes de devolver o carro a Jones. De forma semelhante, no caso de terra, na extensão em que Smith VI tenha simplesmente melhorado a terra em si e inextricavelmente misturado a ela seus recursos, não há nada que ele possa fazer; mas se, por exemplo, Smith VI ou seus ancestrais construíram novos prédios sobre a terra, então eles têm o direito de demoli-los ou transportá-los antes de devolver a terra a Jones VI.

Mas e se Smith I de fato roubou a terra de Jones I, mas todos os descendentes ou herdeiros de Jones estão perdidos na antiguidade ou não podem ser encontrados? Qual deve ser o status da terra então? Nesse caso, uma vez que Smith VI não é ele mesmo um ladrão, ele se torna o legítimo dono da terra com base no nosso princípio da apropriação original. Pois se a terra está “sem dono” e disponível, então Smith VI a tem ocupado e usado e, portanto, se torna o dono justo e de direito com base na apropriação original. Além do mais, todos os seus descendentes têm um título adequado e válido com base em serem seus herdeiros.

Está claro, então, que mesmo que possamos mostrar que a maioria dos títulos de terras existentes tem origem na coerção e roubo, os donos existentes ainda são justos e legítimos donos se

  1. eles próprios não tomaram parte em agressão, e
  2. nenhum dos herdeiros identificáveis das vítimas originais podem ser encontrados.

Na maioria dos casos atuais de títulos de terras esse provavelmente será o caso. A fortiori, obviamente, se nós simplesmente não sabemos se os títulos de terras originais foram adquiridos por coerção, então o nosso princípio de apropriação original fornece aos atuais donos da propriedade o benefício da dúvida e os estabelece como devidos e justos donos. Assim, o estabelecimento de nossa teoria da justiça de títulos de propriedade normalmente não levará a um grande volume de transferências de propriedades de terras.

Nos Estados Unidos temos sido afortunados o bastante para escapar em grande parte de contínua agressão em relação a títulos de terras. É verdade que originalmente a Coroa Inglesa deu títulos de terras injustamente a pessoas favorecidas (por exemplo, o território aproximadamente do tamanho do estado de Nova York como propriedade do Duque de York), mas felizmente os beneficiados estavam bastante interessados em rápidos retornos e subdividiram e venderam suas terras aos verdadeiros colonizadores. Tão logo os colonizadores compraram suas terras, seus títulos foram legitimados, e assim foram os títulos de todos aqueles que lhes herdaram ou compraram. Mais tarde, o governo dos Estados Unidos infelizmente reivindicou todas as terras virgens como “domínio público” e então injustamente vendeu as terras a especuladores que não haviam conquistado um título de apropriação original. Mas eventualmente esses especuladores venderam as terras aos verdadeiros colonizadores, e desde então o título das terras foi válido e legítimo.[10]

Na América do Sul e em grande parte do mundo subdesenvolvido, entretanto, esses assuntos são consideravelmente diferentes. Pois aqui, em muitas áreas, um estado invasor conquistou as terras de camponeses e então distribuiu tais terras para vários comandantes militares como seus feudos “privados”, para a partir de então extraírem “aluguel” dos infelizes camponeses. Os descendentes dos conquistadores ainda presumem possuir a terra arada pelos descendentes dos camponeses originais, pessoas com uma reivindicação claramente justa à propriedade da terra. Nessa situação a justiça requer a desocupação dos títulos de terras por esses “feudais” ou “coercitivos” proprietários de terra (que estão em uma posição equivalente aos nossos hipotéticos Rockefellers e Kennedys) e a entrega dos títulos de propriedade, sem compensação, aos indivíduos camponeses que são os “verdadeiros” donos de suas terras.

Muito do ímpeto por “reforma agrária” pelos camponeses do mundo subdesenvolvido é precisamente motivado por uma aplicação instintiva da nossa teoria de justiça: pelo entendimento dos camponeses de que as terras que eles têm arado por gerações são “suas” terras e que a reivindicação do proprietário é coercitiva e injusta. É irônico que, nesses numerosos casos, a única resposta dos defensores utilitaristas do livre mercado seja defender os existentes títulos de terras, independentemente de sua injustiça, e falar aos camponeses para ficarem quietos e “respeitar a propriedade privada”. Uma vez que os camponeses estão convencidos de que a propriedade é seu título privado, não é difícil de entender por que eles falham em se impressionar; mas uma vez que eles descobrem que os supostos defensores de direitos de propriedade e do capitalismo de livre mercado são seus ferrenhos inimigos, eles geralmente são forçados a se voltar para os únicos grupos organizados que, ao menos retoricamente, defendem suas reivindicações e estão dispostos a executar a requerida retificação de títulos de propriedade: os socialistas e comunistas.

