Thursday, November 21, 2024
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A vacinação obrigatória e a ética da liberdade

Por muito tempo a questão da vacinação obrigatória foi um assunto que cingiu bastante o âmago da minha moral. Já me considerava liberal, desprezava a ideia de agentes do Estado inoculando pessoas, mas não conseguia abandonar o pensamento utilitarista da erradicação de doenças, ignorar meus conhecimentos sobre as porcentagens de eficácia e outras noções a respeito do assunto que resultavam no seguinte pensamento: “eu sei que é praticamente certo que o melhor é que aquele indivíduo seja vacinado, portanto, talvez não seja um problema tão grande a obrigatoriedade”.

Com Mises, compreendi a natureza incerta de nossa atuação no mundo, algo inerente à vida humana. A tecnologia pode transformar essas incertezas, mas devemos desconfiar quando assume-se que pode aplacá-las ou eliminá-las. Hayek me trouxe a percepção incrível da essência do conhecimento como algo disperso e fluido, o que está na base de toda a explicação sobre a impossibilidade da centralização das decisões – impossibilidade que, quando desafiada, transforma-se em algo maior do que a simples frustração do empreendimento original: gera poder arbitrário.

O contato com esses modos de raciocínio se deu de um jeito limitado dentro do meu processo cognitivo: eu percebi, fez sentido, mas não consegui abarcar a realidade com eles a ponto de me desprender de velhos vícios de pensamento e separar algo racionalmente correto daquilo que me abalava emocionalmente por puro costume – adquirido pelo contato com o conhecimento mainstream e com minha mãe, que sempre trabalhou com doenças infectocontagiosas e possui uma visão específica do assunto, que não leva em consideração a realidade com todos os seus indivíduos atuantes.

Quando a crise do Coronavírus chegou, com todas as suas imposições fruto de um claro capricho dos governantes, ela trouxe consigo algo muito mais perigoso do que a simples imposição pelo uso da força, trouxe um controle sobre a mentalidade das pessoas amparado no medo e no desespero.

Eu observei o processo tentando vencer o pavor e separar algumas informações que pareciam mais claras o que, no fim, conduziu a alguns insights a respeito da ameaça do controle totalizante – que inclui manipulação mental por meio de aproximações pouco lógicas, porém assustadoras, entre fatos -, ameaça essa claramente mais intensa e absoluta do que a dos eventuais perigos dispersos na ordem natural. Ou seja, é melhor não mexer em algo, do que mexer com arrogância fatal; como alguém que acha que desvendou todo o processo de um determinado conhecimento afirmando que, pelo menos aquele discernimento, ele pode impor.

Essa crise foi um exemplo vivo para as teorias mais sólidas e tradicionais anti-coletivistas. Eu percebi o que aconteceu, mas ainda assim hesitei por alguns instantes na corda bamba do “vacinas em geral talvez devam ser obrigatórias, esta, não.” Qual a explicação? “Pois nesta eu não confio”. Mas algumas pessoas confiam, ainda que sem terem como apresentar a lógica de sua convicção no processo como um todo. Se eu posso obrigar alguém a tomar a que eu confio, qual a barreira ética que impede as pessoas, do exemplo anterior, de fazerem o mesmo com a minha liberdade individual, com o meu processo, que deveria ser de escolha individual dentro das mil possibilidades e variáveis da realidade?

O meu raciocínio, no caso das vacinas anteriores à do Corona, era, se destrinchado – algo que eu evitava fazer – o de que eu aceito a natureza dispersa do conhecimento e a impossibilidade de dominar todas as variáveis a ponto de homogeneizar uma determinada escolha, mas naquele caso específico, eu teria tantas informações, que daria pra abrir uma exceção.

Essa é a armadilha do coletivista. E eu caí. Os clássicos que escreveram contra esse tipo de controle já nos alertavam para os perigos de não se considerar as variáveis não-óbvias, pois as evidentes nunca serão utilizadas como estratégia de controle. Ninguém vai usar algo que não está incrustado como ostensivamente inquestionável na opinião mainstream para controlar você. É sempre aquilo que convence.

Quando a discussão inclui um Estado impondo a vacinação com o uso da força, quase todo o nosso espectro fica reticente em defender. Porém, um problema que eu notei recentemente foi a contorção de raciocínio que alguns libertários utilizaram para continuar salvaguardando seu “ódio” intelectual ao Estado e, ainda assim, assumir que poderíamos incluir algum tipo de criminalização, dentro de um sistema ético, àquele que escolhe não se vacinar – esses libertários querem o melhor dos dois mundos. Eles recorrem a um PNA estendido e afirmam que contaminar alguém pode ser tratado como dano à propriedade.

