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III – A Anatomia do Estado

  1. O que o estado não é

O estado é quase universalmente considerado uma instituição de serviço social.  Alguns teóricos veneram o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais.  Porém quase todos o consideram um meio necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado contra o “setor privado” e que frequentemente ganha essa disputa pelos recursos.  Com o advento da democracia, a identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós somos o governo” ou “nós somos o estado”.

O termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política.  Se “nós somos o estado”, então qualquer coisa que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como também “voluntário” da parte do respectivo indivíduo.  Se o estado incorre numa dívida pública que tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está “fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu nada de lamentável.

Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi voluntário da sua parte.  Não seria necessário insistir mais neste ponto; no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em maior ou menor grau.

Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.  O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas.[1]  Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada.[2]  Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.

Se, então, o estado não somos “nós”, se ele não é a “família humana” se reunindo para decidir sobre os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é afinal?  Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter o monopólio do uso da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da coerção.

Enquanto os outros indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça de prisão e pelo uso das armas.[3]  Depois de usar a força e a violência para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus súditos. Poderíamos pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.

 

  1. O que o estado é

O ser humano nasce indefeso e, como tal, precisa utilizar a sua mente para aprender a obter os recursos que a natureza lhe fornece e a transformá-los (por exemplo, através do investimento em “capital”) em objeto e em locais de modo que possam ser utilizados para a satisfação das suas necessidades e para a melhoria do seu padrão de vida.  A única forma por meio da qual o ser humano pode fazer isto é através do uso da sua mente e da sua energia para transformar os recursos (“produção”) e da troca destes produtos por produtos criados pelos outros.  O ser humano descobriu que, por meio do processo de troca mútua e voluntária (comércio), a produtividade — e, logo, o padrão de vida de todos os participantes desta troca — pode aumentar significativamente.  Portanto, o único caminho “natural” para o ser humano sobreviver e alcançar a prosperidade é utilizando sua mente e energia para se envolver no processo de produção-e-troca.  Ele realiza isto, primeiro, encontrando recursos naturais, segundo, transformando-os (“misturando seu trabalho a eles”, tal como disse John Locke), fazendo deles a sua propriedade individual, e depois trocando esta propriedade pela propriedade de outros que foi obtida de forma semelhante.

O caminho social ditado pelas exigências da natureza humana, portanto, é o caminho dos “direitos de propriedade” e do “livre mercado” de doações ou trocas de tais direitos.  Ao longo deste caminho, o ser humano aprendeu a evitar os métodos “selvagens” da luta pelos recursos escassos — de forma que A pudesse apenas adquiri-los à custa de B —e, ao invés disso, aprendeu a multiplicar imensamente esses recursos por meio do processo harmonioso e pacífico da produção e troca.

O grande sociólogo alemão Franz Oppenheimer apontou para o fato de que existem duas formas mutuamente exclusivas de adquirir riqueza: a primeira, a forma referida acima, de produção e troca, ele chamou de “meio econômico”.  A outra forma é mais simples, na medida em que não requer produtividade; é a forma em que se confisca os bens e serviços do outro através do uso da força e da violência.  É o método do confisco unilateral, do roubo da propriedade dos outros.  A este método Oppenheimer rotulou de “o meio político” de aquisição de riqueza.  Deve estar claro que o uso pacífico da razão e da energia na produção é o caminho “natural” para o homem: são os meios para a sua sobrevivência e prosperidade nesta terra.  Deve estar igualmente claro que o meio coercivo, explorador, é contrário à lei natural; é parasítico, pois em vez de adicionar à produção, apenas subtrai.

O “meio político” desvia a produção para um indivíduo — ou grupo de indivíduos — parasita e destrutivo; e este desvio não só subtrai da quantidade produzida como também reduz o incentivo do produtor para produzir além de sua própria subsistência.  No longo prazo, o ladrão destrói a sua própria subsistência ao diminuir ou eliminar a fonte do seu próprio suprimento.  Mas não só isso: mesmo no curto prazo, o predador age contrariamente à sua natureza como ser humano.

Estamos agora em uma posição que nos permite responder mais satisfatoriamente à questão: o que é o estado? O estado, nas palavras de Oppenheimer, é “a organização dos meios políticos”; é a sistematização do processo predatório sobre um determinado território.[4]  Pois o crime é, no máximo, esporádico e incerto; já o parasitismo é efêmero e a coerciva ligação parasítica pode ser cortada a qualquer momento por meio da resistência das vítimas.  O estado, no entanto, providencia um meio legal, ordeiro e sistemático para a depredação da propriedade privada; ele torna certa, segura e relativamente “pacífica” a vida da casta parasita na sociedade.[5]

Dado que a produção tem sempre de preceder qualquer depredação, conclui-se que o livre mercado é anterior ao estado.  O estado nunca foi criado por um “contrato social“; ele sempre nasceu da conquista e da exploração.  O paradigma clássico é aquele de uma tribo conquistadora que resolveu fazer uma pausa no seu método — testado e aprovado pelo tempo — de pilhagem e assassinato das tribos conquistadas ao perceber que a duração do saque seria mais longa e segura — e a situação mais agradável — se ela permitisse que a tribo conquistada continuasse vivendo e produzindo, com a única condição de que os conquistadores agora assumiriam a condição de governantes, exigindo um tributo anual constante.[6]

Um dos métodos de nascimento de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da “Ruritânia do Sul”, um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um determinado território.  Cumprida a missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se “Rei do estado soberano e independente da Ruritânia do Sul”.  E se ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à “família das nações”, e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na nobreza legítima do reino.

 

  1. Como o estado se eterniza

Uma vez estabelecido o estado, o problema do grupo ou “casta” dominante passa a ser o de como manter o seu domínio.[7]  Embora o seu modus operandi seja o da força, o problema básico e de longo prazo é ideológico. Pois para continuar no poder, qualquer governo (não simplesmente um governo “democrático”) tem de ter o apoio da maioria dos seus súditos.  E esse apoio, vale observar, não precisa ser um entusiasmo ativo; pode bem ser uma resignação passiva, como se se tratasse de uma lei inevitável da natureza.  Mas tem de haver apoio no sentido de algum tipo de aceitação; caso contrário, a minoria formada pelos governantes estatais seria em última instância sobrepujada pela resistência ativa da maioria do público.

Uma vez que a depredação tem necessariamente de ser mantida por um excedente da produção, é um fato necessariamente verdadeiro que a classe que constitui o estado — a burocracia estabelecida (e a nobreza) — tem de ser uma pequena fração minoritária no território, embora possa, claro, comprar aliados entre os grupos importantes da população.  Como tal, a principal tarefa dos governantes é sempre a de assegurar a aceitação ativa ou resignada da maioria dos cidadãos.[8][9]

Claro que um dos métodos para assegurar o apoio é por meio da criação de interesses econômicos legalmente garantidos.  Como tal, o rei sozinho não pode governar; ele precisa de um grupo considerável de seguidores que desfrutem os privilégios do domínio, por exemplo, os membros do aparato estatal, como a burocracia em tempo integral ou a nobreza estabelecida.[10]  Mas ainda assim isto assegura apenas uma minoria de apoiadores fervorosos, e até a compra essencial de apoio por meio de subsídios e outras concessões de privilégios não é suficiente para obter o consentimento da maioria.  Para produzir esta aceitação crucial, a maioria tem de ser persuadida por uma ideologia de que o seu governo é bom, sábio e, pelo menos, inevitável e certamente melhor do que outras possíveis alternativas.  A promoção desta ideologia entre o povo é a tarefa social vital dos “intelectuais”.  Pois as massas não criam as suas próprias ideias, ou sequer pensam de maneira independente sobre estas ideias; elas seguem passivamente as ideias adotadas e disseminadas pelo grupo de intelectuais.  Os intelectuais são, por isso, os “formadores de opinião” da sociedade.  E dado que é precisamente de uma modelagem da opinião aquilo de que o estado desesperadamente precisa, a razão da milenar aliança entre o estado e os intelectuais torna-se clara.

