[Escrito em 1972, este foi o primeiro trabalho de revisionismo de Ayn Rand sob uma ótica libertária.]
Nos Estados Unidos da década de 1970 as pessoas estavam bastante familiarizadas com as seitas religiosas, que vinham se multiplicando desde a década anterior. Característica marcante das seitas (Seja Hare Krishna ou Igreja da Unificação (os “Moonies”), Seminário de Treinamento Erhard (EST), Cientologia ou Família Manson) é a supremacia do guru, ou “Líder Máximo”, que também é o criador e intérprete final da doutrina a qual o seguidor deve ser inquebrantavelmente fiel. As maiores, senão únicas exigências para a entrada e progresso do fiel na seita são manifestar lealdade absoluta, adoração ao guru e obediência cega a seus mandamentos. As vidas dos seguidores são dominadas pela influência e presença do guru. Se a seita passa a ter mais do que apenas um punhado de membros, naturalmente forma-se uma estrutura hierárquica, visto que o guru não pode passar seu tempo evangelizando e vigiando cada um dos discípulos. As principais posições na hierarquia são geralmente ocupadas pelos seguidores mais antigos, em virtude de sua trajetória de serviço leal e devotado. Pode acontecer de membros da alta liderança possuírem laços entre si que vão além da seita, uma eventualidade útil que pode fortalecer a lealdade à crença através do vínculo familiar.
Os objetivos da liderança são o dinheiro e o poder. O poder é alcançado sobre as mentes dos discípulos induzindo-os a seguir o guru e sua doutrina sem questionamentos. Essa devoção é construída através de pressão psicológica. Uma vez que o seguidor está imbuído com a ideia de que a comunicação com o guru e a aprovação dele são essenciais para sua vida, então a ameaça implícita e explícita de excomunhão – remoção direta ou indireta da presença do guru – cria uma poderosa tortura psicológica para “reforçar” a lealdade e a obediência. O dinheiro flui pela hierarquia partindo da base para o topo, seja por trabalho voluntário prestado pelos seguidores ou através de pagamentos em dinheiro.
Deve estar claro neste ponto da história que uma seita ideológica pode assumir as mesmas características que uma seita mais notoriamente religiosa, mesmo quando a doutrina é explicitamente ateísta e antirreligiosa. É sabido que os cultos a Hitler, Mussolini, Stalin, Trotsky e Mao são religiosos em sua essência, apesar do ateísmo explícito do último. A adoração ao fundador e líder da seita, a estrutura hierárquica, a lealdade inabalável, as torturas psicológicas (e até físicas, quando o estado detém o poder), são muito evidentes.
O exotérico e o esotérico
Toda seita religiosa tem dois conjuntos de discursos distintos e opostos: o exotérico e o esotérico. O discurso exotérico é o oficial, a doutrina pública, a ideologia que é o principal chamariz para o seguidor e o insere no movimento como um membro da base. O discurso esotérico diverge consideravelmente do primeiro, diz respeito aos objetivos ocultos, secretos, princípios que são totalmente conhecidos apenas pela liderança, os “sumos sacerdotes” da seita. Eles são os guardiões dos mistérios da fé.
Porém as seitas tornam-se particularmente fascinantes quando o esotérico e exotérico não são apenas diferentes, mas total e evidentemente contraditórios entre si. O dano que essa incoerência básica causa nas mentes e nas vidas dos discípulos pode ser facilmente imaginado. Note-se que as várias seitas marxistas-leninistas exaltam pública e oficialmente a razão e ciência, rejeitam toda religião, e mesmo assim os seguidores são misticamente envolvidos pela seita e sua suposta infalibilidade.
