InícioUncategorizedXII — A Justiça da Eficiência Econômica

XII — A Justiça da Eficiência Econômica

O problema central da economia política é o de como organizar a sociedade de modo a promover a criação de riqueza. O problema central da filosofia política é o de como organizar a sociedade de modo a fazê-la uma ordem social justa.

A primeira questão considera questões de eficiência: quais meios são apropriados para alcançar um resultado específico, nesse caso riqueza?

A segunda questão encontra-se fora da esfera das chamadas ciências positivas. Ela pergunta se o objetivo que a economia política assume pode ser justificado como um objetivo ou não, e, em seguida, se os meios que a economia política recomenda podem ser considerados como meios eficientes para fins justos ou não.

A seguir, eu apresento uma justificativa a priori para a tese de que aqueles meios recomendados pela economia política são de fato meios eficientes para fins justos.

Eu começo descrevendo os meios recomendados pela economia política e explico as razões sistemáticas pelas quais a produção de riqueza ao adotá-los é maior que a produzida ao se escolherem quaisquer outros meios. Uma vez que minha tarefa principal é demonstrar a justiça desses meios de produzir riqueza, minha descrição e explicação da eficiência econômica será breve.

A economia política começa com o reconhecimento da escassez. É apenas porque não vivemos no Jardim do Éden que nos preocupamos com o problema da eficiência econômica. Segundo a economia política, os meios mais eficientes de aliviar, se não superar, a escassez é a instituição da propriedade privada. As regras que subjazem essa instituição foram corretamente identificadas na sua maioria por John Locke. Elas são as seguintes:

Cada pessoa possui seu próprio corpo, bem como todos os bens escassos que ela coloca em uso com a ajuda de seu corpo antes que qualquer outra pessoa o faça. Essa propriedade implica o direito de empregar esses bens escassos de qualquer maneira que se considere adequada, conquanto que ao fazê-lo não se agrida a propriedade de outrem, i.e., contanto que não se altere, sem ser convidado, a integridade física da propriedade de terceiros ou se limite o controle de terceiros sobre ela sem o consentimento destes. Particularmente, uma vez que um bem tenha sido apropriado ou ocupado ao misturá-lo com seu trabalho (a frase é de Locke), então a propriedade sobre ele só pode ser adquirida por meio de uma transferência contratual do título de propriedade de um proprietário anterior para um posterior.

A razão pela qual essa instituição leva à maior produção de riqueza possível é bem clara. Qualquer desvio desse conjunto de regras implica, por definição, uma redistribuição de títulos de propriedade (e, logo, de renda) dos usuários-produtores e contratantes de bens para não-usuários-produtores e não contratantes de bens. Como consequência, qualquer desvio implica que haverá relativamente menos apropriação original de recursos cuja escassez seja percebida, haverá menos produção de novos bens, menos manutenção de bens existentes e menos contratos mutuamente benéficos e comércio. Isso naturalmente implica um padrão de vida mais baixo em termos de bens e serviços comerciáveis. Além disso, a condição de que apenas o primeiro usuário (e não um posterior) de um bem adquire sua posse assegura que esforços produtivos serão tão intensos quanto possível sempre. Ademais, a condição de que apenas a integridade física da propriedade (e não os valores das propriedades) seja protegida garante que cada proprietário empreenderá os maiores esforços produtores de valor possíveis, i.e., esforços para promover mudanças favoráveis nos valores das propriedades e prevenir e opor-se a qualquer mudança desfavorável nos valores das propriedades (como podem resultar das ações de terceiros em relação à sua propriedade). Portanto, qualquer desvio dessas regras também sempre implica níveis reduzidos de esforços produtores de valor.

Agora vamos à minha tarefa principal de demonstrar que a instituição da propriedade privada como já caracterizada é justa – na verdade, que apenas esta instituição é justa e qualquer desvio dela é não apenas economicamente ineficiente como também antiética.