É evidente que o estado precisa de intelectuais; mas não é algo tão evidente por que os intelectuais precisam do estado.  Posto de forma simples, podemos afirmar que o sustento do intelectual no livre mercado nunca é algo garantido, pois o intelectual tem de depender dos valores e das escolhas das massas dos seus concidadãos, e é uma característica indelével das massas o fato de serem geralmente desinteressadas de assuntos intelectuais.  O estado, por outro lado, está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios.  E os intelectuais serão generosamente recompensados pela importante função que executam para os governantes do estado, grupo ao qual eles agora pertencem.[11]

A aliança entre o estado e os intelectuais ficou simbolizada, no século XIX, no desejo ardente dos professores da Universidade de Berlim em formar o “apoio intelectual da Casa de Hohenzollern”.  Já no século XX, podemos observar o comentário revelador feito por um eminente acadêmico marxista sobre o estudo crítico do antigo despotismo Oriental realizado pelo Professor Wittfogel: “A civilização que o Professor Wittfogel ataca tão veemente foi uma civilização que colocou poetas e eruditos no funcionalismo público”.[12]  Dentre inúmeros exemplos, podemos citar o desenvolvimento recente da “ciência” da estratégia a serviço do principal braço governamental no uso da violência, o aparelho militar.[13]  Outra venerável instituição é a do historiador oficial — ou o historiador “da corte” — dedicada a difundir a visão dos governantes acerca das suas ações e das dos seus predecessores.[14]

Muitos e variados têm sido os argumentos por meio dos quais o estado e seus intelectuais têm induzido os seus súditos a apoiar o seu domínio.  As linhas de argumento podem ser basicamente resumidas desta forma: (a) os governantes estatais são homens sábios e grandiosos (governam por “decreto divino”, são a “aristocracia” dos homens, são “cientistas especialistas”), muito melhores e mais sábios do que os seus bons, porém simplórios, súditos, e (b) a subjugação pelo governo é inevitável, absolutamente necessária e de longe melhor do que os males indescritíveis que sucederiam à sua queda.  A união entre Igreja e estado foi um dos mais bem sucedidos e mais antigos destes mecanismos ideológicos.  O governante ou era ungido por Deus ou era ele mesmo, no caso do domínio absoluto de muitos déspotas Orientais, o próprio Deus; como tal, qualquer resistência ao seu domínio seria blasfêmia.  Os sacerdotes do estado cumpriam a função intelectual básica de obter o apoio popular e até a adoração aos governantes.[15]

Outro mecanismo bem sucedido foi o de instaurar o medo acerca de quaisquer sistemas alternativos de governo ou não governo.  Os governantes atuais, alegava-se, fornecem aos cidadãos um serviço essencial pelo qual devem estar muito gratos: a proteção contra criminosos e saqueadores esporádicos.  Pois para o estado preservar seu próprio monopólio predatório, ele realmente deve garantir que o crime privado e não sistemático seja mantido num grau mínimo; o estado sempre zelou ciosamente pela sua própria preservação.  Nos séculos mais recentes, o estado tem sido especialmente bem sucedido em fomentar o medo acerca de outros governantes estatais.  Dado que a área territorial do globo tem sido parcelada entre estados específicos, uma das doutrinas essenciais do estado foi a de se identificar com o território que domina.

Uma vez que a maioria das pessoas tende a amar a sua terra natal, a identificação dessa terra e do seu povo com o estado foi um meio de usar o patriotismo natural para benefício do próprio estado.  Se a “Ruritânia” estivesse sendo atacada pela “Uldávia”, a primeira função do estado e dos seus intelectuais seria convencer as pessoas da Ruritânia que o ataque era dirigido a eles e não apenas à casta dominante.  Desta forma, uma guerra entre governantes seria transformada numa guerra entre povos, em que a massa dos indivíduos agiria em defesa dos seus governantes sob a falsa crença de que os governantes estariam agindo em defesa de seus indivíduos.  Este apelo ao “nacionalismo” tem sido útil, no Ocidente, apenas em séculos mais recentes; não há muito tempo, a massa de súditos olhava para as guerras como batalhas irrelevantes entre diversos grupos de nobres.

São muitas e sutis as armas ideológicas que o estado tem manejado através dos séculos.  Uma destas excelentes armas tem sido a tradição.  Quanto mais tempo o domínio de um estado tem se mantido preservado, mais poderosa é esta arma; pois desta forma a Dinastia X ou o estado Y mantém o aparente peso da tradição dos séculos como sustento para sua própria existência.[16]  A adoração aos antepassados passa então a ser uma forma não muito sutil de adoração aos antigos governantes.  O maior perigo para o estado é a crítica intelectual independente; não há melhor forma de abafar essa crítica do que atacar qualquer voz isolada, qualquer um que levante novas dúvidas, como sendo um profano violador da sabedoria dos seus ancestrais.

Outra potente força ideológica é desaprovar e rebaixar o indivíduo e exaltar a coletividade da sociedade.  Pois uma vez que qualquer tipo de domínio implica uma aceitação da maioria, qualquer perigo ideológico para o domínio pode começar apenas a partir de um ou de poucos indivíduos que demonstrem ter pensamento independente.  A ideia nova, e principalmente a ideia nova e crítica, só pode ter início como uma pequena opinião minoritária; como tal, o estado tem de cortar a ideia pela raiz, ridicularizando qualquer ponto de vista que desafie a opinião das massas.  “Dê ouvido apenas aos seus irmãos” ou “Aja conforme a sociedade” tornam-se assim as armas para esmagar a dissensão individual.[17]  Através destes meios, as massas nunca vão descobrir que o rei está nu.[18]

É também muito importante que o estado faça parecer que o seu domínio é inevitável; mesmo que o seu reinado seja detestado, ele será assim visto com resignação passiva, tal como atesta o dito sobre a “inevitabilidade da morte e dos impostos”.  Um método é o da indução do determinismo historiográfico, em oposição ao livre arbítrio individual.  Se a Dinastia X nos governa é porque as Inexoráveis Leis da História (ou a Vontade Divina, ou o Absoluto, ou as Forças Materiais Produtivas) assim determinaram, e nada que uns indivíduos insignificantes possam fazer será capaz de alterar este decreto inevitável.  É também importante para o estado inculcar nos seus súditos uma aversão a qualquer “teoria da conspiração da história”, pois uma busca por conspirações significa uma busca por motivos e uma atribuição de responsabilidade por delitos históricos.  Se, contudo, qualquer tirania imposta pelo estado, ou corrupção, ou agressão militar, foi causadanão pelos governantes estatais, mas sim por “forças sociais” misteriosas e ocultas, ou pelo arranjo imperfeito do mundo, ou, se de alguma forma, todos foram responsáveis, então não há qualquer razão para as pessoas ficarem indignadas ou se insurgirem contra tais delitos.  Ademais, um ataque às “teorias da conspiração” tem como objetivo fazer com que os súditos se tornem mais crédulos em relação às razões de “bem-estar geral” que são sempre apresentadas pelo estado como justificativa para os seus atos despóticos.  Uma “teoria da conspiração” pode perturbar o sistema ao fazer com que o público desconfie da propaganda ideológica do estado.