Diante disto, Alfred G. Meyer escreve a respeito das visões leninistas sobre a infalibilidade do partido:
“Lênin parece ter acreditado que o partido, como entidade organizada, entidade como um mecanismo de tomada de decisão, tinha poder para um raciocínio superior. De fato, com o tempo esse corpo coletivo assumiu uma aura de infalibilidade, que mais tarde foi elevado a um dogma, e a lealdade dos membros era medida, em parte, pela aceitação deste dogma. Tornou-se parte da conduta do culto comunista pregar que o partido nunca estava errado… O partido em si nunca comete erros.”[1]
Se as óbvias contradições internas das seitas leninistas as tornam objetos intrigantes de estudo, o culto a Ayn Rand consegue suplantá-las, pois, embora de certa forma ainda sobreviva, prosperou por apenas dez anos na década de 1960; mais especificamente, do início da série de palestras de Nathaniel Branden no começo de 1958 até o fim do relacionamento entre os dois, dez anos mais tarde. O culto a Ayn Rand era explicitamente ateísta, antirreligioso e hiper-racionalista, ao mesmo tempo em que pregava dependência servil a um guru em nome da independência; adoração e obediência ao líder em nome da individualidade de cada pessoa; e devoção e fé cegas no guru em nome da razão.
Praticamente todos os seus seguidores entraram na seita após a leitura de seu romance A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged), lançado no final de 1957, alguns meses antes do surgimento das reuniões organizadas. Se juntar ao grupo por causa de um livro significava que, apesar das repetidas reverências à razão, a emoção febril era a força motriz por trás da conversão do seguidor. Após sua conversão, ele descobriria que a ideologia que Ayn Rand esboçou em A Revolta de Atlas era complementada por artigos de não ficção e, em particular, por uma revista mensal, The Objectivist Newsletter (mais tarde passou a se chamar The Objectivist).
Listagem de livros permitidos
Como toda seita é baseada em uma crença na infalibilidade do guru, torna-se necessário privar seus discípulos de todo conteúdo crítico que possa despertar dúvidas e questionamentos. A Igreja Católica manteve uma relação de livros proibidos; ainda mais abrangente era o antigo brado muçulmano: “Queimem todos os livros, pois toda a verdade está no Alcorão!”. Mas como as seitas tentam incutir em todos os membros uma visão de mundo rigidamente padronizada, é preciso ir além. Assim como os comunistas são frequentemente instruídos a não ler obras anticomunistas, a forma que o culto Randiano encontrou de ir além foi disseminar o que era, na prática, uma lista de livros permitidos. Como a maioria dos recém-convertidos era jovem e relativamente leiga, um direcionamento cuidadoso de sua leitura garantia que eles nunca mais teriam nenhum tipo de contato com discursos não – ou anti-Randianos (sem contar que eles eram rápida e bruscamente arrebatados de modo altamente distorcido e aterrador pelas publicações Randianas).
A base filosófica que deixava os seguidores felizes por não terem contato com tais obras era a teoria Randiana de “não conceder aprovação moral ao inimigo”. Ler obras do inimigo, (que, com poucas e cuidadosamente selecionadas exceções, significava todos os não ou anti-Randianos) equivale a “conceder aprovação moral ao inimigo”, e era estritamente proibido por ser considerado irracional. Em casos pontuais, foram abertas pequenas exceções para líderes do movimento, que conseguiram provar que era necessário ler certos inimigos com o intuito de refutá-los. Esta proibição de títulos chegou ao seu apogeu após a colossal separação entre Rand e Branden, no final de 1968, um rompimento que era o equivalente moral, guardadas as devidas proporções, digamos, a um rompimento entre Marx e Lênin, ou entre Jesus e São Paulo.
Em um desenrolar perturbadoramente parecido com os dois minutos de ódio dirigidos ao arqui-herege Emanuel Goldstein no livro 1984 de Orwell, os seguidores de Rand foram obrigados a assinar um juramento de lealdade a ela; parte essencial do juramento era uma declaração de que o signatário dali em diante não leria nenhuma obra futura do apóstata e arqui-herege Branden. Após a separação, qualquer discípulo de Rand flagrado portando um livro ou artigo de Branden era prontamente excomungado. Foi solicitado aos parentes próximos de Branden – e eles obedeceram – o total rompimento com ele.
