A legitimidade de um Tribunal Supremo (ou Suprema Corte ou Tribunal Constitucional) é generalizadamente aceita nos dias de hoje. Neste breve texto eu farei um revisionismo sobre o argumento fundamentalmente liberal em defesa de um Tribunal cuja atribuição seja limitar os poderes governamentais por meio do controle de constitucionalidade de leis/atos normativos com a finalidade de estabelecer um equilíbrio entre os poderes constituídos (legislativo, executivo e judiciário, conforme a doutrina de Montesquieu) por via do sistema de freios e contrapesos (checks and balances). Tendo em vista minha pretensão de estabelecer uma relação entre a Suprema Corte e o aumento do Estado, minha análise será baseada no contexto americano, pois foi sua organização política que deu vida à utopia do governo constitucionalmente limitado; a constituição brasileira, ao contrário, é manifestamente eivada de princípios do socialismo democrático e, ipso facto[1], não há um grande enigma na tendência do Supremo Tribunal Federal de aumentar um Estado que é grande já em sua gênese. Para ilustrar minha tese, irei apresentar três casos: o primeiro (Marbury v. Madison) será utilizado somente para fins descritivos e para ambientação histórica sobre o tema; o segundo (Scott v. Sandford), por sua vez, demonstrará como um tribunal centralizado com o monopólio da interpretação constitucional distorce a antiga e natural ideia de propriedade privada; por fim, o último (Roe v. Wade) demonstrará a tendência da Suprema Corte em centralizar os poderes (jurisdição) do governo e a facilidade com que a Suprema Corte rompe com os “limites constitucionais”.
Após obter um vitorioso êxito sobre a Inglaterra e suas Leis Intoleráveis (Intolerable acts) na Revolução Americana, os EUA do século XVIII constituíram o governo mais restrito da história: não havia exército e marinha permanentes; não havia impostos federais sobre consumo e vendas; havia imposto sobre a importação mas com alíquotas irrisórias; havia liberdade de associação e liberdade contratual; o governo deixava o sistema bancário livre e não expandia a oferta monetária; não havia inflação nem dívida pública; o governo não fazia obras públicas e nem distribuía a renda de seus súditos por meio de programas sociais, tornando a riqueza (acúmulo de capital) benquista. Em suma, os EUA se tornaram um paraíso minarquista de ausência virtual de governo.[2]
Ceteris paribus[3], estabelecido um governo que se limitava a tão-somente proteger a vida e a propriedade de seus governados – i.e., os direitos naturais que foram consagrados pelos Artigos da Confederação de 1777 e (apesar de pouco relativizados) na Constituição de 1787[4] –, haveria de ter um meio para constranger o Estado a manter-se restrito às suas atividades constitucionais, de modo a frear o ímpeto natural do governante de usar seu monopólio de legislar e tributar de forma abusiva e expansiva. A solução dos americanos para evitar um governo (em especial o poder executivo) abusivo e centralizado foi o estabelecimento de um tribunal supremo, com o poder de dar a interpretação “correta” (i.e.: revestir de constitucionalidade alguma interpretação) ao texto constitucional e de limitar o governo pelo sistema de freios e contrapesos.
I – Caso Marbury v. Madison
O caso paradigma do controle de constitucionalidade da Suprema Corte americana (doravante referida como SCOTUS) foi Marbury v. Madison. Marbury havia sido nomeado em 1801 pelo Presidente John Adams – este em seus últimos dias – para ser juiz de paz no Distrito de Columbia. No entanto, não houve tempo para a posse do nomeado Marbury antes do início do novo governo de Thomas Jefferson. Este, após assumir, ordenou ao seu Secretário de Estado, Madison, que negasse posse a Marbury, que, em virtude disso, requereu à SCOTUS uma ordem (mandamus) a fim de obrigar Madison dar-lhe a posse.