Em resumo, a partir de uma simples consideração utilitarista de consequências, os utilitaristas pró-livre mercado têm feito muito mal ao mundo subdesenvolvido, resultado de ignorarem o fato de que outros além de si mesmos, muito incovenientemente, têm uma grande paixão por justiça. Obviamente, após socialistas e comunistas tomarem o poder, eles farão o seu melhor para coletivizar as terras dos camponeses e uma das principais lutas da sociedade socialista seria o estado versus camponeses. Mas mesmo aqueles camponeses que estão cientes da falsidade socialista na questão da terra podem ainda sentir que com os socialistas e comunistas eles ao menos têm uma chance. E às vezes, obviamente, os camponeses foram capazes de vencer e forçar os regimes comunistas a manter suas mãos fora de sua propriedade privada recém-conquistada: notavelmente no caso da Polônia e Ioguslávia.

A defesa utilitarista do status quo será a menos viável – e, portanto, a menos utilitarista – nessas situações onde o status quo é o mais claramente injusto. Como frequentemente acontece, muito mais do que os utilitaristas admitem, justiça e genuína utilidade estão aqui unidas.

Para resumir, todos os existentes títulos de propriedade podem ser considerados justos sob o princípio da apropriação original, dado

  1. que nunca possa haver propriedade de pessoas;
  2. que o proprietário atual não roubou a propriedade; e particularmente
  3. que a qualquer proprietário justo identificável (a vítima original de roubo ou seu herdeiro) deve ser entregue sua propriedade.

 

________________________________________

Notas

[1] Economistas fracassaram em atentar para a ênfase em títulos de propriedade implícita em trocas destacada pelo filósofo social Spencer Heath: “Somente aquelas coisas que são possuídas podem ser trocadas ou usadas como instrumento de serviço ou troca. Essa troca não é transporte; é a transferência da propriedade ou título. Esse é um processo social, não físico”. Spencer Heath, Citadel, Market, and Altar (Baltimore, Md.: Science of Society Foundation, 1957), p. 48.

[2] Para uma bem-vinda ênfase recente à subjetividade do custo, ver James M. Buchanan, Cost and Choice (Chicago: Markham, 1969).

[3] Eu não quis implicar que nenhuma ciência social ou análise econômica possa ser wertfrei, apenas que qualquer tentativa de aplicar a análise à arena política, por mais remota, deve envolver e implicar algum tipo de posição ética.

[4] Sobre a arbitrariedade e incerteza de todas as leis legislativas, ver Bruno Leoni, Freedom and the Law (Los Angeles: Nash, 1972).

[5] A questão aqui não é, obviamente, criticar todos os aluguéis per se, mas chamar atenção para a questão da legitimidade dos títulos de propriedade (aqui propriedade de terras) derivada de ações coercitivas do governo.

[6] John Locke, “An Essay Concerning the True, Original, Extent and End of Civil Government,” em E. Barker, ed., Social Contract (New York: Oxford University Press, 1948), pp. 17–18.

[7] A ser igualmente rejeitada é a grotesca proposta do Professor Kenneth E. Boulding, que, contudo, é uma típica sugestão de um economista utilitarista pró-mercado. Esse é um esquema para o governo permitir apenas um certo número máximo de permissões para bebês por mãe, mas então permitir um “livre” mercado na compra e venda de direitos dos bebês. Esse plano, obviamente, nega o direito de cada mãe sobre seu próprio corpo. O plano de Boulding pode ser encontrado em Kenneth E. Boulding, The Meaning of the 20th Century (New York: Harper and Row, 1964). Para uma discussão do plano, ver Edwin G. Dolan, TANSTAAFL: The Economic Strategy for Environmental Crisis (New York: Holt, Rinehart, and Winston, 1971), p. 64.

[8] Locke, An Essay Concerning the True, Original, Extent, and End of Civil Government, p. 18.

[9] Nem o governo é apto. Não há espaço aqui para elaborar meu ponto de vista de que o governo nunca pode ser justo proprietário. É suficiente dizer aqui que o governo ganha sua receita de apropriação de produção na forma de impostos ao invés de pela produção em si e, portanto, o conceito de justa propriedade não pode nunca se aplicar ao governo.

[10] Essa legitimidade, obviamente, não se aplica à vasta quantidade de terras no oeste ainda possuída pelo governo federal que se recusa a abri-las para apropriação original. Nossa resposta a essa situação deve ser que o governo deve abrir todo o seu domínio público à apropriação original sem delongas.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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