É intrigante, mas num movimento que proclamou sua devoção ao exercício individual da razão, à curiosidade e à pergunta “por quê?”, os devotos eram obrigados a jurar sua crença inquestionável de que Rand estava certa e Branden estava errado, mesmo que a eles não fosse permitido conhecer os fatos por trás da separação. Na verdade, a mera falta de opinião, a menor tentativa de encontrar os fatos, ou a afirmação de que não se pode formar uma opinião sobre um assunto tão sério sem conhecimento dos fatos já era suficiente para expulsão instantânea. Tal atitude era prova conclusiva de falta de “lealdade” do discípulo para com seu guru, Ayn Rand.
Soldado de elite duro feito aço
Frank Meyer escreve, em The Moulding of Communists[2], sobre a série de conflitos pelos quais comunistas repetidamente passam durante sua carreira no partido. Segundo ele, é claro que o membro ordinário filia-se ao partido atraído pelo discurso oficial ou exotérico; mas conforme ele permanece no partido e vai subindo de posição na estrutura hierárquica, se depara com uma série de paradoxos que testam seus valores, que, ou o fazem deixar o partido, ou o transformam cada vez mais em um soldado de elite. Os conflitos tanto podem ser ideológicos, digamos, ter que justificar a existência dos campos de trabalho forçado ou o pacto Stalin-Hitler, como também pessoais: demonstrar que a lealdade para com o partido é maior do que para com amigos, familiares ou entes queridos. A pressão contínua de tais conflitos leva, obviamente, a uma rotatividade muito grande dos afiliados, criando um mar de ex-comunistas, muito maior do que o número de membros que o próprio partido jamais teve.
Um fenômeno similar, mas muito mais intenso ocorreu ao longo da existência do Coletivo Randiano. O novato randiano normalmente se juntava ao movimento emocionalmente comovido pela leitura do A Revolta de Atlas e impressionado pelos conceitos de razão, liberdade, individualidade e independência. Uma série de conflitos e crescentes contradições internas eram então necessárias para ganhar poder sobre as mentes e vidas dos seguidores, e estabelecer lealdade absoluta a Rand, tanto em questões ideológicas quanto pessoais. Mas quais mecanismos os líderes do coletivo usavam para desenvolver esse tipo de fidelidade cega?
Um método, como vimos, era manter os membros alienados. Outro era garantir que todas as palavras faladas e escritas pelo membro Randiano não só estivessem corretas no conteúdo como também na forma, pois qualquer leve imprecisão ou diferença na redação poderia e seria atacada por se desviar da posição de Rand. Assim, tal como os movimentos marxistas desenvolveram jargões e slogans que eram incorporados por medo de verbalizar discordâncias inapropriadas, igualmente aconteceu no movimento Randiano. Em nome da “precisão da linguagem”, em suma, equivalentes e até mesmo os sinônimos foram efetivamente proibidos.
Outro método era manter os membros, na medida do possível, em um estado de emoção febril através de contínuas releituras do A Revolta de Atlas. Pouco depois da publicação do A Revolta de Atlas, um líder de alto nível do coletivo me repreendeu por tê-lo lido apenas uma vez: “Já é hora de você começar a lê-lo novamente”, ele advertiu: “Já li A Revolta de Atlas trinta e cinco vezes”.
A releitura do A Revolta de Atlas também era importante para o movimento porque era explicitamente esperado que os obstinados, teatrais e rasos heróis e heroínas servissem como modelos para cada Randiano. Da mesma forma que todo cristão deve ter como objetivo se espelhar em Cristo em sua própria vida diária, cada Randiano deveria buscar se espelhar em John Galt (herói dos heróis de Rand no A Revolta de Atlas). O Randiano sempre deveria se perguntar em todas as situações: “o que John Galt faria?”. Quando nos lembramos de que Jesus, apesar de tudo, era inegavelmente uma figura histórica, coisa que Galt não era, a bizarrice desta orientação pode ser prontamente percebida. (Embora pelo modo afetado que os Randianos falavam de John Galt, muitas vezes poderia se ter a impressão de que, para eles, a linha entre ficção e realidade era certamente muito tênue).
A Bíblia dela
A natureza bíblica do A Revolta de Atlas para muitos randianos é demonstrada pelo que aconteceu no casamento de dois discípulos, em Nova York. Na cerimônia de casamento, ambos juraram sua devoção e submissão a Ayn Rand, e depois abriram o A Revolta de Atlas – talvez ao acaso – para ler em voz alta uma passagem do texto sagrado.