Para isso, desenham um raciocínio baseado em experimento social, mostrando que nada entendem sobre a natureza incerta da vida. Eles fazem perguntas retóricas do tipo “se alguém contaminar alguém, pois o primeiro não tomou vacina, podemos levar essa pessoa a julgamento.” Percebe-se que eles retiram um trecho controlado da realidade para fazer a análise, sendo que numa ação real, a possibilidade de se identificar exatamente os processos de contaminação são ínfimos, pela própria natureza biológica do ser humano, que estará sempre sujeita a esse tipo de transtorno. A vacinas são bônus.

Eles trocam o Estado por organizações, segundo eles, mais eficientes que o primeiro, pois seriam privadas, sem se preocuparem em dar quaisquer explicações sobre a diferença essencial entre as duas formas de coerção e julgamento, já que a essência da moral utilizada é a mesma. Isso me parece um raciocínio raso; lutar contra o Estado apenas por decidirem que vão fazê-lo, a priori, sem entender a essência do problema da centralização é algo que não se sustenta logicamente. Assusta-me ainda mais esse júri eficiente descrito por eles, composto por quem? Especialistas? Essa proposta de sociedade deixa a de qualquer engenheiro social no chinelo.

Já que abordamos a lógica engenharia social, o que acham de uma ética modificada conforme a técnica? Enquanto não há vacinas, não há culpa, a partir do momento que há, tipificamos crime. A ética, enquanto norteadora basilar das nossas instituições – tratadas aqui como algo mais elementar e não, necessariamente, ligadas a um Estado – deve ser atemporal e ontológica; qualquer coisa além disso é facilmente manipulada por um coletivista com frases prontas do tipo “estamos em pleno XXI, como ainda há pessoas que pensam assim” ou “liberdade tem que vir com responsabilidade”.

Essa última é a pior. É a favorita dos liberais medíocres de todo mundo. Frase vaga, que parte do pressuposto de que a responsabilidade é uma categoria externa e não uma virtude individual, que está, por sua vez, intrinsecamente relacionada a atos e consequências orgânicas inerentes a um indivíduo. A crença na imposição da responsabilidade através de um processo ético centralizado está contida em um raciocínio extremamente vacilante em sua lógica interna.

Responsabilidade é virtude moral. Acredito que se desenvolveria em mais gente numa sociedade saudável do que em um sistema cheio de imoralidades, porém, não podemos contar com ela como fator objetivo dentro de uma ética essencialista. Ela melhora a vida, não serve para definir limites objetivos de atuação. O PNA se relaciona com atos, praticados dentro dos limites da civilização, nos quais você consegue apontar o perpetrador, o meio de ação direto e a vítima.

Contaminação por doenças é algo que sempre ocorreu e ocorrerá, usamos meios tecnológicos para remediá-las, e discussões estatísticas para ajudar as pessoas a decidirem o que é o melhor, num plano individual. Não se pode apoiar-se nesse tipo de análise por sondagem para determinar ação sistemática, pois ela parte de uma amostra da realidade ou de uma soma de amostras tratadas com média aritmética.

A atuação no mundo é incerta, não é possível garantir que aquele indivíduo, naquele espaço geográfico e temporal estará na média ou será um bom exemplar da amostra. Além do mais, não se vacinar é um não-ato; lesar alguém incluí atuação ou, pelo menos, resultado objetivo de uma displicência, por exemplo, não alimentar um bebê resulta em inanição, clara e objetivamente.

Nas minhas discussões com os liberais, eu citei situações de incerteza que conheço, como ineficiência de alguns lotes da vacina, reações adversas e, até mesmo, a não objetividade dos resultados: você pode não tomar e não pegar; pode pegar e não passar; pode passar e o outro não manifestar; o outro pode conviver com alguém contaminado e ainda ser contaminado por um terceiro. E fui tratada como uma relativista que, assim como os de esquerda, quer um mundo com pessoas que não possuem deveres morais.

Primeira coisa a se considerar: eu citei algumas possibilidades no mar de incertezas, mas as variáveis são muitas, de modo que as mais perigosas são as não vistas e, portanto, não consideradas pelo planejador. Segunda: separar o que é abstrato, como um dano remoto, potencial e natural – o ser humano não participa ativamente, é apenas um meio de transmissão -, do que é objetivo – um dano incisivo e ativo contra a propriedade corporal ou material de outrem não é ser relativista, é justamente tentar solidificar o que é objetivo nesse mar de incertezas, para que possamos formar uma ética robusta.

Ouvi também, de alguns libertários, que o indivíduo tem a liberdade de não tomar a vacina, porém, terá que lidar com as consequências de contaminar alguém – isso considerando que seja possível detectar o contaminador. O raciocínio é o mesmo de se afirmar que há liberdade de expressão, porém a pessoa terá que lidar com as consequências do que ela diz, algo muito usado para coagir as pessoas em torno de um discurso homogêneo.

Se essas consequências forem descentralizadas, do tipo: “alguém vai ficar chateado com você”, acho justo, pois estamos tratando de um campo psicológico de análise, aqui podemos falar em responsabilidade. Porém, o conceito de consequência não pode estar dentro do campo ético de atuação sistemática, o que daria base para alguém se sentir lesado e determinar o julgamento e potencial criminalização de uma fala através de alegações subjetivas – novamente, poder arbitrário.