Outro velho e eficaz método para curvar os súditos à vontade do estado é a indução da culpa.  Qualquer aumento do bem-estar privado pode ser atacado como “ganância inaceitável”, “materialismo” ou “riqueza excessiva”; o lucro pode ser atacado como “exploração” e “agiotagem”; as trocas mutuamente benéficas são denunciadas como “egoístas”, chegando-se sempre, de alguma forma, à conclusão de que mais recursos devem ser retirados do setor privado e desviados para o “setor público”.  A culpa induzida torna o público mais suscetível a aceitar esta transferência.  Pois ao passo que indivíduos tendem a se entregar à “cobiça egoísta”, a incapacidade dos governantes estatais em realizar trocas voluntárias supostamente significa a sua devoção a causas mais nobres e elevadas — a depredação parasítica seria assim uma atitude aparentemente mais elevada, estética e moralmente, do que o trabalho pacífico e produtivo.

Na nossa atual e mais secular época, o direito divino do estado foi suplantado pela invocação de um novo Deus, a Ciência.  O governo estatal é agora proclamado como ultracientífico, como constituído por um painel de especialistas.  Mas mesmo com a “razão” sendo mais invocada hoje do que em séculos passados, essa não é a verdadeira razão do indivíduo e do exercício do seu livre arbítrio; é ainda a razão coletivista e determinista, que implica sempre agregados holísticos e a manipulação coerciva de súditos passivos feita pelos seus governantes.

O aumento do uso de jargões científicos permitiu aos intelectuais do estado tecer justificativas obscurantistas para o domínio estatal as quais teriam sido imediatamente recebidas com zombaria e escárnio pela população de uma época mais simples.  Um assaltante que justificasse o seu roubo dizendo que na verdade ajudou as suas vítimas, pois o gasto que fez do dinheiro trouxe um estímulo ao comércio, teria convencido pouca gente; mas quando esta teoria se veste com equações keynesianas e referências impressivas ao “efeito multiplicador”, ela infelizmente é recebida com maior respeito.  E assim prossegue o ataque ao bom senso, em cada época realizado de maneira diferente.

Por conseguinte, sendo o apoio ideológico indispensável para a manutenção do estado, este é incessantemente obrigado a impressionar o público com a sua “legitimidade” de forma a distinguir suas atividades daquelas praticadas por uma mera quadrilha de mafiosos.

A ininterrupta determinação dos seus ataques ao senso comum não é acidental, pois, como afirmou vividamente Mencken:

O homem comum, quaisquer que sejam as suas falhas, pelo menos vê claramente que o governo é algo que existe à parte de si e à parte da maioria dos seus concidadãos — que o governo é um poder separado, independente e hostil, apenas parcialmente sob o seu controle e capaz de prejudicá-lo seriamente.  Não é por acaso que roubar o governo é visto em geral como um crime de menor magnitude do que roubar um indivíduo, ou até mesmo uma empresa .. O que está por trás desta visão, creio eu, é a profunda noção de que há um antagonismo fundamental entre o governo e as pessoas que ele governa.  O governo é tido não como um comitê de cidadãos eleitos para resolver os problemas comuns de toda população, mas sim como uma corporação autônoma e separada, dedicada principalmente à exploração da população para benefício dos seus próprios membros .. Quando um cidadão é roubado, uma pessoa digna foi privada dos frutos do seu esforço e poupança; quando o governo é roubado, o pior que acontece é que uns patifes ociosos ficam com menos dinheiro para brincar do que tinham antes.  A noção de que mereceram ganhar esse dinheiro não passa pela cabeça de ninguém; afina, para qualquer pessoa sensata, esta ideia é ridícula.[19]

 

  1. Como o estado transcende seus limites

Como Bertrand de Jouvenel sabiamente salientou, ao longo dos séculos os homens foram formando conceitos com o intuito de refrear e limitar o domínio estatal; e o estado, recorrendo aos seus aliados intelectuais, tem se mostrado capaz de transformar, um a um, todos estes conceitos em carimbos de legitimidade e virtude, anexando-os aos seus decretos e ações.  Originalmente, na Europa Ocidental, o conceito de soberania divina afirmava que os reis podiam governar apenas de acordo com a lei divina; os reis, entretanto, perverteram esse conceito e o transformaram em um carimbo de aprovação divina para qualquer ato real.  O conceito de democracia parlamentar começou como uma restrição popular ao domínio monárquico absoluto e terminou com o parlamento não apenas se tornando parte essencial do estado, como também a manifestação da plena soberania deste.  Tal como de Jouvenel conclui:

Muitos escritores interessados nas teorias da soberania se debruçaram sobre estes mecanismos restritivos.  Mas, por fim, cada uma destas teorias perdeu, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito original e acabou por funcionar como um trampolim para o Poder, provendo-lhe a ajuda poderosa de um soberano invisível com o qual ele podia, com o passar do tempo, se identificar por completo.[20]

O mesmo aconteceu com doutrinas mais específicas: os “direitos naturais” do indivíduo, consagrados por John Locke e pela Carta dos Direitos (Bill of Rights), converteram-se no estatista “direito a um emprego”; o utilitarismo abandonou seus argumentos em prol da liberdade e passou a se concentrar em argumentos contra a resistência aos ataques do estado à liberdade etc.

É certo que a mais ambiciosa tentativa de impor limites ao estado foi a Carta dos Direitos e outras partes restritivas da Constituição Americana, na qual foram escritos limites explícitos ao governo os quais deveriam servir como lei fundamental a ser interpretada por um sistema judicial supostamente independente dos outros ramos do governo.  Todos os americanos estão cientes do processo ao longo do qual esta construção de limites presentes na Constituição foi sendo alargada de modo inexorável durante o século passado.  Mas poucos foram tão perspicazes como o Professor Charles Black em notar que, neste processo, o estado transformou a própria revisão judicial, a qual, de um mecanismo limitador, passou a ser cada vez mais um instrumento que provê legitimidade ideológica às ações do governo.  Pois se um decreto judicial de “inconstitucionalidade” é um poderoso entrave ao poder do governo, um veredicto implícito ou explícito de “constitucionalidade” é uma arma poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental.

O Professor Black começa a sua análise indicando a necessidade crucial da “legitimidade” para que qualquer governo sobreviva, sendo que esta legitimidade corresponde a uma aceitação majoritária básica do governo e de suas ações.[21]  A aceitação da legitimidade torna-se um problema peculiar em um país como os Estados Unidos, em foram colocadas “limitações substanciais na teoria sobre a qual o governo se baseia”.  O que é preciso, acrescenta Black, é um meio pelo qual o governo possa assegurar ao público que a expansão dos seus poderes é, de fato, “constitucional”.  E isto, conclui, tem sido a principal função histórica da revisão judicial.

Deixemos Black ilustrar o problema:

A ameaça suprema [para o governo] é a ampla disseminação de um sentimento de ultraje e desafeição entre a população, e a consequente perda de autoridade moral por parte do governo, independentemente de quanto tempo ele consiga mantê-la pela força ou pela inércia ou pela simples falta de uma alternativa atraente e imediatamente disponível.  Quase todas as pessoas que vivem sob um governo com poderes limitados serão, cedo ou tarde, sujeitados a alguma ação governamental que, em sua opinião, consideram estar além do poder do governo ou mesmo totalmente proibida ao governo.  Um homem pode ser conscrito embora não encontre nada na Constituição autorizando o recrutamento para o serviço militar obrigatório ….  A um agricultor é dito o quanto ele pode produzir de trigo; ele acredita, e descobre que alguns advogados respeitáveis partilham desta crença de que o governo tem o direito tanto de lhe dizer o quanto de trigo ele pode produzir como de lhe dizer com quem é que a sua filha se pode casar.  Um homem vai para a cadeia por dizer o que quer e entra em sua cela proferindo …. “o Congresso não passará quaisquer leis que limitem a liberdade de expressão” …. A um comerciante é dito o quanto pode cobrar, e quanto tem de cobrar, por leite desnatado.