O Juiz Marshall tratou o caso sob a perspectiva da competência constitucional da SCOTUS, analisando a compatibilidade entre Lei Judiciária de 1789 com a Constituição. A mencionada lei autorizava a expedição de mandados pelo Tribunal, que visavam remediar ilegalidades do Executivo. Já a Constituição disciplinava, em seu artigo III, seção 2, a competência originária da Corte.
A SCOTUS julgou, em caráter preliminar, que carecia de competência para emitir o mandamus requerido, fundado no fato de que as competências da SCOTUS foram previstas de forma taxativa pela Constituição. Assim, não poderia o Congresso ter criado uma lei que ampliasse a competência da SCOTUS, pois esta lei era incompatível com a Constituição (inconstitucional)[5]. Desse modo, a Lei Judiciária de 1789 foi a primeira lei objeto de revisão de constitucionalidade.
II – Caso Scott v. Sandford
Em 1857, 53 anos após a primeira manifestação da SCOTUS em sede de controle de constitucionalidade, a Corte voltou aos holofotes da hermenêutica jurídica ao declarar como inconstitucional, no caso Dred Scott (Scott v. Sandford) – neste caso, um escravo demandou em juízo a fim de ser alforriado –, a seção 8ª de uma lei federal (Compromise Act) que proibira a escravidão no Estado do Missouri, pois tal seção violava o devido processo legal (due process of the law). Interpretou o então Chief Justice Taney, relator do caso, que esse dispositivo era contrário à 5ª Emenda (que reza: “ninguém poderá ser privado da vida, liberdade ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização”), uma vez que, se a lei fosse aplicada, privaria um cidadão (proprietário do escravo) de sua propriedade (escravo), sem o devido processo da lei. Esta decisão, portanto, entendeu que os escravos deveriam ser considerados como propriedade (bens) e não como pessoas, de modo que eles não possuíam o direito de demandar em juízo.[6]
Esta decisão é de deixar boquiaberto qualquer um com senso mínimo de justiça e dispensa comentários, pois distorce manifestamente a noção de propriedade privada advinda do direito natural – que, segundo S. Paulo, está escrito no coração do homem –, bem como a ideia de universalidade dos direitos humanos e de igualdade perante a lei trazida ao Ocidente pela tradição judaico-cristã e por documentos como a Declaração de Direitos de 1689 (Bill of Rights), a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia de 1776 e a Declaração de Independência de 1776. Igualmente, evidenciou que uma agência governamental centralizada possuidora do monopólio de dar a interpretação “correta” ou “constitucional” não encontra empecilhos em desvirtuar a constituição, a lei natural e a propriedade privada.
III – Caso Roe v. Wade
No ano de 1973, a SCOTUS, provocada por Norma McCorvey (cognominada como Jane Roe), declarou como inconstitucional a lei do Texas que proibia o aborto, com fundamento no direito à privacidade expresso na 14ª Emenda.[7] Apoiado nesta decisão, o governo federal (União) arrogou para si a competência para tratar da questão do aborto, competência que pertencia aos Estados em suas respectivas jurisdições até o ano de 1973.
Desse modo, independentemente da questão de se o aborto deve ou não ser permitido, a SCOTUS passou a obrigar indivíduos que prezam pela vida a financiar procedimentos de aborto. Conjuntamente, pelo fato de a Constituição ter cedido à União jurisdição para exclusivamente quatro crimes (falsificação, pirataria, traição e escravização), a competência para legislar sobre matérias penal e civil, delegada aos Estados por meio da 10ª Emenda (segundo a qual: “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados ou ao povo”), foi abruptamente violada. Conseguintemente, a SCOTUS seguiu em um processo de deterioração da Constituição e de ampliação da jurisdição e do poder legiferante do governo federal sobre os Estados e o povo. As interpretações irracionais da SCOTUS tornaram a 10ª emenda nula e sem efeito (írrita).
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Mas essa sistêmica deturpação da lei e da ordem era previsível? A resposta é um clarividente SIM!
