Nas alarmantes notícias sobre as mudanças climáticas, os ursos polares sempre dão as caras. Como um lembrete visual do derretimento do gelo no qual eles caçam focas, a devastação que as sociedades movidas a carbono parecem causar a esses animais majestosos é um problema sério.
Mas também demonstram que a natureza não é agradável.
Em 2018, dois ataques com resultados fatais foram relatados em Nunavut, a região mais ao norte do Ártico canadense. Na Ilha Sentinela, no oeste da Baía de Hudson, Aaron Gibbons se colocou entre suas filhas e um urso polar que se aproximava. Enquanto as filhas pediam ajuda pelo rádio, o urso despedaçou Gibbons, fazendo dele a primeira vítima de urso polar em quase vinte anos, informou a BBC.
Menos de dois meses depois e cerca de 600 quilômetros a sudoeste, uma fêmea de urso polar e um filhote encontraram três caçadores de caribu encalhados que, sem se deixar abater pelos rifles dos caçadores, atacaram e mataram Darryl Kaunak. Antes de serem resgatados, os sobreviventes mataram o atacante e pelo menos um outro urso em autodefesa.
Essas tragédias são extremamente raras, e é por isso que chegam às manchetes (por exemplo, encontros fatais com ursos negros e pardos são muito mais comuns). Além da simpatia que podemos sentir por esses animais perdendo seus habitats, esses ataques também ilustram os perigos inerentes e a crueldade da natureza.
Nos últimos anos, comunidades de Arviat a Igloolik estão relatando avistamentos abundantes de ursos polares – muitas vezes perigosamente perto de áreas residenciais – enquanto os cientistas afirmam que os ursos são frágeis, subnutridos e ameaçados pelas mudanças climáticas. Quer os ursos polares sejam mais numerosos do que os cientistas pensam ou simplesmente estejam se mudando para mais perto de assentamentos humanos, os Inuit que vivem lá são os mais vulneráveis – com muitas comunidades realizando rondas matinais regulares em torno de seus assentamentos para garantir que as ruas sejam seguras para as crianças irem para a escola.
Os ataques de 2018 reavivaram polêmicas sobre os ursos polares no norte do Canadá. Em uma entrevista para a revista canadense Maclean’s, o ancião de Naujaat, Donat Milortok, disse que “antigamente os ursos eram nossa comida. Agora nos tornamos a comida.” Os ursos polares, apesar da aparência simpática que os torna vítimas icônicas das mudanças climáticas, não são naturalmente agradáveis.
Embora os detalhes locais sejam diferentes, histórias semelhantes estão presentes em todos os lugares onde os humanos vivem. Cobras e aranhas na Amazônia ou na Austrália; furacões e terremotos na Califórnia; mosquitos na África subsaariana. A natureza é poderosa e raramente se importa com a vida humana.
Felizmente, as mortes relacionadas ao clima estão em um declínio há um século, apesar das mudanças ambientais sobre as quais os cientistas nos informam. A razão é a riqueza generalizada e a tecnologia que ela oferece: Nós nos tornamos muito melhores em nos proteger contra os elementos.
O fogo, os combustíveis fósseis e a sabedoria ancestral nos permitiram viver e florescer em alguns dos lugares mais inóspitos do planeta, como o extremo Norte: sistemas de alerta evitam que tsunamis ceifem um número incrível de vidas humanas; sistemas de aquecimento e ar condicionado oferecem proteção a milhões de pessoas contra a vida selvagem, os elementos e temperaturas extremas. Riqueza e tecnologia é o motivo pelo qual os holandeses podem viver debaixo d’água, protegidos contra a ira do Mar do Norte, pelo qual os escandinavos e os alasquianos podem viver vidas confortáveis apesar da escuridão e do frio intenso.
Simon Kuper escreveu no Financial Times no início deste ano, refletindo sobre a maravilha da engenharia que são as obras do Delta holandês – a série de represas, eclusas e barreiras de proteção que mantêm as terras baixas do rio holandês seguras:
“Embora a maior parte da Holanda esteja abaixo do nível do mar ou sujeita a enchentes de rios, o número de pessoas mortas por enchentes desde 1953 é zero.”
Embora saúde e riqueza sejam importantes, uma impressionante proteção contra a água não é acessível apenas a um país rico. Os holandeses, “mestres da água”, diz um episódio de Extreme Engineering, há milênios “domesticaram as águas”. Alguns dos documentos financeiros vivos mais antigos são títulos perpétuos de companhias holandesas de água que, quase quatro séculos depois, ainda estão pagando juros sobre o dinheiro arrecadado na década de 1640 para construir diques e combater enchentes. O historiador financeiro de Yale, William Goetzmann, escreve em Money Changes Everything que
“quer o país fosse governado por espanhóis, franceses ou holandeses, as companhias de água mantinham o poder de tributar e a capacidade de levantar seus próprios exércitos em tempos de necessidade – exércitos para combater enchentes. […] Sem suas próprias capacidades, a grande ameaça para os cidadãos não seria de seus vizinhos, mas do risco sempre presente de inundação.”