Astúcia e humor, como podem ser notados neste incidente, foram abolidos do movimento Randiano. A lógica filosófica foi que esse humor demonstra que “não se é sério sobre seus valores”. A razão verdadeira, claro, é que nenhum culto pode resistir ao efeito penetrante e moralizador, à perspectiva sensata fornecida pelo humor. Era permitido zombar dos inimigos, mas esse era o único humor permitido, se é que isso pode ser considerado humor.
O prazer pessoal, de fato, também era desaprovado no movimento e denunciado como “adoração da banalidade” hedonista. Especialmente, nada poderia ser apreciado por si mesmo – cada atividade deveria servir a algum propósito indireto, “racional”. Assim, a comida não deveria ser saboreada, mas apenas ingerida sem alegria como um meio necessário para a sobrevivência de alguém; o sexo não deveria ser apreciado por si só, mas apenas para se envolver sentimentalmente como reflexão e reafirmação dos “mais altos valores”; pinturas ou filmes somente seriam apreciados se alguém pudesse encontrar “valores racionais” ao fazê-lo. Todos esses valores não eram simplesmente para serem descobertos silenciosamente por cada pessoa – a heresia do “subjetivismo” – mas deveriam ser comprovados pelo resto do grupo. Na prática, como se verá mais adiante, a única estética, “valores” românticos ou objetos considerados seguros para os membros eram aqueles expressamente aprovados por Ayn Rand ou outros discípulos superiores.
Como ocorre em todos os cultos e seitas, um método particularmente vital para moldar os membros e mantê-los na linha era assegurar sua constante e implacável atividade dentro do movimento. Frank Meyer relata que os comunistas preservam seus membros da prática perigosa de pensar sozinhos mantendo-os em atividade constante junto com outros comunistas. Ele observa que, entre os principais desertores comunistas nos Estados Unidos, quase todos desertaram somente após um período de isolamento forçado. Em resumo, eles tinham oportunidade para pensar por si próprios (por exemplo, estar no exército, operações secretas etc.). No caso dos Randianos – particularmente na cidade de Nova York, onde o movimento era maior e Ayn Rand e toda a hierarquia superior viveu – a atividade era contínua. A cada noite, um dos principais Randianos dava palestras a diferentes membros tratando de vários aspectos da “conduta padrão”: princípios básicos, psicologia, ficção, sexo, raciocínio, arte, economia ou filosofia. (Esta estrutura refletia a imagem de utopia delineada em A Revolta de Atlas, onde toda noites eram passadas com os heróis e heroínas ensinando uns aos outros).
Deixar de participar dessas palestras era motivo de grande preocupação no movimento. As bases filosóficas da pressão para participar dessas reuniões eram as seguintes:
- Randianos são as pessoas mais racionais que se poderia encontrar (uma conclusão derivada da tese de que Randianismo era racionalidade em teoria e na prática);
- Você, claro, quer ser racional (e se não o quisesse, você estaria em maus lençóis no movimento);
- Sendo assim, você deveria estar ansioso para passar todo o seu tempo com colegas Randianos e, ainda mais, com Ayn Rand e seus principais discípulos, sempre que possível.
A lógica parecia impecável, mas, e se, como costuma acontecer, alguém não gostasse, nem mesmo pudesse suportar essas pessoas? Sob a teoria Randiana, emoções são sempre a consequência de ideias e emoções incorretas, logo, a aversão pessoal a outros membros (e especialmente a líderes) Randianos só podia ser resultado de uma grave contaminação por irracionalidade que precisava ser abafada ou então confessada aos líderes. Qualquer confissão desta natureza resultava num processo angustiante de purificação ideológica e psicológica, supostamente culminando no sucesso em se alcançar a racionalidade, independência e auto-estima, portanto, uma devoção inquestionável e cega a Ayn Rand.