A principal função histórica do recurso do controle de constitucionalidade, segundo o Prof. Charles Black, é ser um meio pelo qual o governo possa assegurar aos seus súditos de que seus poderes crescentes são, de fato, “constitucionais”.
O insigne constitucionalista americano ilustra a questão:
A ameaça suprema [para o governo] é a ampla disseminação de um sentimento de ultraje e desafeição entre a população, e a consequente perda de autoridade moral por parte do governo, independentemente de quanto tempo ele consiga mantê-la pela força ou pela inércia ou pela simples falta de uma alternativa atraente e imediatamente disponível. Quase todas as pessoas que vivem sob um governo com poderes limitados serão, cedo ou tarde, sujeitados a alguma ação governamental que, em sua opinião, consideram estar além do poder do governo ou mesmo totalmente proibida ao governo. Um homem pode ser conscrito embora não encontre nada na Constituição autorizando o recrutamento para o serviço militar obrigatório […] A um agricultor é dito o quanto ele pode produzir de trigo; ele acredita, e descobre que alguns advogados respeitáveis partilham [da] crença de que o governo tem o direito tanto de lhe dizer o quanto de trigo ele pode produzir como de lhe dizer com quem é que a sua filha se pode casar. Um homem vai para a cadeia por dizer o que quer e entra em sua cela proferindo […] “o Congresso não passará quaisquer leis que limitem a liberdade de expressão” [1ª emenda]. A um comerciante é dito o quanto pode cobrar, e quanto tem de cobrar, por leite desnatado.[8]
Nessa aliteração, o Prof. Murray N. Rothbard conclui que, “se um decreto judicial de ‘inconstitucionalidade’ é um poderoso limitador ao poder do governo, um veredicto implícito ou explícito de ‘constitucionalidade’ é uma arma poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental”.[9]
Adicionalmente, os juízes (ou ministros, como são denominados no Brasil) da Suprema Corte são parte integrante do aparato cujos poderes foram designados a limitar. Noutros termos, a agência designada de proferir a decisão final sobre a constitucionalidade de leis e atos do governo fazem parte do próprio governo. Qual motivação eles teriam em restringir o poder e o alcance da agência que lhes fornece ocupação, dinheiro e notoriedade? Ademais, por que eles iriam tomar uma decisão contrária ao homem que os nomeou (presidente) ou aos senadores que aprovaram a indicação do presidente? A Suprema Corte não corrói os princípios básicos de direito processual da equidistância das partes e da imparcialidade do juiz? Estas perguntas retóricas conduzem a uma única conclusão: um Tribunal Supremo é – usando uma expressão vulgar de Peter Brimelow – o viagra do Estado. Admitir a possibilidade de um Tribunal Constitucional restringir o alcance e o poder do governo é sinal de loucura ou de duplipensamento[10].
Portanto, não é de se assustar que em dois séculos o governo mais limitado da história se tornou o governo mais grande e imperialista da história: os EUA têm suas forças armadas em toda parte do globo e se consolidou como o “policial do mundo”; os impostos aumentaram substancialmente; os EUA, por influência das ideias protossocialistas do movimento pelos “direitos civis”, trocaram a liberdade de associação pela integração forçada (também conhecido como direito de não ser discriminado); a moeda-mercadoria (como ouro e prata) foi, por via da globalização do dólar, totalmente trocada por moeda-papel de curso forçado, que dá permissão ao governo para criar dinheiro a partir do nada e praticamente sem custo; a inflação decorrente do papel-moeda corrói as poupanças, e a dívida pública chegou a US$ 2,3 trilhões – e há estimativas de que em 2031 chegue a US$ 12,6 trilhões; o governo passou a investir quantias colossais em obras públicas e a criar cada vez mais – por meio da previdência social – programas de assistencialismo e de distribuição de renda, premiando fracassados e punindo os bem-sucedidos. Tudo isso aconteceu com o “aval constitucional” (explícito ou implícito) da Suprema Corte.