Primeiro, entretanto, permita-me esclarecer uma similaridade essencial entre o problema defrontando a economia política e aquele defrontando a filosofia política – uma similaridade que filósofos políticos na sua ignorância generalizada da ciência econômica geralmente negligenciam apenas para acabar em infindáveis argumentos ad hoc. O reconhecimento da escassez é não apenas o ponto de partida da economia política; é também o ponto de partida da filosofia política. Obviamente, se houvesse uma superabundância de bens, nenhum problema econômico existiria. Com uma superabundância de bens tal que meu uso presente deles não reduziria nem meu próprio suprimento futuro nem o suprimento presente ou futuro deles para qualquer outra pessoa, problemas éticos de certo ou errado, justo ou injusto, não surgiriam também, uma vez que nenhum conflito sobre o uso de tais bens poderia surgir. Apenas na medida em que bens são escassos é que a ciência econômica e a ética são necessárias. Do mesmo modo, como a resposta ao problema da economia política deve ser formulada em termos de regras restringindo os usos possíveis de recursos enquanto recursos escassos, a filosofia política também deve responder em termos de direitos de propriedade. A fim de evitar conflitos inescapáveis, ela deve formular um conjunto de regras atribuindo direitos de controle exclusivo sobre bens escassos. (Note que mesmo no Jardim do Éden o corpo de uma pessoa, o espaço ocupado por este corpo e o tempo ainda seriam escassos e nessa medida a economia e a filosofia políticas ainda teriam uma tarefa, mesmo que limitada, a cumprir).

Agora voltemo-nos à prova concreta de que, das maneiras infinitamente imagináveis de atribuir direitos de propriedade exclusiva às pessoas, apenas as regras de propriedade privada previamente descritas são realmente justificáveis. Eu apresentarei meu argumento passo a passo.

Primeiro, embora a escassez seja uma condição necessária para o surgimento do problema da filosofia política, ela não é suficiente. Porque obviamente nós podemos ter conflitos em relação ao uso de recursos escassos com, digamos, um elefante ou um mosquito, porém nós não consideraríamos possível resolver esses conflitos por meio de propostas de normas de propriedade. Nesses casos, evitar conflitos é meramente um problema tecnológico, e não ético. Porquanto, para que se torne um problema ético, é também necessário que os agentes conflitantes sejam capazes, em princípio, de argumentar. De fato, isso é inegavelmente assim porque nós também estamos ocupados com argumentação aqui. Negar que filosofia política pressupõe argumentação é contraditório, uma vez que a própria negação seria em si mesma um argumento. Apenas com a argumentação é que as ideias de validade e verdade surgem, e não apenas a ideia de verdade em assuntos éticos, mas de verdade em geral. Apenas dentro da argumentação é que reivindicações de verdade de qualquer tipo são feitas, e é apenas no curso da argumentação que reivindicações de verdade são decididas. Essa proposição, ao que parece, é ela mesma inegavelmente verdadeira: não se pode argumentar que não se pode argumentar, e não se pode contestar saber o que significa fazer uma reivindicação de verdade sem implicitamente afirmar que ao menos a negação desta proposição é verdadeira. Meu primeiro passo na seguinte cadeia de raciocínio, então, tem sido chamado de o “a priori da argumentação” por filósofos como Jürgen Habermas e K. O. Apel.[1]

Da mesma forma que é inegavelmente verdade que ética requer argumentação, é também inegavelmente verdade que qualquer argumento requer uma pessoa argumentando. Argumentar não consiste de proposições flutuando no ar. É uma atividade. Se, entretanto, além de qualquer coisa que seja dita em seu decurso, a argumentação também é uma questão prática e é a pressuposição de reivindicação de verdade e proposições possivelmente verdadeiras, então se infere que normas intersubjetivamente significativas devem existir – nomeadamente aquelas que fazem de uma ação uma argumentação – as quais devem ter um status cognitivo especial, pois que elas são as precondições práticas da verdade. De novo, isso é verdadeiro a priori, de modo que qualquer um, tal qual um empirista-positivista-emotivista que negue a possibilidade de uma ética racional e que declarasse a aceitação ou rejeição de normas como uma questão arbitrária, seria pego invariavelmente em uma contradição prática. Porque, ao contrário do que ele dissesse, ele iria de fato ter de pressupor as normas que subjazem qualquer argumentação como válidas simplesmente para dizer qualquer coisa.

