[Este artigo foi retirado do capítulo 27 e 28 do livro O Jardim das Aflições]
A ideia de Império Ocidental vem de Roma, dos Césares. Em segunda versão, cristianizada, reaparece no ano 800 e vive até 1500 de crise em crise, incapaz de resolver sua contradição originária entre o modelo romano e a duplicidade Ocidental das castas clerical e aristocrática. Por volta de 1500, renasce, multiplicada, em muitas versões nacionais: numa terceira translatio imperii, o Império europeu dá lugar aos Impérios coloniais; a contradição entre clero e nobreza é resolvida pela absorção, no Estado, da autoridade espiritual, mediante a farsa do “corpo místico” nacional. Seguem-se três séculos de matanças nas Américas, na África e na Índia.
Passados três séculos, vem a Revolução, e, num novo banho de sangue que ultrapassa em poucos meses todo o horror dos feitos imperiais d’além-mar, as monarquias começam a cair. Mas a ideia de Império não cai com elas. Resistente a toda debilitação orgânica, como aliás é próprio dos fantasmas, ela pervive, salvando-se através de uma nova metamorfose, ainda mais surpreendente do que a anterior. Se na primeira crise ela se safara tratando de infiltrar-se na Igreja a título de “Império cristão”, se na segunda conseguira driblar a própria Igreja mediante a ousadia blasfema de fazer o rei e futuro imperador passar como encarnação do próprio Cristo, agora ela jogará a cartada mais alta, chegando aos últimos limites do que a audácia mais demente pudesse conceber: dispensar toda legitimação religiosa mesmo farsesca, fazer do Império como tal a única divindade. Assumir, enfim, que César é maior que Cristo. Eis a missão de Napoleão Bonaparte.
Napoleão sintetiza, com efeito, as duas correntes de ideias que marcam, de um lado, o Antigo Regime, de outro, a Revolução. Ele sintetiza o projeto imperial do Antigo Regime com a ideologia anticristã dos revolucionários, e inaugura o primeiro Império não-cristão do Ocidente. Eis aí a verdadeira originalidade, a essência mesma do projeto napoleônico: desvincular o Império de seu compromisso com a Cristandade, liberá-lo para a expansão ilimitada. Ilimitada em dois sentidos: para fora, o domínio do mundo; para dentro, o domínio sobre as consciências, a instauração de novas leis, de novos valores, onde, segundo o projeto de Hegel, o que pudesse ainda haver de cristianismo residual pudesse ser facilmente absorvido e laicizado sob a forma de “direitos e deveres do cidadão”. Aufheben — “absorver e superar” — é o termo de Hegel: o Code civil de Napoleão é a Aufhebung imperial e leiga da moral cristã.
Napoleão foi vencido menos pelas tropas de Wellington e Blücher do que pela contradição intrínseca que viciava na base o seu projeto: ele procurou, com efeito, construir o Império leigo conservando a estrutura de poder do Antigo Regime — basicamente, uma aristocracia hereditária e militar. Mas a aristocracia, mesmo enxertada de novos componentes retirados das tropas ou da parentela napoleônica, era sempre uma aristocracia — e, tendo vivido por doze séculos num matrimônio sadomasoquista com o clero, não podia repentinamente acostumar-se à solidão do divórcio. A Concordata com o Vaticano manifesta essa fraqueza, esse calcanhar-de-aquiles do projeto napoleônico, que, consistindo por essência numa eliminação do poder clerical, terminou por restaurá-lo dentro das próprias fronteiras do Império, ao mesmo tempo que, fora, o clero conspirava com os príncipes ingleses e alemães para a derrubada do Império. Ademais, uma aristocracia de sangue é sempre um poder de tipo feudal, àquela altura já abalado até as raízes pela ascensão da nova classe capitalista; sua sobrevivência dependia portanto de um imobilismo social incompatível com as mudanças cataclísmicas que o próprio Bonaparte, como braço armado da Revolução, tinha ajudado a precipitar. E esta fraqueza mostra que Napoleão entreviu apenas obscuramente aquilo que, do outro lado do Oceano, uma nova potência emergente acabara de perceber com total clareza e de maneira definitiva: o Império leigo não podia ter um resíduo sequer de compromisso com a Igreja, nem, por isto mesmo, com as velhas aristocracias. Ele necessitava apoiar-se numa nova classe social, numa nova estrutura de poder, numa nova instituição religiosa que fosse intrinsecamente ligada ao Estado: César só poderia ressuscitar sob forma capitalista, republicana, maçônica e protestante. República imperial, capitalista, maçônica e protestante: é a definição dos Estados Unidos.