A Síndrome de Bambi
Os avanços científicos de um mundo mais rico nos permitem controlar melhor a natureza e mitigar os danos que ela pode causar. Como mais humanos hoje – certamente no mundo ocidental – estão bem protegidos dos elementos e da vida selvagem e têm acesso abundante aos alimentos do supermercado local, um distanciamento dos acontecimentos implacáveis da natureza pode resultar em todos os tipos de crenças erradas.
A “Síndrome de Bambi” é um termo frequentemente depreciativo para alguém que – graças às maravilhas do progresso – pode sentir admiração pela natureza e pelos animais sem respeito pelos perigos que eles representam. Proteger ursos polares, gorilas da montanha e florestas tropicais torna-se um imperativo moral descomplicado quando sua preservação não ameaça sua casa e seu sustento.
As comunidades Inuit de Nunavut não têm ilusões sobre a natureza pacífica da vida selvagem. Eles estão intimamente familiarizados com a crueldade da natureza – o frio, o gelo traiçoeiro, os instáveis ursos polares.
Pedir por um melhor controle humano da natureza não é nem se alinhar com os executivos da grande indústria do petróleo, nem as primeiras convicções cristãs de que o homem foi criado para pastorear animais e dominar a natureza. Fundamentalmente, é apontar para a ameaça que a natureza rotineiramente representa para os humanos – aparentemente desnecessário ter que dizer isso quando as pessoas acreditam estar no meio de uma pandemia de um vírus determinado a matar seu hospedeiro a todo custo e das maneiras mais desagradáveis. Doenças, terremotos, tempestades, vulcões, inundações e temperaturas extremas são outras maneiras pelas quais a natureza exibe seu poder sobre toda a vida.
De muitas maneiras, admitimos isso tacitamente. No verão passado, apenas na Inglaterra, mais de 900 mortes foram atribuídas a ondas de calor, muitas vezes devido ao resfriamento insuficiente em asilos. Com a melhoria dos padrões de construção interna e ar condicionado, 28 grandes cidades dos EUA reduziram o número de mortes relacionadas ao calor em 75% desde a década de 1960.
O inverso também se aplica, e muito mais: o frio e a temperatura matam rotineiramente mais de 25.000 pessoas na Inglaterra e no País de Gales, uma “mortalidade excessiva no inverno” frequente entre mulheres com mais de 90 anos. Essas são mortes frequentemente evitáveis aumentando um pouco o termostato. Felizmente, essa contagem está caindo gradualmente, atualmente na metade do que era nas décadas de 1950 e 1960, quando a população era dois terços do que é agora (e menos pessoas atingiram essa idade).
Reconhecendo que os invernos frios matam, que os idosos podem ser mais vulneráveis e financeiramente menos capazes de pagar o aquecimento adequado de suas casas, o governo do Reino Unido desde 1997 concede um “Pagamento de Combustível de Inverno” – um benefício sem contra-partidas para ajudar a pagar contas de aquecimento. O “Pagamento de Energia de Inverno” da Nova Zelândia é um esquema ainda mais generoso, visando o mesmo resultado: ajudar aqueles que podem ter dificuldades para pagar uma melhor proteção contra os elementos rigorosos do inverno.
Esses exemplos apontam para uma verdade básica: com riqueza e tecnologia, podemos nos proteger melhor contra os poderes destrutivos da natureza – sejam eles por meio de tempestades, temperaturas extremas ou outros eventos impactados pelo clima. A lição é esta: a proteção concedida a nós por meio da riqueza e da tecnologia supera em muito qualquer dano maior que a natureza possa nos impor.
Na era do aquecimento global, proteger os humanos de uma natureza destrutiva é ainda mais importante. Como a mudança climática significa tempestades, secas e incêndios mais frequentes e severos, o imperativo se torna mais forte. Devemos continuar a enriquecer cada vez mais os quase oito bilhões de pessoas do mundo, permitindo-lhes acesso aos dispositivos tecnológicos necessários – e os meios financeiros para pagá-los.
Os humanos afetaram o planeta e seu ecossistema de muitas maneiras – muitas por meio de experimentos estúpidos, acidentes ou pura ignorância. Por meio da riqueza e do conhecimento, estamos corrigindo isso. Mas quando a natureza ameaça a vida humana, seja através da invasão de ursos polares no Ártico ou da destruição gradual devido à mudança climática, procuramos nos proteger. Os ursos polares foram baleados, o termostato foi aumentado, o ar condicionado instalado.
A natureza pode ser preservada, mas não é amigável. Com a mudança climática tornando a natureza ainda menos segura, faríamos bem em deixar a tecnologia e o crescimento econômico global nos proteger. Com riqueza e tecnologia, podemos domá-la e nos proteger contra seus piores excessos.
Devemos derrubar o mito da Síndrome de Bambi.
Artigo original aqui.