Um incidente de dúvida reprimida a respeito do dogma de Ayn Rand revela a psicologia que até mesmo os membros líderes do culto usavam. Um dos melhores jovens Randianos, veterano do movimento na cidade de Nova York, admitiu certa vez, em particular, que tinha graves dúvidas sobre um princípio filosófico chave de Ayn Rand: acredito que foi o fato de sua própria existência. Ele estava terrivelmente receoso de fazer a pergunta, sendo tão básica que ele sabia que poderia ser excomungado ali mesmo, simplesmente por mencionar o ponto; mas ele tinha fé absoluta de que se sua pergunta fosse dirigida a Ayn Rand, ela a responderia satisfatoriamente e sanaria suas dúvidas. Então ele esperou, ano após ano, sem esmorecer, que algum outro discípulo fizesse a pergunta, mesmo que acabasse sendo expulso, mas que suas próprias dúvidas fossem sanadas no processo.
Padrão em muitas seitas, a lealdade ao guru deve sobrepujar a lealdade a familiares e amigos – com frequência este é o primeiro conflito pessoal para o Randiano iniciante. Se família e amigos não-Randianos persistissem em suas heresias, mesmo depois de terem sido expressamente advertidos pelo jovem aprendiz, eles seriam considerados irracionais e comparsas do inimigo, portanto, deveriam ser abandonados. O mesmo se aplica aos cônjuges; Muitos casamentos foram desfeitos pela liderança do grupo que informava severamente à esposa ou ao marido que seus cônjuges não estavam à altura de Rand (Randworthy). De fato, como as emoções resultam apenas de princípios, e como os princípios dos líderes eram, por definição, supremamente racionais, aquela alta liderança terminava por tentar combinar e separar casais. Como um deles afirmou em certa ocasião: “Conheço todos os jovens e jovens racionais em Nova York e eu posso combiná-los”. Mas suponha que o Sr. A foi combinado com a Senhorita B e um deles não gosta do outro? Bem, mais uma vez, a “Razão” prevaleceu: a aversão era irracional, exigindo intensa investigação psicoterapêutica para purgar-se de ideias errôneas.
Manipulação psicológica
A manipulação psicológica que a seita exercia sobre os membros pode ser ilustrada pelo caso de uma garota, seguidora de destaque, que experimentou o infortúnio de se apaixonar por um indigno não Randiano. A liderança disse à menina que, se ela persistisse em seu desejo de se casar com aquele homem, seria instantaneamente excomungada. Ela se casou, e foi imediatamente expulsa. Ainda assim, depois de aproximadamente um ano, ela disse a um amigo que os Randianos tinham razão, que ela realmente havia pecado e que eles agiram corretamente em expulsá-la pois ela é indigna de ser uma Randiana racional.
Mas a pressão mais importante para a consolidação de lealdade e obediência, o instrumento mais relevante para o controle psicológico dos membros, era o desenvolvimento e prática da Psicoterapia Objetivista. Com efeito, essa teoria psicológica sustentou que a emoção sempre decorre de ideias incorretas, então, todas as neuroses também tem esta origem; portanto, a cura para as neuroses é descobrir e se purificar de ideias e valores incorretos. Assim, uma vez que as ideias dos Randianos eram totalmente corretas e tudo o que se desvia dessas ideias é, por se desviar, incorreto, a Psicoterapia Objetivista consistiu em (a): incutir em todos a teoria de Ayn Rand – porém agora em um contexto supostamente psicoterapêutico; E (b): procurar algum desvio secreto da teoria Randiana, responsável pela neurose, e purgá-lo corrigindo o desvio.
Está claro que, considerando o poder emocional e psicológico da experiência psicoterapêutica, o culto a Rand tinha em suas mãos uma arma poderosa para reforçar e operar a moldagem do Novo Homem Randiano. Filosofia e psicologia, doutrinação explícita, pressão social e pressão terapêutica, todas reforçando umas às outras para gerar seguidores obedientes e leais a Ayn Rand.