Existe uma ameaça real que cada uma destas pessoas (e quem não se encontra entre elas?) chegue a um momento em que irá confrontar o conceito de limite do poder governamental com a realidade (tal como a vê) da flagrante transgressão dos limites efetivos, e que tire a conclusão óbvia acerca do status do governo em relação à legitimidade.[22]

Esta ameaça é afastada pelo estado por meio da propaganda doutrinal de que uma agência terá de ter a decisão final no que diz respeito à constitucionalidade, e que esta agência, em última análise, terá de fazer parte do estado.[23] Pois, embora a aparente independência do poder judicial tenha desempenhado um papel vital em fazer com que as suas ações pareçam sagradas para o grosso da população, é também — e cada vez mais — verdade que o poder judicial é uma parte essencial do aparato governamental e é designado pelos ramos legislativo e executivo.  Black admite que isto significa que o estado se colocou no papel de juiz de sua própria causa, violando assim o princípio jurídico básico de se procurar chegar a decisões justas.  Ele nega peremptoriamente a possibilidade de qualquer alternativa.[24]

Black acrescenta:

O problema, então, é criar meios de decisão governamental que possam [esperamos] reduzir a um mínimo tolerável a intensidade da objeção ao governo ser juiz de sua própria causa.  Tendo feito isto, podemos apenas ter a esperança de que esta objeção, embora ainda teoricamente sustentável, perca força efetiva até o ponto em que o trabalho de legitimação das instituições de decisão possa ganhar aceitação.[25]

Em sua última análise, Black considera que, dado o fato de que o estado perpetuamente julga em sua própria defesa, ele conseguir desta forma chegar a decisões justas e legítimas seria “algo milagroso”.[26]

Aplicando a sua tese ao famoso conflito entre a Corte Suprema e o New Deal, o Professor Black repreende de forma ríspida os seus companheiros pró-New Deal, pela sua falta de visão, que denunciaram a obstrução judicial:

A versão padrão da história entre o New Deal e a Suprema Corte, embora de certa maneira acurada, enfatiza a questão errada …. Concentra-se nas dificuldades e quase se esquece do resultado que acabou por ser produzido.  A consequência desta história foi que [e isto é o que eu gosto de enfatizar], após cerca de vinte meses a opor-se …. a Suprema Corte, sem uma única alteração na lei de sua autoria, ou sequer em seus membros, colocou o selo afirmativo de legitimidade no New Deal, chancelando uma concepção completamente nova de governo nos EUA.[27]

Desta forma, a Suprema Corte foi capaz de silenciar a grande massa de americanos que vinha demonstrando fortes objeções constitucionais ao New Deal:

Claro que nem todos ficaram satisfeitos.  O mito do laissez-faire constitucionalmente ordenado ainda acalenta o coração de alguns sonhadores na terra da irrealidade raivosa.  Mas já não há qualquer dúvida no público, perigosa ou significativa, quanto ao poder constitucional do Congresso para lidar como lida com a economia nacional….

Não havia qualquer outro meio, senão a Suprema Corte, para conceder legitimidade ao New Deal.[28]

Como Black reconhece, um dos maiores teóricos políticos que constatou — e muito antes que outros — a brecha flagrante em fazer com que um limite constitucional ao governo esteja sob o poder de interpretação final da Suprema Corte foi John C. Calhoun.  Calhoun não se contentou com o “milagre”, e prosseguiu com uma profunda análise do problema constitucional.  No seu trabalho intitulado Disquisition, Calhoun demonstrou a tendência inerente do estado a ultrapassar os limites de uma constituição:

Uma constituição escrita certamente possui muitas vantagens importantes, mas é um erro crasso supor que a mera inserção de provisões para restringir e limitar o poder do governo, sem dotar aqueles para quem as provisões são inseridas com os meios para impor o seu cumprimento, [itálicos meus] será suficiente para prevenir que os partidos maiores e dominantes abusem dos seus poderes.  Uma vez na posse do governo, os partidos, pela mesma natureza humana que justifica a necessidade de um governo para proteger a sociedade, serão a favor dos poderes concedidos pela constituição e opor-se às restrições que visam limitá-los. … Os partidos mais fracos ou minoritários, pelo contrário, irão tomar a posição oposta e considerá-las [as restrições] como essenciais para a proteção contra a atuação do partido dominante. … Mas visto não haver meios pelos quais eles possam levar o partido maior a obedecer às restrições, o único recurso que sobra será o de manter uma interpretação estrita da constituição. … A isto o partido dominante irá opor-se com uma visão permissiva da constituição. … Será um jogo de interpretação contra interpretação — uma para contrair e a outra para alargar ao máximo o domínio do governo.  Mas qual o benefício da visão rigorosa do partido minoritário face à visão permissiva do partido majoritário quando este tem todo o poder do governo para colocar em prática a sua visão ao passo que o primeiro se encontra privado de qualquer meio para concretizar a sua visão?  Em uma disputa tão desigual, o resultado não será difícil de prever.  O partido a favor das restrições será derrotado. … O final da disputa será a subversão da constituição. … as restrições serão por fim anuladas e o governo será convertido em um governo com poderes ilimitados.[29]

Um dos poucos cientistas políticos que valorizou a análise de Calhoun foi o Professor J. Allen Smith.  Smith notou que a Constituição foi concebida com um sistema de pesos e contrapesos para limitar qualquer poder governamental; contudo, foi criada uma Suprema Corte com o monopólio sobre o poder final de interpretação.  Se o Governo Federal foi criado para limitar as invasões da liberdade individual por parte de cada estado, quem é que limita o poder Federal?  Smith sustenta que, implícita na ideia de um sistema de pesos e contrapesos da Constituição, está a concomitante visão de que não se pode conceder a nenhum ramo do governo o poder final de interpretação: “O povo assumiu que ao novo governo não seria permitido determinar os limites da sua própria autoridade, uma vez que isto tornaria o próprio governo, e não Constituição, supremo.[30]

A solução proposta por Calhoun (e apoiada, no século XX, por escritores como Smith) foi, claro, a famosa doutrina da “maioria concomitante”.  Se qualquer interesse minoritário substancial, especificamente um governo estadual, acreditasse que o Governo Federal estivesse excedendo seus poderes e sobrepondo-se a esta minoria, a minoria teria o direito de veto deste exercício de poder baseando-se na sua inconstitucionalidade.  Aplicado aos governos estaduais, esta teoria implicava o direito à “anulação” da lei ou decisão federal dentro da jurisdição de um determinado estado.

Teoricamente, o sistema constitucional resultante assegurava que o governo federal colocasse entraves a qualquer invasão dos estados aos direitos individuais, ao passo que os estados restringiriam o poder federal excessivo sobre o indivíduo.  No entanto, embora as limitações fossem naquela época mais eficazes do que são atualmente, há muitas dificuldades e problemas na solução de Calhoun.  Se, de fato, um interesse subordinado deve legitimamente ter o poder de veto sobre um assunto que lhe diz respeito, por que parar nos estados?  Por que não colocar o poder de veto nos municípios, nas cidades, nos bairros?  Além do mais, os interesses não são apenas regionais, mas também profissionais, sociais etc.  E quanto aos padeiros ou os taxistas ou qualquer outra profissão?  Não deveriam eles poder vetar qualquer legislação que afete suas próprias vidas?

Isto nos leva a um ponto crucial: a teoria da anulação confina suas restrições às próprias agências do governo.  Não esqueçamos que os governos federal e estaduais, e os seus respectivos ramos, são ainda estados, e, como tal, são ainda guiados pelo seu interesse estatal próprio e não pelos interesses dos cidadãos civis.  O que impede que o sistema de Calhoun funcione de forma contrária, com os estados tiranizando os seus cidadãos e vetando o governo federal sempre que este tente intervir no sentido de restringir essa tirania?  Ou de os estados estaduais se alinharem à tirania federal?  O que impede os governos estaduais e o governo federal de formarem alianças mutuamente lucrativas para explorarem em conjunto os cidadãos?  E mesmo que as associações profissionais privadas ganhassem algum tipo de representação “funcional” no governo, o que impediria que elas utilizassem o estado para obter subsídios e outros privilégios para si mesmas ou para se imporem compulsivamente aos seus próprios membros?