Potencial de dano e perigo remoto, não podem ser incluídos em um sistema centralizado de defesa, pois isso seria violar a própria natureza da vida humana. Não sou insensível, temo, como qualquer ser humano, os perigos das escolhas alheias, porém, percebi racionalmente e passei a temer ainda mais, os riscos à liberdade que o uso dessa estratégia da tipificação criminal para danos vagos acarretaria. Seria o fim do debate sobre uma série de coisas que dependem de fatores extremamente inconstantes, como conhecimento científico, conhecimento estatístico e uma cadeia de seres humanos, com todas as suas subjetividades, trabalhando em cima e uma teoria final.

E se alguém não puder tomar a vacina por reação alérgica ou por ser imunodeprimido, essa pessoa será condenada da mesma forma se, supostamente, contaminar alguém? Podem afirmar que não, já que ela tinha uma ressalva, mas se olharmos mais acuradamente para o exemplo, ela poderia sobreviver à reação e depois parar de contaminar os outros. Por que a escolha dela foi mais livre do que a dos demais? Apenas por apresentar consequências mais óbvias para cada uma das alternativas? Esse tipo de exceção é o suficiente para desenhar uma linha divisória em uma ética sólida?

E quem escolheu vacinar o filho e a criança apresentou uma reação ou sequelas, algo que, ainda que raro, é possível, esse pai seria responsabilizado? Não? Por que, se isso também foi uma consequência da escolha dele? E, por fim, qual a fronteira entre esse tipo de obrigatoriedade e criminalizar alguém por sair na rua enquanto a vacina ainda não existe ou não é acessível?

Perceba que a discussão gira em torno de algo que incomoda particularmente um grupo de pessoas e não de critérios éticos sólidos. Por isso deve-se ter cuidado com frases genéricas sobre as responsabilidades individuais.

Em “Conflito de Visões”, Thomas Sowell fala sobre a impossibilidade de apreendermos o mundo tal qual ele é. O que tiramos da realidade é uma “visão”, como alguém observando, por sob o muro, um terreno cheio de bosques, descampados e depressões e percebendo apenas uma parte do todo. Considerando isso, uma narrativa criada em torno de determinado problema faz com que nos atamos àquele problema em detrimento de outras variáveis da realidade, a ponto de cumular em atitudes absurdas. Lembrei-me de uma crônica em que o cidadão, desesperado para escapar à morte, depois de tentar várias estratégias falhas, resolveu tirar a própria vida.

Ter algum nível de foco obsessivo individualmente é, não só aceitável, como parte da natureza limitada do conhecimento humano. O problema é, porém, quando um grupo se une em torno de uma narrativa e a sistematiza a ponto de defender atos centralizados e coercitivos com base nela. Acredito que é isso que o ocorre quando o planejamento social nos atiça, focalizamos um traço da realidade, uma amostra, olhamos para o mundo como se os dois pontos que formam aquele caminho fossem os únicos presentes no universo de mil retas possíveis da ação humana.

Mais do que aos socialistas, temo aos libertários que combatem o Estado pelo fetichismo do anti-estatismo, sem se preocupar com a essência do controle por meio do técnico, do especialista, do eficiente. Aplicar um raciocínio ético centralista e problemático a um júri privado é o mesmo que falar que o Estado só não é bom porque as pessoas que o compõe são incompetentes, e não por sua natureza monopolista. E quanto mais tecnicismo e apelo a argumentos científicos, tirando-os do seu lugar de campo de debate para transformá-los em estratégias certas de controle social, mais difícil será lutar contra esse monstro totalitário e arbitrário. Além de tornar o argumento anti-estatista falacioso e debilitado, no qual sua premissa é sua conclusão: “sou contra isso, pois o Estado está fazendo isso e eu sou contra o Estado”.

Natália Vicente Jaremko
Natália Vicente Jaremko
formada em história, faz mestrado na área de história moderna e estuda os seguintes temas: surgimento do Estado Moderno, legitimidade e legalidade, parlamento inglês, liberdade de imprensa, lei natural e o conceito clássico de republica - 'bem comum'. Estuda paralelamente o problema do conhecimento disperso e o papel do intelectual na sociedade.
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2 COMENTÁRIOS

  1. Não é uma questão complicada.

    Não se pode obrigar pessoas a injetarem substâncias químicas em seus corpos. FIM.

    Proteger sua vida é responsabilidade sua. Vc não pode sacrificar outras pessoas para se salvar. Ainda mais se tratando de uma doença cuja possibilidade de matar gira em torno de 0,13%…..é até ridículo…

    • Já estamos chegando no final do ano e ainda estamos falando de uma doença que mata 0,13%
      E ainda querem obrigar. Quero só ver oq vai acontecer em 2021, será que ainda vamos estar falando de covid?

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