Com seguinte passo eu perco, de uma vez por todas, a companhia de filósofos como Habermas e Apel.[2] Ainda assim, como ficará claro a seguir, ele está diretamente implicado no passo anterior. Que Habermas e Apel sejam incapazes de dar este passo é, eu digo, devido ao fato de eles, também, sofrerem, como muitos outros filósofos, de uma completa ignorância da ciência econômica e uma correspondente cegueira em relação ao fato da escassez. O passo é simplesmente este: reconhecer que argumentação é uma forma de ação e que não consiste de sons flutuando no ar implica o reconhecimento do fato de que toda argumentação requer que uma pessoa tenha controle exclusivo sobre o recurso escasso de seu corpo. Enquanto houver argumentação, há reconhecimento mútuo da propriedade privada de cada um sobre o próprio corpo. É esse reconhecimento do controle exclusivo de cada um sobre seu próprio corpo, pressuposto por toda argumentação, que explica a característica única da comunicação verbal que, enquanto pode-se discordar sobre o que foi dito, ainda é possível concordar, ao menos, com o fato de que há essa discordância. De novo, esse direito de propriedade sobre o próprio corpo deve dizer-se justificado a priori, pois qualquer um que tente justificar qualquer norma já teria de pressupor o direito exclusivo ao controle sobre seu corpo como uma norma válida a fim de dizer “eu proponho isto e aquilo”. Além disso, qualquer um que tente contestar o direito de propriedade sobre seu próprio corpo seria preso em uma contradição prática, uma vez que argumentar dessa maneira já implicaria a aceitação da própria norma que ele está contestando. Ele nem abriria sua boca se estivesse certo.

O argumento final estende a ideia de propriedade privada como justificada, e justificada a priori, do próprio protótipo de um bem escasso (o corpo de uma pessoa) aos outros bens. Ele consiste de duas partes. Eu primeiro demonstro que a argumentação, e a justificação argumentativa de qualquer coisa, pressupõe não apenas o direito de controlar exclusivamente seu corpo, mas também o direito de controlar outros bens escassos, pois se ninguém tivesse o direito de controlar outras coisas exceto seu próprio corpo, então nós todos deixaríamos de existir e o problema de justificar normas – bem como todos os outros problemas humanos – simplesmente não existiria. Nós não vivemos apenas de ar; logo, simplesmente em virtude do fato de estarmos vivos, direitos de propriedade sobre outras coisas devem também ser pressupostos como válidos. Ninguém que esteja vivo poderia argumentar outra coisa.

A segunda parte do argumento demonstra que apenas a ideia lockeana de estabelecer reivindicações de propriedade por meio de apropriação original é um princípio justo de aquisição de propriedade. A prova emprega um simples argumentum a contrario: se uma pessoa não adquirisse o direto de controle exclusivo sobre outros bens dados pela natureza por seu próprio trabalho, isto é, se outras pessoas que não tenham usado previamente esses bens tivessem o direito de contestar a reivindicação de propriedade do apropriador original, então isso apenas seria possível se se adquirissem títulos de propriedade não por meio de trabalho, i.e., ao estabelecer algum elo objetivo entre uma pessoa específica e um recurso escasso específico, mas simplesmente por meio de declaração verbal. Tal solução – além do fato óbvio de que nem se qualificaria como uma solução em um sentido puramente técnico, pois não proveria uma base para decidir entre reivindicações declarativas rivais – é incompatível com a já justificada posse de uma pessoa sobre seu próprio corpo. Porque se se pudesse de fato apropriar-se de propriedade por decreto, isso implicaria que também seria possível declarar o corpo de outra pessoa como sua propriedade. Entretanto, como vimos, dizer que propriedade é adquirida não por meio de ação de apropriação original, mas por declaração, envolve uma contradição prática: ninguém pode dizer e declarar nada, ao menos que seu direito de usar seu corpo já seja aceito como válido simplesmente em razão do próprio fato de que, a despeito do que ele diz, é ele, e ninguém mais, que originalmente apropriou-o como seu instrumento para dizer qualquer coisa.

Com isso, minha justificação a priori da instituição da propriedade privada está essencialmente completa. Apenas dois argumentos suplementares são necessários a fim de assinalar por que e onde todas as outras propostas éticas (deixe-me chamá-las de socialistas) são argumentativamente indefensáveis.

Segundo a ética da propriedade privada, recursos escassos que estão sob controle exclusivo de seus proprietários são definidos em termos físicos, e, mutatis mutandis, agressão é definida como uma invasão da integridade física da propriedade de outra pessoa. Como indicado, o efeito econômico dessa condição é de maximizar esforços produtores de valor. Um desvio popular disso é a ideia de definir, em vez disso, agressão como uma invasão do valor ou da integridade psíquica da propriedade de outra pessoa. Essa ideia constitui a base do “princípio da diferença” de John Rawls de que todas as desigualdades têm de se esperar que sejam vantagem de todos independentemente de como essas desigualdades tenham surgido[3], a reivindicação de Robert Nozick de que uma “agência de proteção dominante” tem o direito de banir competidores independentemente de suas ações concretas e sua reivindicação relacionada de que “trocas não produtivas”, nas quais uma das partes estaria em melhor situação caso a outra parte não existisse, devem ser declaradas ilegais, de novo independentemente de se essa troca envolveu ou não qualquer agressão física.[4]