Como era de se esperar, a enorme pressão psicológica dos membros do culto levou a uma alta rotatividade no movimento Randiano, relativamente maior do que entre os comunistas. Mas enquanto estivesse no grupo, um novo homem Randiano se manifestava, uma figura deveras mórbida e sem alegria. Por algum tempo os Randianos alardearam a “felicidade”, e se vangloriavam de como eram permanentemente felizes, mas tornava-se claro em uma análise mais profunda que eles eram felizes apenas na teoria. Em suma, no dogma Randiano, a felicidade nem de longe se refere ao contexto comum da linguagem de estados subjetivos de contentamento ou alegria, mas ao proposto exercício de se usar a mente ao máximo (ou melhor, sendo fiel aos preceitos Randianos).
Na prática, no entanto, as emoções subjetivas dominantes do seguidor Randiano eram medo e até terror: medo de desagradar Ayn Rand ou seus principais discípulos; Medo de usar uma palavra ou interpretação incorreta, o que causaria problemas ao seguidor; Medo de ser acusado de “irracionalidade” por algum desvio ideológico ou pessoal; Medo, até, de sorrir para uma pessoa indigna (ou seja, não Randiana). Esse medo era maior do que o experimentado por um membro comunista, porque o Randiano tinha muito menos margem para qualquer desvio ideológico ou pessoal. Além disso, como Ayn Rand tinha uma verdade absoluta e final para cada questão básica de ideologia e vida cotidiana, todos os aspectos de determinada vida tinham que ser examinados – pelo próprio fiel e por outros membros – devido às suspeitas de heresias e desvios. Tudo era o objeto de medo e desconfiança. Havia o medo de fazer um julgamento independente, suponha que o membro fosse fazer uma declaração sobre algum assunto em que ele não conhecesse a opinião de Ayn Rand, e depois, descobrisse que Ayn Rand discordava do posicionamento defendido pelo seguidor. O Randiano então estaria em apuros, mesmo que o único problema fosse utilizar uma linguagem um pouco diferente. Por tudo isso era muito mais prudente manter-se calado e, rapidamente, checar com a cúpula do grupo qual o posicionamento padrão.
Checar com a cúpula
Assim, certa vez um advogado e líder Randiano estava dando um discurso sobre Teoria política Randiana. Durante o período de perguntas, ele ficou atordoado com o questionamento de como ele poderia conciliar que Ayn Rand defendesse o poder de intimação obrigatória com o axioma político de não iniciação de violência (PNA). Ele murmurou e gaguejou, e depois disse que tinha que pensar sobre o assunto – um indicativo que iria verificar imediatamente com Ayn Rand e os outros líderes sobre a resposta adequada.
Parte da necessidade contínua de verificação com a liderança se deve ao fato de que Ayn Rand, embora considerada infalível por seus discípulos, mudava muitas vezes de ideia, especialmente sobre personalidades famosas ou instituições. A mudança radical de opinião a respeito de Branden é um ótimo exemplo, bem como a mudança de opinião sobre aqueles que antes haviam sido membros da liderança e terminaram sendo expulsos do movimento. Mas muito mais frequentes, se menos importantes, eram mudanças de opinião sobre estrelas do show business que Ayn Rand acabasse conhecendo pessoalmente. Assim, o conceito oficial sobre pessoas como Johnny Carson ou Mike Wallace (personalidades proeminentes da TV) mudava rapidamente – em grande parte após Ayn Rand ter descoberto várias heresias e supostas traições da parte deles. Se o membro Randiano não estivesse em sintonia com essas mudanças, e acontecesse de afirmar que Carson era “racional” ou tinha um “modelo de vida” inspirador quando ele tivesse passado a ser considerado como irracional ou malévolo, seria o início de sérios problemas e desconfiança sobre a racionalidade de seus próprios conceitos.
Guiados por sua concepção de dever racional, cada Randiano vivia – e também atuava, sem sombra de dúvidas – em uma comunidade de espiões e informantes, pronta para descobrir e denunciar quaisquer desvios da doutrina. Assim, aconteceu que um Randiano, caminhando com uma amiga, disse a ela que havia estado em uma festa na qual vários discípulos haviam feito uma gravação improvisada imitando as vozes dos principais líderes Randianos. Atormentada por esta informação terrível e após passar uma noite em claro, a menina correu para informar à liderança dessa enorme transgressão. Logo os principais acusados foram convocados pelo seu psicoterapeuta Objetivista e duramente censurados em suas sessões de “terapia”: “Afinal”, disse o terapeuta, “Você não zombaria de Deus”. Quando o proprietário da fita recusou a exigência do terapeuta em confiscá-la para inspeção mais detalhada, sua desgraça como membro do movimento foi efetivamente selada.