“O Todo-Poderoso escolheu a geração atual para erigir o Império Americano … E assim, de repente, surgiu no mundo um novo Império que se propõe, pela bênção de Deus, a ser o mais glorioso de todos já registrados” – William Henry Drayton, Presidente do Tribunal de Justiça da Carolina do Sul, no ano de 1776.
A vocação imperial norte-americana não nasceu junto com os Estados Unidos: nasceu antes. Um povo não se expande por todo um continente, ao longo de três séculos, entre perigos e esforços sobre-humanos, para, uma vez chegado às fronteiras naturais ou legais do território, se dar por satisfeito e instalar-se de uma vez para sempre na moldura desses limites, disposto a daí por diante só crescer para dentro. Ao contrário: tão logo se sente senhor de seu território, o impulso colonizador se transforma quase que naturalmente em impulso imperialista.
Essa vocação manifesta-se com uma força de uma decisão madura já na infância da nação americana, mediante uma sequência de feitos militares e diplomáticos que estendem desde logo o raio de ação dos Estados Unidos por uma área bem maior do que a ocupada até então pelos Impérios coloniais europeus. A escalada é impressionante:
1793. Ajuda, discreta mas decisiva, à Revolução Francesa.
1803. Compra da Lousiania.
1812. Tentativa (fracassada) de invasão do Canadá.
1823. Doutrina Monroe.
1845. Anexação do Texas.
1846. Intervenção branca na Califórnia. Guerra com o México.
1854. Instalação de ponta-de-lança no Japão.
1867. Compra do Alasca.
1898. Anexação das Filipinas. Intervenção em Cuba. Guerra com a Espanha.
1906. Construção do Canal do Panamá.
É uma carreira comparável à das maiores potências europeias da época, e só interrompida temporariamente pela Guerra Civil.
Mas mesmo esta era um sinal: superava, em extensão da linha de combate e no número de mortos, todas as guerras da História. Como foi possível que, diante de fatos dessa envergadura, as potências europeias não se dessem conta, de imediato, de que havia nascido aquele que Deus predestinara para ser o seu coveiro? A cegueira dos homens de Estado para os rumos mais óbvios da História chega a ser às vezes mais notável do que os lampejos de visão profética dos homens de inteligência. Mesmo após a Guerra de 14, onde somente a intervenção americana decidira o curso dos acontecimentos, esses imbecis ainda se acreditavam senhores do mundo, capazes de manter a águia norte-americana a uma higiênica distância dos assuntos de gente grande; e, tão logo Wilson abandonou a Liga das Nações, deixando os aliados livres para repartirem a seu bel-prazer o bolo alemão, os espertinhos esfregaram as mãos com um sorriso maquiavélico, dizendo: “Oba, enganamos esse trouxa”.
Santa ilusão! Na comitiva mesma de Wilson já se encontrava aquele que um dia viria a repartir com Stálin, no banquete de Yalta, a carne dos vencidos e o pão dos vencedores menores: um obscuro assessor jurídico da Marinha, Franklin D. Roosevelt.
Tanta cegueira tem de ter um motivo. Bobagem tentar explicá-la somente por um mórbido eurocentrismo. Eurocentrismo não é a causa do fenômeno: é simplesmente o nome dele. Além disto, eles não eram tão eurocêntricos assim: compreendiam perfeitamente bem o que se passava na África ou na Ásia, tanto que dominavam essas regiões com a desenvoltura de jogadores habilíssimos.
Se não enxergaram, portanto, o que se passava nos EUA, só pode ter sido por uma razão: porque aquilo que ali acontecia era diferente de tudo o mais. Tão diferente, tão original, que o aparelho ótico europeu não tinha sensibilidade para o tipo de estímulos que dali provinham. Para a velha mentalidade, o fenômeno americano era invisível porque era impensável: faltavam-lhe as categorias para pensá-lo.