Essas propostas são absurdas bem como indefensáveis. Enquanto toda pessoa tem controle sobre se suas ações causam mudanças na integridade física de algo ou não, o controle sobre se suas ações afetam a mudança do valor da propriedade de alguém ou não recai sobre outras pessoas e suas avaliações. Ter-se-ia de interrogar e chegar a um acordo com a população de todo o mundo para se ter certeza de que suas ações planejadas não alterariam a avaliação de outra pessoa em relação à sua propriedade. Todos estaríamos mortos antes que isso pudesse ser concluído. Além disso, a ideia de que o valor da propriedade deve ser protegido é argumentativamente indefensável, pois a fim de ao menos argumentar deve-se pressupor que ações devem ser permitidas antes de qualquer acordo concreto, porque, se não fossem, nem se poderia argumentar isso. Porém se se pode, então isso apenas é possível por causa de fronteiras objetivas de propriedade, i.e., fronteiras que qualquer pessoa pode reconhecer como tais por si mesma, sem ter de primeiro concordar com mais ninguém quanto a um sistema de valores e avaliações. Rawls e Nozick nem poderiam abrir suas bocas se fosse de outra maneira. O próprio fato, então, de que eles abrem-nas prova que o que eles dizem é errado.

O segundo desvio, igualmente absurdo e indefensável, é este: em vez de reconhecer a importância vital da distinção antes-depois ao decidir entre reivindicações conflitantes de propriedade – como o faz a ética da propriedade privada, assim assegurando que esforços produtores de valor sejam tão intensos quanto possível sempre –, a reivindicação é feita, em essência, de que prioridade é irrelevante e que retardatários têm direitos de propriedade da mesma forma que os que chegam primeiro. Novamente, com sua crença nos direitos de gerações futuras, precisamente taxas de poupança e coisas do tipo, Rawls pode ser citado como um exemplo. Entretanto, se retardatários tiverem, de fato, reivindicações legítimas a coisas, então literalmente a ninguém seria permitido fazer qualquer coisa com nada, pois se teria de ter o consentimento prévio de todos os retardatários para fazer qualquer coisa que se quisesse. Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossa descendência poderiam ter sobrevivido, podem sobreviver ou sobreviveriam caso se seguisse essa regra. Entretanto, para qualquer pessoa – passada, presente ou futura – argumentar algo, evidentemente deve ser possível sobreviver antes e agora. Ademais, para fazer somente isso – e mesmo pessoas atrás de um “véu da ignorância” rawlsiano teriam de ser capazes de sobreviver –, direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo atemporais e não específicos em relação ao número de pessoas interessadas. Pelo contrário, eles devem ser pensados como tendo origem por meio de ações em pontos específicos do tempo por agentes individuais específicos. Do contrário, seria impossível para alguém dizer algo em um ponto definido do tempo e para outra pessoa ser capaz de responder. Simplesmente dizer, então, que a distinção antes-depois pode ser ignorada implica uma contradição, uma vez que para ser capaz de dizer isso deve se pressupor sua existência como uma unidade de tomada de decisão independente em qualquer ponto do tempo.

Logo, eu concluo que qualquer ética socialista é um fracasso completo. Apenas a instituição da propriedade privada, que também assegura a maior produção de riqueza possível, pode ser justificada argumentativamente, porque é a própria precondição da argumentação.

 

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NOTAS

[1] K. O. Apel, “Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik”, em idem, Transformation der Philosophie (Frankfurt/M.,1973), vol. II; Jürgen Habermas, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln (Frankfurt/M. 1983).

[2] Apel e Habermas essencialmente ficam em silêncio sobre a questão decisiva de qual prescrição ética realmente se infere do reconhecimento do “a priori da argumentação”. Entretanto, há comentários indicando que ambos parecem acreditar que algum tipo de socialdemocracia participativa está nesse a priori. O que se segue explica por que nada poderia estar mais longe da verdade.

[3] John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), p. 60, pp. 75f., 83.

[4] Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (New York: Basic Books, 1974), pp. 55f., 83–86.

Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo e A Economia e a Ética da Propriedade Privada.
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