Em resumo, Calhoun não leva a sua inovadora teoria da concordância suficientemente longe: ele não a leva até ao próprio indivíduo.  Se, afinal, são os direitos do indivíduo que devem ser protegidos, então uma teoria da concordância implicaria que o poder de veto pertencesse a cada indivíduo; ou seja, uma forma de “princípio da unanimidade”.  Quando Calhoun escreveu que seria “impossível instituir ou manter [um governo] sem o consentimento de todos”, ele estava implicitamente, ainda que não intencionalmente, sugerindo justamente esta conclusão.[31]  Mas tal especulação começa a nos levar para longe do assunto em questão, pois indo por este caminho encontramos sistemas políticos que dificilmente poderiam ser chamados “estatais”.[32]  Para começar, assim como o direito de anulação de um estado implica logicamente o seu direito à secessão, também o direito de anulação individual implicaria o direito de qualquer indivíduo se “separar” do estado sob o qual vive.[33]

Portanto, o estado tem invariavelmente demonstrado um talento exímio para a expansão dos seus poderes para além de quaisquer limites que possam lhe ser impostos.  Uma vez que o estado sobrevive necessariamente do confisco compulsório do capital privado, e uma vez que a sua expansão envolve necessariamente uma incursão cada vez maior sobre indivíduos e empresas privadas, é imperativo afirmar que o estado é uma instituição profunda e inerentemente anticapitalista.  Em certo sentido, a nossa posição é o inverso da máxima marxista que diz que o estado é atualmente o “comitê executivo” da classe dominante, supostamente os capitalistas.  Ao contrário, o estado — a organização dos meios políticos — é constituído pela — e é a fonte da — “classe dominante” (ou melhor, casta dominante) e está em permanente oposição ao capital genuinamente privado. Podemos, portanto, concordar com Jouvenel:

Apenas aqueles que nada sabem sobre outras épocas senão a sua, que estão completamente às escuras quanto ao modo de funcionamento do Poder desde há milhares de anos, verão estes procedimentos [estatização, imposto de renda etc.] como o fruto de um conjunto particular de doutrinas.  Estas são, na realidade, as manifestações normais do Poder, e em nada diferem na sua natureza em relação aos confiscos dos mosteiros realizados por Henrique VIII. É o mesmo princípio em operação; o apetite por autoridade, a sede por recursos; e em todas estas operações estão presentes as mesmas características, inclusive o rápido crescimento daqueles que dividem os espólios.  Seja Socialista ou não, o Poder tem sempre de estar em guerra com as autoridades capitalistas e despojar os capitalistas da sua riqueza acumulada; ao fazê-lo, obedece às leis da sua própria natureza.[34]

 

  1. O que o estado teme

O que o estado teme acima de tudo, claro, é qualquer ameaça fundamental ao seu próprio poder e à sua existência.  A morte do estado pode ocorrer de duas formas: (a) por meio da sua conquista por outro estado, ou (b) por meio de um golpe revolucionário feito pelos seus próprios súditos — ou seja, por meio da guerra ou da revolução.  Guerra e revolução, sendo as duas ameaças essenciais, invariavelmente suscitam nos governantes estatais esforços máximos e a máxima propaganda possível direcionada à população.  Como dito anteriormente, qualquer meio deve sempre ser utilizado para mobilizar as pessoas a defender o estado na crença de que estão defendendo a si mesmas.  A fraude subjacente a esta ideia torna-se evidente quando o recrutamento compulsório é utilizado contra aqueles que se recusam a “defender-se” e que são, como tal, forçados a juntar-se ao aparato militar do estado: desnecessário dizer que não lhes é permitida qualquer “defesa” contra este ato cometido pelo “seu próprio” estado.

Em uma guerra, o poder do estado é levado ao extremo, e sob os slogans da “defesa” e da “emergência”, ele pode impor uma tirania ao público que, em tempos de paz, enfrentaria franca e aberta resistência.  Desta forma, a guerra provê muitos benefícios a um estado e, de fato, todas as guerras modernas trouxeram aos povos envolvidos um permanente legado de maiores encargos estatais sobre a sociedade.  A guerra, além disso, provê ao estado oportunidades tentadoras de conquistar territórios sobre os quais pode exercer o seu monopólio da força.  Definitivamente, Randolph Bourne estava correto quando disse que “a guerra é a saúde do estado”; porém, para qualquer estado em particular, uma guerra pode significar tanto sua saúde quanto estragos irreparáveis.[35]

Podemos colocar à prova a hipótese de que o estado está majoritariamente interessado em proteger a si mesmo, e não os seus súditos, levantando a seguinte questão: qual a categoria de crimes que o estado persegue e pune mais intensamente — aqueles cometidos contra os cidadãos ou aqueles cometidos contraele próprio?  No vocabulário do estado, os crimes mais graves são quase invariavelmente não-agressões contra indivíduos ou contra a propriedade privada, mas sim ataques contra o próprio bem-estar do estado: por exemplo, traição, deserção de um soldado para o lado inimigo, fugir do alistamento militar compulsório, subversão e conspiração subversiva, assassinato de governantes, e crimes econômicos contra o estado, como falsificação da sua moeda ou evasão fiscal.

Ou compare a intensidade dedicada à perseguição de um homem que tenha atacado um policial com a atenção que o estado concede ao ataque a um cidadão comum.  Curiosamente, no entanto, está explícita prioridade do estado à sua própria contra o público não parece suscitar nas pessoas nenhum sentimento de incoerência e inconsistência em relação à sua pretensa raison d’etre.[36]

 

  1. Como os estados se relacionam entre si

Uma vez que a área territorial do planeta se encontra dividida entre diferentes estados, as relações interestatais ocupam uma grande parte do tempo e da energia do estado.  A tendência natural de um estado é expandir o seu poder e, externamente, essa expansão dá-se através da conquista de territórios.  A não ser que o território não pertença a outro estado ou que seja inabitado, qualquer expansão envolve um conflito inerente de interesses entre dois grupos distintos de governantes estatais.  Apenas um dos grupos de governantes pode obter o monopólio da coerção sobre um dado território em um determinado momento: o poder completo sobre uma área territorial pelo estado X pode apenas ser ganho pela expulsão do estado Y.  A guerra, embora com riscos, será uma tendência perene entre os estados, com períodos pontuais de paz e de alterações de alianças e coalizões entre estados.

As tentativas “internas” ou “domésticas” para limitar o estado, entre o século XVII e o século XIX, alcançaram a sua forma mais notável no constitucionalismo.  A sua contrapartida “externa”, ou das “relações internacionais”, foi o desenvolvimento do “direito internacional”, especialmente nas suas formas de “leis de guerra” e “neutralidade em guerra”.[37]  Algumas partes do direito internacional eram, na sua origem, puramente privadas, tendo sido desenvolvidas pela necessidade dos mercadores e comerciantes de proteger a sua propriedade e deliberar contendas.  Temos como exemplos a lei do almirantado (direito marítimo) e alex mercatoria.

Mas até as regras governamentais surgiram voluntariamente sem nunca terem sido impostas por qualquer super estado.  O objetivo das “leis de guerra” era limitar a destruição interestatal ao próprio aparato do estado, preservando assim o público “civil” inocente da matança e devastação da guerra.  O objetivo do desenvolvimento do direito à neutralidade era o de preservar o comércio internacional civil privado, mesmo entre países “inimigos”, do ataque por parte de um dos lados em guerra.  O objetivo mais abrangente, portanto, era limitar a âmbito de qualquer guerra e, especificamente, o de limitar o seu impacto destrutivo sobre os cidadãos dos países neutros e até dos países em guerra.