Em primeiro lugar, a nação norte-americana formara-se numa revolução anti-imperial e professava uma doutrina anti-imperialista. Se isto representava um perigo, era o perigo da Revolução. Teria sido preciso ser mais maquiavélico do que Maquiavel para supor que, por trás da agitação republicana, estivesse nascendo um novo Império.
Em segundo lugar, os Estados Unidos eram uma nação democrática: a política nacional era fruto de complicadas discussões parlamentares que podiam adiar uma decisão por anos a fio. Do ponto de vista europeu, habituado por três séculos a identificar imperialismo e monarquia absoluta, era impossível imaginar uma política imperial sem um Imperador autocrático. A única República Imperial que conheciam, a Holanda, tinha fracassado redondamente logo no seu primeiro século, e já não era mais que uma vaga lembrança. Sem a unidade da pessoa do Imperador — assim entendiam — não podia haver a unidade de uma política imperial coerente.
Em terceiro lugar, os Estados Unidos não tinham, de fato, uma política imperial coerente e contínua. Suas iniciativas no Exterior eram intermitentes, vacilavam ao choque de tremendas oposições internas. Frequentemente subia ao poder uma corrente isolacionista, que voltava as costas para o mundo.
Em quarto lugar, os EUA não eram só uma nação democrática, mas também capitalista. Os interesses privados, as grandes empresas, tinham ali um poder tremendo, capaz de influenciar as decisões do Estado ou combatê-las, paralisando-as. Ora, os interesses privados, na maior parte dos casos, se opunham às iniciativas expansionistas do Estado, preferindo a penetração comercial às intervenções militares.[1]
Esses dados formavam uma névoa confusa, impedindo o observador de enxergar, entre os fatos contraditórios, a linha de uma dialética histórica que, operando por cima — ou por baixo — das intenções declaradas dos homens e dos grupos, conduzia os Estados Unidos, através dessas contradições mesmas, a seu destino manifesto[2] de suprema potência imperial do mundo.
Não enxergaram a potência imperial nascente, em suma, porque ela não representava apenas um novo imperialismo, mas uma metamorfose da ideia imperial — metamorfose que a tornava irreconhecível, de imediato, aos observadores habituados a pensá-la sob sua velha forma.
Para compreender essa metamorfose — a terceira da história Ocidental —, é preciso ver que ela tem algo em comum com as duas anteriores. Com efeito, nas duas ocasiões anteriores o Império renasceu ao fundir-se com ideias que lhe eram contrárias: “cristianismo”, no primeiro caso; “nação”, no segundo. Estes enxertos antagonísticos deram-lhe vida nova, ao mesmo tempo que constituíram, a longo prazo, as causas de sua destruição.[3]
A contradição constitutiva do primeiro Império cristão foi, como vimos, que a existência de uma “Igreja” independente dele e superior a ele negava, na base, o modelo romano de Império, que ele copiava; assim, o Império cresce movido pelo conflito com a Igreja, e morre quando se exaurem suas possibilidades de dar a esse conflito uma forma viável e produtiva. Mais adiante, os Impérios coloniais modernos constituíram-se como verdadeiros “impérios nacionais” —uma contradição de termos que expressa a contradição real entre a escala multinacional do projeto e o interesse nacional a que ele unilateralmente serve: daí que, em vez de conciliar e administrar os interesses de vários povos numa unidade transnacional, como o exige o conceito imperial originário, os impérios coloniais modernos nada mais fossem que a escravização organizada de vários povos em proveito de um só. Esta contradição, manejada habilmente por trezentos anos, explodiria no fim do século XVIII, com a sucessão de guerras de independência que viriam a destruir todos os impérios coloniais, sem exceção, no prazo que vai da Independência norte-americana à morte de Antonio de Oliveira Salazar (1975).[4]
A nova metamorfose que inaugura o Império americano é uma resposta imediata à crise do domínio colonial. É uma negação ostensiva da versão monárquico-absolutista da ideia imperial. Ela vai, portanto, no mais ousado dos arranjos, fundir essa ideia com aquelas que, no momento, pareciam mais antagônicas ao espírito das velhas monarquias: independência, república, democracia, livre-pensamento. Para quem não compreendia a ideia imperial se não associada às monarquias absolutas, esses termos podiam conter tudo,menos a promessa de um Império. Eis então que o maior dos Impérios nasce invisível àqueles que poderiam tê-lo destruído no berço. Como Moisés na sua cestinha ou Cristo no estábulo.