Nenhum Randiano, nem mesmo a liderança superior, estava livre do medo e repressão generalizados. Cada um dos integrantes mais antigos, por exemplo, foi alvo de investigação pelo menos uma vez, e não raro era forçado a comprovar sua lealdade a Ayn Rand das mais variadas formas. O modo como tal atmosfera de medo e censura prejudicava a produtividade dos membros randianos pode ser visto pelo fato de que nenhum dos principais Randianos publicou livro algum durante sua participação no movimento (todos os livros de Branden, por exemplo, foram publicados após sua expulsão). Única exceção a esta regra, a obra Quem é Ayn Rand? de Barbara Branden acaba comprovando que a lei no grupo era meramente o exercício autorizado de adulação cega.
Mas, se o Randiano vivia em um estado de pavor e apreensão por parte de Ayn Rand e seus principais discípulos, havia também compensações psicológicas; ele vivia na certeza emocionante e reconfortante de que era um dos poucos eleitos, pois apenas os membros daquele pequeno grupo estavam em sintonia com a razão e a realidade. O resto das pessoas, incluindo aquelas aparentemente inteligentes, felizes e bem-sucedidas, estavam na verdade vivendo no limbo, alheias à racionalidade e à compreensão da natureza da realidade. Elas não poderiam ser felizes porque o dogma do culto estabelecia que a felicidade só pode ser alcançada quando se é um Randiano comprometido; nem podiam ser inteligentes, pois não é possível que pessoas aparentemente inteligentes não se tornassem Randianas, especialmente se elas cometem o pecado mais grave – o de não se tornarem Randianas ao tomarem conhecimento deste novo evangelho.
Excomunhões e purgações
Nós já mencionamos as excomunhões e “purgações” do Movimento Randiano. Com frequência, as excomunhões – especialmente de membros importantes – aconteciam obedecendo a um protocolo, como um ritual. O membro desgarrado era convocado a comparecer a um “julgamento” para ouvir denúncias contra si mesmo. Caso se recusasse a participar – como seria de se esperar caso tivesse algum resquício de dignidade – então o julgamento continuaria à revelia, com todos os presentes se revezando nas acusações ao membro expulso, (novamente em uma reprodução extravagante de 1984). Quando sua condenação inevitável era anunciada, alguém – geralmente seu amigo mais próximo – registrava a excomunhão, num documento amargo, febril e portentoso, condenando eternamente o apóstata e o excluindo para sempre do Olimpo da razão e da realidade. Ter seu amigo mais próximo na liderança no processo de heresia era, naturalmente, importante, pois forçava o amigo a demonstrar sua própria lealdade a Ayn Rand, eximindo-se de qualquer mancha por associação. Diz-se que quando Branden foi expulso, um de seus amigos mais antigos de Nova York lhe enviou uma carta afirmando que a única coisa moral que ele poderia fazer a este ponto seria se suicidar – uma postura inusitada para quem se diz defensor da vida e do propósito individual.
O rompimento com o apóstata – mesmo que antes tenham sido melhores amigos – tinha que ser intransigível, permanente e total. Certa vez, uma mulher da alta hierarquia Randiana contratou uma moça Randiana para ser sua assistente na edição de uma revista. Quando a mulher foi severamente expulsa do movimento, sua assistente passou a se recusar a falar com ela, exceto quando estritamente a respeito de negócios – uma posição firmemente mantida apesar das tensões óbvias que devem ter se instaurado no escritório.
Como ocorre em todos os grupos de caça às bruxas, o pecado mais grave não eram as transgressões específicas do membro, mas qualquer recusa em aceitar o procedimento de investigação em si. A este respeito Barbara Branden afirmou que seu maior pecado havia sido sua recusa em participar e, portanto, em reconhecer a legitimidade de seu próprio julgamento, e outros acusados também relataram fatos semelhantes.