O jurista F.J.P. Veale descreve graciosamente uma dessas “guerras civilizadas” que floresceram por um breve período na Itália durante o século XV:

… os burgueses ricos e os mercadores da Itália medieval estavam demasiado ocupados ganhando dinheiro e aproveitando a vida para se comprometerem pessoalmente com as durezas e os perigos da guerra.  Por isso adotaram a prática de contratar mercenários para lutar suas guerras por eles e, sendo frugais, pessoas de negócio, dispensavam os seus mercenários assim que os seus serviços se tornavam desnecessários.  As guerras eram, portanto, lutadas por exércitos contratados para cada empreitada …. Pela primeira vez, ser soldado tornou-se uma profissão razoável e relativamente segura.  Os generais desse período manobravam uns contra os outros, frequentemente com grande perícia, mas quando um obtinha uma posição de vantagem, o seu oponente batia em retirada ou rendia-se.  Era uma regra aceita e reconhecida que uma cidade só podia ser saqueada se oferecesse resistência: a imunidade podendo sempre ser adquirida por meio do pagamento de um resgate. … Uma das consequências naturais era que nunca nenhuma cidade oferecia resistência, sendo óbvio que um governo demasiado fraco para defender os seus cidadãos não merecia a sua lealdade.  Os civis tinham pouco a temer dos perigos da guerra, que dizia respeito apenas aos soldados profissionais.[38]

A quase absoluta separação entre o indivíduo civil e as guerras do estado na Europa do século XVIII é realçada por Nef:

Nem as comunicações postais eram devidamente cortadas por muito tempo em períodos de guerra.  As cartas circulavam sem censura, com uma liberdade surpreendente para a mentalidade do século XX. …  Os cidadãos de duas nações em guerra conversavam entre si quando se encontravam e, quando não se encontravam, correspondiam-se, não como inimigos mas como amigos.  A noção moderna de que os súditos de um país inimigo são parcialmente responsáveis pelos atos beligerantes dos seus governantes era praticamente inexistente.  Nem os governantes em conflito tinham qualquer intenção real de cortar as comunicações com os súditos do inimigo.  As antigas práticas inquisitoriais de espionagem relacionadas ao culto religioso e à fé estavam desaparecendo, e não se imaginava sequer qualquer prática comparável de inquisição em relação a comunicações políticas ou econômicas.  O passaporte foi originalmente criado para prover uma imunidade oficial em tempo de guerra.  Durante a maior parte do século XVIII, raramente um Europeu desistia das suas viagens a um país estrangeiro contra o qual o seu próprio estava em guerra.[39]

E sendo o comércio crescentemente reconhecido como benéfico para ambas as partes, os períodos de guerra no século XVIII incluíam também uma considerável quantidade de “comércio com o inimigo”.[40]

Não é preciso nem entrar nos detalhes de quanto os estados transcenderam as regras da guerra civilizada no século XX.  Na era moderna da guerra total, combinada com a tecnologia de destruição total, a própria ideia de manter a guerra limitada ao aparato estatal parece ainda mais antiquada e obsoleta do que a Constituição original dos Estados Unidos.

Quando os estados não estão em guerra, acordos são frequentemente necessários para manter as desavenças ao mínimo.  Uma doutrina que curiosamente ganhou uma grande aceitação é a suposta “santidade dos tratados”.  Este conceito é visto como a contrapartida da “santidade do contrato”.  Mas um tratado nada tem em comum com um contrato genuíno.  Um contrato transfere, de forma definida, títulos sobre a propriedade privada.  Uma vez que um governo não “é o proprietário”, em nenhum sentido legítimo, da sua área territorial, nenhum acordo que ele possa fazer irá conferir títulos de propriedade.

Se, por exemplo, João vender ou doar a sua terra a José, o herdeiro de João não pode legitimamente ir até o herdeiro de José e dizer que a terra é sua.  O título de propriedade já foi transferido.  O contrato do velho João está automaticamente vinculado ao herdeiro de João, pois o velho João já havia transferido a propriedade; o herdeiro de João pode apenas reivindicar aquilo que ele herdou do velho João, e o velho João pode apenas legar a propriedade que ainda lhe pertence.  Mas se, em uma determinada data, o governo da, digamos, Ruritânia é coagido ou até mesmo subornado pelo governo da Ualdávia para ceder parte do seu território, é absurdo afirmar que os governos ou os habitantes dos dois países estão para sempre impedidos de exigir a reunificação da Ruritânia por causa da santidade do tratado.  Nem as pessoas nem a terra do noroeste da Ruritânia pertencem a qualquer um dos dois governos.

Como corolário, um governo definitivamente não pode vincular, baseando-se em propriedades consideradas “inalienáveis”, um governo seguinte por meio de um tratado.  Similarmente, um governo revolucionário que tenha derrubado o rei da Ruritânia não pode ser responsabilizado pelas ações e dívidas do rei, pois um governo não é, como o é uma criança, um verdadeiro “herdeiro” da propriedade do seu predecessor.

 

  1. A história como uma batalha entre o poder estatal e o poder social

Assim como as duas interrelações humanas básicas e mutuamente exclusivas são a cooperação pacífica ou a exploração coerciva — produção ou depredação —a história da humanidade, em particular a sua história econômica, também pode ser considerada uma disputa entre estes dois princípios.  De um lado, existe a produtividade criativa, as trocas pacíficas e a cooperação; de outro, o despotismo coercivo e a depredação das relações sociais.

Albert Jay Nock apelidou estas duas forças concorrentes com os termos “poder social” e “poder estatal”.[41]  O poder social é o poder do homem sobre a natureza — sua transformação cooperativa dos recursos naturais e a compreensão racional das leis da natureza — para o benefício de todos os indivíduos participantes.  O poder social é o poder sobre a natureza, o alcançar de um melhor padrão de vida por meio da troca mútua entre os homens.  Já o poder estatal, como vimos, é a apropriação coerciva e parasítica desta produção — uma drenagem dos frutos da sociedade para benefício de indivíduos não produtivos (na verdade, antiprodutivos), os quais se impõem como governantes.

Ao passo que o poder social é exercido sobre a natureza, o poder estatal é o poder exercido sobre o homem.  Ao longo da história, as forças criativas e produtivas do homem têm, repetidamente, aberto caminho a novas formas de transformar a natureza para seu benefício.  Isto ocorreu nos momentos em que o poder social conseguiu se manter à frente do poder estatal, momentos em que a invasão do estado sobre a sociedade foi consideravelmente diminuída.  Porém, sem exceção, após intervalos às vezes mais curtos, outras vezes mais longos, o estado sempre se move em direção a essas novas áreas, para mais uma vez confiscar e debilitar o poder social.[42] S e o período entre o século XVII e o século XIX foi, para muitos dos países ocidentais, uma época de crescimento do poder social com um consequente aumento da liberdade, da paz e do bem-estar material, o século XX foi principalmente uma era em que o poder estatal foi recuperando o poder que havia perdido — com uma consequente reversão rumo à escravidão, à guerra e à destruição.[43]

Neste século, a espécie humana enfrenta, novamente, o reinado virulento do estado — do estado agora armado com os frutos dos poderes criativos da humanidade, confiscados e adulterados para os seus próprios fins.  Os últimos séculos foram tempos em que os homens tentaram colocar limites constitucionais ao estado, apenas para concluírem, mais tarde, que tais limites, como todas as outras tentativas, fracassaram.

Dentre todas as numerosas formas que os governos assumiram ao longo dos séculos, dentre todos os conceitos e instituições que foram experimentados, nenhum conseguiu manter o estado sob controle.  O problema do estado evidentemente nunca esteve tão longe de ser resolvido como está atualmente.  Talvez novos caminhos devam ser explorados em busca de soluções se realmente quisermos algum dia resolver de uma vez por todas a questão do estado.[44]

 

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Notas

[1] Não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente, o “representante” numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.