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Notas
[1] O que já bastaria para chacoalhar até os alicerces a teoria de Hobson e Lênin sobre “o imperialismo, etapa superior do capitalismo”.
[2] Manifest destiny: expressão usada em 1845 pelo editor John Louis O’Sullivan e que se tornaria célebre como símbolo do espírito expansionista: “Our manifest destiny is to overspread the continent alloted by Providence for the free development of our yearly multiplying millions” (cit. em George B. Tindall andDavid E. Shi, America. A narrative History, 2nd. ed., New York, Norton, 1984, p.333).
[3] Que ninguém pense, por favor, que estou raciocinando à maneira de Hegel. No meu entender, os termos de uma contradição real permanecem contraditórios e jamais são perfeitamente absorvidos em síntese alguma, a não ser metafisicamente. As grandes criações históricas constituem, precisamente, tentativas de conciliar, no plano da existência contingente, exigências que só podem ser conciliadas na esfera metafísica, no plano do Ser universal. As formas daí resultantes são sempre tensionais: suas contradições constitutivas mudam deforma, em sucessivos arranjos adaptativos — que constituem precisamente o seu desenvolvimento quantitativo e temporal —, até que, exaurida uma certa linha de adaptações possíveis, o conjunto passa por uma metamorfose global ou morre (isto supondo-se que causas externas mais poderosas não o matem antes). Tal é o pressuposto lógico que embasa as análises que aqui vou fazendo: de um lado, a distinção entre dialética real e dialética ideal (distinção que Hegel não faz); de outro, o reconhecimento de que, na esfera da dialética real, não existe síntese se não potencial, provisória e, portanto, tensional (reconhecimento que falta em Marx). Se, portanto, a mistura hegeliana do ideal com o real não é aceitável, é também uma ingenuidade supor que a mera inversão operada por Marx possa consertar as coisas. Afinal, o que Marx colocou no lugar do “conceito” hegeliano não foram os fatos, na sua complexidade por vezes inabarcável, mas simplesmente um outro conceito abstratista e demasiado simplificador, para não dizer simplório: “materializado” o quanto se queira, o esquema tese-antítese-síntese continua sempre um esquema; e, se pode funcionar como símbolo ou metáfora de certas realidades metafísicas – que fatalmente temos de tentar alcançar por símbolos, já que escapam à esfera da experiência sensível –, não serve de nada como tradução do movimento real da História, que ele falsifica dando metafisicamente um sumiço no fator “contingência” e transformando a incerta e movediça sucessão dos atos humanos numa escala regular de emanações divinas, sucedâneo do Heptameron bíblico. Kolakowski acertou na mosca ao enfatizar as origens místicas da dialética de Hegel e Marx (v. Las Corrientes Principales del Marxismo, trad. Jorge Vigil, t. I, Madrid, Alianza,1976).
[4] É claro que não se trata, em nenhum desses casos, de uma pura contradição lógica entre conceitos, e sim de conflitos reais entre facções, partidos, famílias, classes etc. Se me refiro de modo sumário a “contradições de ideias”, é somente em prol da brevidade.
Interessante notar que, do ponto de vista de Rothbard, o aspecto imperial do governo federal norte-americano foi uma traição da revolução de 1776, e o “isolacionismo” na verdade é o herdeiro legítimo dos fundadores.
Olavo acredita que todo poder político é inerentemente universalista e não aceita a legitimidade de nenhum limite ao seu exercício (Bertrand de Jouvenel tem um argumento similar). Certamente o impulso imperial estava lá desde o princípio dos EUA como entidade política, na figura dos federalistas. Significativamente, foi Jefferson, o anti-imperialista, que presidiu sobre um dos primeiros atos obviamente imperiais do governo federal americano, a compra da Louisiana.
Isso demonstra que a liberdade realmente tem que ser protegida constantemente, ou será eventualmente usurpada, possivelmente por aqueles que há pouco tempo a defendiam! Também sugere que inevitavelmente a vigilância falhará, e o instinto político/imperial estará lá, pronto para dar o bote.