É hora de reverter o erro americano e denunciar o Tribunal Supremo como uma organização que frauda a lei e a segurança jurídica, i.e.: uma aberração jurídica e uma constante ameaça à liberdade e aos direitos individuais. É hora de voltar às raízes do direito comum (common law), corpo de leis do direito anglo-saxão, que obteve seu sucesso por conta da descentralização e “concorrência” entre juízes, que aplicavam princípios de justiça consagrados pelo tempo aos casos submetidos às suas respectivas jurisdições. Os precedentes nada mais eram do que a seleção das melhores (justas) decisões aplicadas aos casos anteriores, e não havia – como acontece hoje em dia – precedentes vinculantes, ou seja, nenhum tribunal estava obrigado em aderir o precedente de outro. Assim, a tarefa do juiz não consistia em fazer leis, mas em descobrir a lei nas jurisprudências consolidadas pelo direito comum e aplicar aos casos específicos ou às novas situações.[11]
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Notas
[1] Locução adverbial latina que significa: “pelo próprio fato”, “por isso mesmo”.
[2] Sobre a inspiradora história da Revolução Americana e o consequente estabelecimento de um governo limitado, ver Murray N. Rothbard, Por Uma Nova Liberdade – O Manifesto Libertário. (1ªed. São Paulo-SP: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2013), especialmente o capítulo 1; Hans-Hermann Hoppe, Democracia o deus que falhou (São Paulo-SP: Instituto Mises Brasil, 2014), especialmente os capítulos XI e XIII; Flávia Lages de Castro, História do Direito Geral e do Brasil (13ª edição. Rio de Janeiro-RJ: Editora Lumen Juris, 2017), cap. XI; bem como o artigo de Stefan Molyneux, Por que um estado mínimo inevitavelmente leva a um estado máximo? (publicado no site do Instituto Rothbard Brasil, 2009).
[3] Expressão latina que significa “tudo o mais constante” ou “mantidas inalteradas todas as outras coisas”.
[4] A Constituição conferiu ao congresso competências não estabelecidas pelos Artigos da Confederação, a saber: poder de tributar; de regular o comércio; de cunhar moeda e regular o seu valor; de declarar guerra; de organizar e manter exércitos e uma marinha (artigo I, seção 8). Os Artigos da Confederação, de modo diferente, não criaram Poder Executivo e nem uma Suprema Corte, e o Congresso não tinha poder de tributar. Sobre isso, ver Flávia Lages de Castro, op. cit., pp. 235 e 236.
[5] Alexandre de Moraes, Direito Constitucional (34ªed. São Paulo-SP: Editora Atlas, 2018), p. 748.
[6] Alexandre de Moraes, op. cit., pp. 984 e ss.
[7] Sobre o caso, ver Ron Paul, O argumento contra o aborto, (São Paulo-SP: LVM editora, 2020); idem, Definindo a Liberdade, (1ª ed. São Paulo-SP: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2013), cap. I.
[8] Charles L. Black. Jr., The People and the Court (New York: Macmillan, 1960), pp. 42-43, apud em Murray N. Rothbard, A anatomia do Estado, (1ªed. São Paulo-SP: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2013), pp. 27 e ss.
[9] Murray N. Rothbard, A anatomia do Estado, (1ªed. São Paulo-SP: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2013), p. 26;
[10] Segundo George Orwell [George Orwell, 1984. (Companhia das Letras, 2020)], “duplipensamento significa ter a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas” (p. 252).
[11] Ver Murray N. Rothbard, Por Uma Nova Liberdade – O Manifesto Libertário. (1ªed. São Paulo-SP: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2013), p. 268 e ss.
Muito bom!
Das duas, uma: se o judiciário hierarquizado não parte da premissa da infalibilidade de instâncias superiores, então só resta a premissa de que a ordem social não importa, e que, na realidade, nada importa: legislações, judiciário, etc…