[2] Os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria.  Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.

[3] Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia (New York: Harper and Bros., 1942), p. 198

A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.

Ver também Murray N. Rothbard, “The Fallacy of the ‘Public Sector’”, New Individualist Review (Summer, 1961): 3ff.

[4] Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 24-27:

Existem duas formas fundamentalmente opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho, na discussão que se segue, chamar ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de “meio econômico” para a satisfação das necessidades enquanto a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de “meio político”. O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou apropriados por roubo bélico.

[5] Albert Jay Nock escreve de forma clara que:

o estado reivindica e exercita o monopólio do crime. Ele proíbe o homicídio privado mas ele mesmo organiza o assassínio numa escala colossal. Ele pune o roubo privado mas ele próprio deita as suas mãos sem escrúpulos a tudo o que ele quer, seja propriedade dos seus cidadãos seja de estrangeiros.

Nock, On Doing the Right Thing, and Other Essays (New York: Harper and Bros., 1929), p.143

[6] Oppenheimer, The State, p.15:

O que é, então, o estado como conceito sociológico? O estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.

E de Jouvenel escreveu: “o estado é na sua essência o resultado dos sucessos alcançados por um grupo de bandidos que se impôs a uma sociedade gentil e pacífica”. Bertrand de Jouvenel, On Power (New York: Viking Press, 1949) p.100-101.

[7] A respeito da distinção crucial entre “casta”, um grupo com privilégios ou opressões transmitidos coercivamente ou impostas pelo estado, e o conceito marxista de “classe” na sociedade, ver Ludwig von Mises, Theory and History (New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1957), p. 112ff.

[8] É claro que tal aceitação não implica que o domínio do estado tenha se tornado “voluntário”; pois mesmo que a maioria o apoie de forma ávida e ativa, esse apoio não é unânime.

[9] Que todo governo, independentemente do grau de imposição “ditatorial”, tem que assegurar tal apoio tem sido demonstrado por profundos teóricos políticos tais como Étienne de la Boétie, David Hume, e Ludwig von Mises. Cf. David Hume, “Of the First Principles of Government“, in Essays, Literary, Moral and Political (London: Ward, Locke, and Taylor, n.d.), p. 23; Étienne de la Boétie, Anti-Dictator (New York: Columbia University Press, 1942), p. 8-9; Ludwig von Mises, Human Action (Auburn, Alabama: Mises Institute, 1998), p. 188ff. Para mais acerca da contribuição para a análise do estado por la Boétie, ver Oscar Jaszi e John D. Lewis, Against the Tyrant (Glencoe, Illinois: The Free Press, 1957), p. 55-57.

[10] La Boétie, Anti-Dictator, p. 43-44.

Sempre que um governante se faz ditador todos aqueles que se deixam corromper pela ambição desmedida ou por uma avareza extraordinária, reúnem-se em torno dele e apoiam-no para que possam ficar com uma porção do espólio e para se instalarem como pequenos chefes abaixo do grande tirano.

[11] Isto de maneira nenhuma implica que todos os intelectuais se aliam ao estado. Acerca dos aspectos da aliança entre intelectuais e o estado, ver Bertrand de Jouvenel, “The Attitude of the Intellectuals to the Market Society“, The Owl (Janeiro, 1951): 19-27; idem, “The Treatment of Capitalism by Continental Intellectuals,” in F.A. Hayek, ed., Capitalism and the Historians (Chicago: University of Chicago Press, 1954), p. 93-123; reimpresso em George B. de Huszar, The Intellectuals (Glencoe, Illinois: The Free Press, 1960), p. 385-99; e Schumpeter, Imperialism and Social Classes (New York: Meridian Books, 1975), p. 143-55.

[12] Joseph Needham, “Revisão de Karl A. Wittfogel, Despotismo Oriental”, Science and Society (1958): 65. Needham também escreve que “os sucessivos imperadores [Chineses] foram servidos em todas as épocas por uma grande companhia de eruditos profundamente humanos e desinteressados“, p.61.  Wittfogel nota que, na doutrina Confucionista, a glória da classe governante repousa nos seus oficiais erudito-burocratas cavalheirescos, destinados a serem governantes profissionais que ditam para a grande massa da população. Karl A. Wittfogel, Oriental Despotism (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1957), p. 320-21 e passim.

Para uma atitude que contrasta com a de Needham, ver John Lukacs, “Intellectual Class or Intellectual Profession?” em de Huszar, The Intellectuals, p. 521-22.

[13] Jeanne Ribs, “The War Plotters,” Liberation (August, 1961): 13, “os estrategistas insistem que a sua ocupação merece a ‘dignidade da contraparte acadêmica da profissão militar’”. Ver também Marcus Raskin, “The Megadeath Intellectuals”, New York Review of Books (November 14, 1963): 6-7.

[14] Por isso o historiador Conyers Read, no seu discurso presidencial, argumentou a favor da supressão de fatos históricos como sendo um serviço aos valores “democráticos” e nacionais. Read proclamou que “a guerra total, seja quente ou fria, alista toda a gente e apela a que todos cumpram o seu papel. O historiador não é mais livre desta obrigação do que o físico“. Read, “The Social Responsibilities of the Historian,”American Historical Review (1951): 283ff. Para uma crítica de Read e outros aspectos de historia oficial, ver Howard K. Beale, “The Professional Historian: His Theory and Practice,” The Pacific Historical Review (August, 1953): 227-55. Também cf. Herbert Butterfield, “Official History: Its Pitfalls and Criteria,” History and Human Relations (New York: Macmillan, 1952), p. 182-224; e Harry Elmer Barnes, The Court Historians Versus Revisionism (n.d.), p. 2ff.

[15] Cf. Wittfogel, Oriental Despotism, p87-100. Acerca dos papéis contrastantes da religião vis-à-vis o estado na China antiga e Japão, ver Norman Jacobs, The Origin of Modern Capitalism and Eastern Asia (Hong Kong: Hong Kong University Press, 1958), p. 161-94.

[16] De Jouvenel, On Power, p. 22:

A razão essencial para a obediência é que esta se tornou um hábito da espécie. O poder é para nós um fato da natureza. Desde os primórdios da história que sempre presidiu aos destinos humanos. as autoridades que dominavam [as sociedades] em tempos anteriores não desapareciam sem deixar o legado de privilégio aos seus sucessores nem sem deixar na mente dos homens impressões que são cumulativas no seu efeito. A sucessão de governos que, num curso de séculos, dominou a mesma sociedade pode ser vista como um único governo subjacente em contínuo crescente.

[17] Acerca da utilização da religião na China para tais efeitos, ver Norman Jacobs, passim.

[18] H.L. Mencken, A Mencken Chrestomathy (New York: Knopf, 1949), p. 145:

Tudo o que o governo consegue ver numa ideia original é o potencial para a mudança, e dessa forma uma invasão das suas prerrogativas. O homem mais perigoso, para qualquer governo, é o homem que é capaz de pensar por si mesmo acerca dos assuntos, sem ter em conta as superstições e os tabus prevalecentes. Quase inevitavelmente, ele chega à conclusão que o governo sob o qual vive é desonesto, louco e intolerável, e por isso, se for um aventuroso, ele tenta mudá-lo. E mesmo que ele próprio não seja aventuroso, ele é muito capaz de espalhar o descontentamento entre aqueles que o são.

[19] Ibid., p. 146-47.

[20] De Jouvenel, On Power, p. 27ff

[21] Charles L. Black. Jr., The People and the Court (New York: Macmillan, 1960),

  1. 35ff.

[22] Ibid., p. 42-43.

[23] Ibid., p. 52:

A mais nobre e necessária função da Suprema Corte tem sido a de validação, não de invalidação. O que um governo com poderes limitados precisa, no início e sempre, é algum meio que convença as pessoas que tenha feito tudo o que é humanamente possível para se manter dentro dos seus limites.

Esta é a condição para a sua legitimidade, e a sua legitimidade, a longo prazo, é a condição para a sua sobrevivência. E o Tribunal, através da sua história, tem sido o que dá legitimidade ao governo.

[24] Embora completamente paradoxal, para Black esta solução é alegre e despreocupadamente evidente:

O poder final do estado. deve parar onde a lei para. E quem fixará o limite, e quem aplicará uma trava, face ao poder mais possante? Ora, o próprio estado, claro, através dos seus juízes e das suas leis. Quem é que controla o moderado? Quem é que ensina o sábio? (Ibid., p. 32-33)

E ainda:

Quando as questões dizem respeito ao poder governamental numa nação soberana, não é possível selecionar um árbitro que esteja fora do governo. Qualquer governo nacional, enquanto for um governo, tem que ter a palavra última acerca do seu próprio poder. (Ibid., p. 48-49)

[25] Ibid., p.49.

[26] A atribuição do milagroso ao governo é reminiscente da justificação do governo de James Burnham através do misticismo e da irracionalidade:

Em tempos antigos, antes das ilusões da ciência terem corrompido a sabedoria tradicional, os fundadores de cidades eram tidos como deuses ou semideuses. Nem a raiz nem a justificação para o governo podem ser postas em termos totalmente racionais, porque é que eu devo aceitar a hereditariedade ou a democracia ou qualquer outro princípio de legitimidade?

Porque é que um princípio pode justificar o domínio desse homem sobre mim? Eu aceito o princípio porque, bem, porque sim, porque é assim que é e que tem sido.

James Burnham, Congress and the American Tradition (Chicago: Regnery, 1959), p. 3-8. Mas e se uma pessoa não aceitar o princípio? Qual será “o caminho”, então?

[27] Black, The People and the Court, p. 64.

[28] Ibid., p. 65.

[29] John C. Calhoun, A Disquisition on Government (New York: Liberal Arts Press,

1953), p. 25-27. Também cf. Murray N. Rothbard, “Conservatism and Freedom: A

Libertarian Comment”, Modern Age (Spring, 1961): 219.

[30] J. Allen Smith, The Growth and Decadence of Constitutional Government (New

York: Henry Holt, 1930), p. 88. Smith acrescenta:

Era óbvio que uma provisão na Constituição, embora desenhada para limitar os poderes de um órgão governamental, pudesse ser efetivamente anulada caso a sua interpretação e aplicação fossem deixadas às autoridades que ela visava deter.

O senso comum exigia, claramente, que nenhum órgão do governo pudesse ser capaz de determinar o seu próprio poder.

Fica claro que o senso comum dita uma visão muito diferente da de “milagres” no que tange ao governo. (p. 87)

[31] Calhoun, A Disquisition on Government, p. 20-21.

[32] Recentemente, o princípio da unanimidade tem sido restaurado de forma altamente diluída, particularmente nos escritos do Professor James Buchanan. Cf. James Buchanan and Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1962), passim

[33] Cf. Herbert Spencer, “The Right to Ignore the State”, in Social Statics (New York: D. Appleton, 1890), p. 229-39.

[34] De Jouvenel, On Power, p. 171.

[35] Vimos que o apoio por parte dos intelectuais é fundamental ao estado, e isto inclui o apoio contra as suas duas ameaças essenciais. Assim, acerca do papel dos intelectuais americanos no envolvimento dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, ver Randolph Bourne, “The War and the Intellectuals,” em The History of a Literary Radical and Other Papers (New York: S.A. Russell, 1956), p. 205-22.

Tal como Bourne evidencia, um dos métodos comuns dos intelectuais para ganhar o apoio do público para as ações do estado é o de desviar qualquer discussão para os limites da política do estado e de desencorajar qualquer crítica total ou fundamental deste enquadramento básico.

[36] Tal como Mencken o descreve, à sua maneira inconfundível:

Esta gangue (“os exploradores que formam o governo”) é praticamente imune ao castigo. As suas extorsões mais graves, mesmo quando são claramente para proveito privado, não acarretam qualquer pena certa sob as nossas leis. Desde os primeiros dias da República que não mais que algumas dúzias dos seus membros foram impugnados dos seus mandatos, e apenas alguns subordinados obscuros foram encarcerados. A quantidade de homens postos na prisão por se revoltarem contra as extorsões do governo é sempre dez vezes maior do que a quantidade de representantes do governo que são condenados por oprimir os pagadores de impostos para seu ganho próprio. (Mencken, A Mencken Chrestomathy, p. 147-48)

Para uma vívida e divertida descrição da falta de proteção ao indivíduo contra as incursões à sua liberdade feitas pelos seus “protetores”, ver H.L. Mencken, “The Nature of Liberty,” em Prejudices: A Selection (New York: Vintage Books, 1958), p. 138-43.

[37] Isto deve ser distinguido do direito internacional moderno e da sua ênfase em maximizar a extensão da guerra através de conceitos como o de “segurança coletiva”.

[38] F.J.P. Veale, Advance to Barbarism (Appleton, Wis.: C.C. Nelson, 1953), p. 63. De forma semelhante, o Professor Nef escreve acerca da Guerra de Don Carlos que ocorreu na Itália, no século XVIII, entre a França, a Espanha e a Sardenha contra a Áustria:

No cerco dos aliados a Milão e, várias semanas depois, em Parma os exércitos rivais defrontaram-se numa batalha feroz fora da cidade. Em ambos os locais os habitantes nunca se mostraram muito simpatizantes com qualquer um dos lados. O seu único medo era que qualquer um dos exércitos passasse os portões e fizesse uma pilhagem. O seu medo provou-se infundado. Em Parma os cidadãos corriam para os muros da cidade para ver a batalha que se dava adiante, em campo aberto. (John U. Nef, War and Human Progress [Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1950], p. 158)

Também cf. Hoffman Nickerson, Can We Limit War? (New York: Frederick A. Stoke, 1934).

[39] Nef, War and Human Progress, p. 162.

[40] Ibid., p. 161. Sobre a defesa do comércio com o inimigo por líderes da Revolução Americana, ver Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization (New York: Viking Press, 1946), vol. 1, p. 210-11.

[41] Sobre os conceitos de poder estatal e poder social, ver Albert J. Nock, Our Enemy the State (Caldwell, Idaho: Caxton Printers, 1946). Ver também Nock, Memoirs of a Superfluous Man (New York: Harpers, 1943), e Frank Chodorov, The Rise and Fall of Society (New York: Devin-Adair, 1959).

[42] Entre o fluxo de expansão ou contração, o estado assegura-se sempre de que captura e retém certas “posições de comando” cruciais da economia e da sociedade. Entre essas posições de comando encontram-se o monopólio da violência, o monopólio do poder judicial final, os canais de comunicação e transporte (correios, estradas, rios, rotas aéreas), água de irrigação no caso do despotismo Oriental, e a educação – de forma a moldar as opiniões dos seus futuros cidadãos. Na economia moderna, o dinheiro é o posto de comando crucial.

[43] Este processo parasítico de “recuperação” foi quase abertamente proclamado por Karl Marx, que admitiu que o socialismo deve ser estabelecido através do confisco do capital previamente acumulado sob o capitalismo.

[44] É certo que um dos ingredientes indispensáveis de tal solução será a ruptura da aliança entre os intelectuais e o estado, por meio da criação de centros de pesquisa intelectual e educação, que serão independentes do estado. Christopher Dawson aponta que os grandes movimentos intelectuais da Renascença e do Iluminismo foram alcançados por meio de um trabalho à margem das — e por vezes contra as — universidades estabelecidas. Estes acadêmicos das novas ideias estabeleceram-se com a colaboração de patronos independentes. Ver Christopher Dawson, The Crisis of Western Education (New York: Sheed and Ward, 1961).

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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