Não surpreende o fato de que, diferentemente de outras psicoterapias, os Psicoterapeutas Objetivistas agiam como severos guardiões morais das tropas. Pacientes “imorais” eram expulsos da terapia, uma prática que atingiu seu ápice quando pacientes passaram a ser expulsos simplesmente por questionarem seus terapeutas sobre os motivos da separação entre Rand e Branden.
Assim, mantido alheio ao mundo, a fatos, ideias ou pessoas que pudessem desviá-lo do legítimo dogma Randiano, controlado pela adoração e temor a Rand e sua hierarquia ungida, o sombrio, robótico e lúgubre seguidor randiano surgia.
De fato os processos de moldagem da seita eram eficazes na metamorfose do novo indivíduo Randiano – pelo tempo em que este permanecesse no movimento. Os candidatos que entravam eram os mais variados tipos de homens e mulheres, alguns até simpáticos, e, invariavelmente, eram transformados em figuras sombrias, tensas e afetadamente hostis – cujas personalidades podiam ser mais adequadamente descritas com a palavra “robótica”. Roboticamente, os Randianos entoavam seus mantras, geralmente imitando as poses e trejeitos de Nathaniel e Barbara Branden, até mesmo imitando o fanatismo que os dois dedicavam a heróis e heroínas do cânone de ficção Randiano. Se alguma crítica era feita a Ayn Rand ou a seus discípulos, ou se surgisse qualquer questionamento que não soubessem responder, os Randianos adotavam um tom de grande ofensa: “Como ousa dizer algo assim?”, davam as costas e iam embora. Nem o riso, nem qualquer outro aspecto humano conseguia ofuscar sua dramatização ritualizada. Muitos dos rapazes conseguiam fazer imitações baratas de Nathaniel Branden, enquanto as jovens tentavam se parecer com Barbara Branden, cheias de si com suas piteiras longas para cigarros mantidas no alto, imitando a própria Ayn Rand, gesto que intentava simbolizar os altos padrões morais e atitude mordaz ostentadas pelas heroínas Randianas.
Filho de Rand
Alguns Randianos imitavam sua líder mudando seus nomes do russo ou hebraico para alguma versão anglo-saxônica presumivelmente mais dura, mais áspera e mais heroica. O próprio Branden mudou seu nome, que antes era Blumenthal; talvez a escolha não tenha sido por acaso, pois, como Nora Ephron apontou, se as letras do novo nome forem reorganizadas, elas podem formar a palavra BENRAND, “filho de Rand” em hebraico. Uma garota Randiana, com início em nome polonês com “Gr”, anunciou que mudaria seu nome na semana seguinte. Quando questionada por um observador humorístico se seu novo nome passaria a ser “Grand”, ela respondeu com toda a seriedade que não, e explicou que estava mudando para “Grant” – presumivelmente, como o observador depois apontou, o “t” fosse seu único gesto de independência.
Se ostentar o mesmo visual, falar igual e até mesmo adotar mesmos nomes que os principais Randianos era a maneira mais “racional” de se viver; se estar com eles tanto quanto possível era a forma de atividade mais racional, então, seguramente, uma vizinhança próxima dos líderes era o lugar racional para morar. Assim, o típico randiano de Nova York, após sua conversão, deixaria seus pais e encontraria um apartamento tão perto do de Rand quanto fosse possível. Como resultado, praticamente todos os membros de Nova York viviam a algumas quadras uns dos outros no leste de Manhattan, muitos dos líderes viviam no mesmo prédio onde ficava o apartamento de Rand.
Se a insistência em uma forte pressão psicológica foi em parte responsável pela rotatividade extremamente elevada entre os discípulos de Rand, outro motivo para o entra e sai de membros era o próprio fato de o movimento ter um discurso rígido sobre, literalmente, qualquer assunto, não importando se fosse estética, história ou epistemologia. Em primeiro lugar, isso significava que desviar-se do discurso oficial era muito fácil: por exemplo, preferir Bach a Rachmaninoff era motivo para acusar um discípulo de acreditar em um “universo malevolente”. Se não fosse corrigido por autocrítica e lavagem cerebral psicoterapêutica, esse desvio poderia muito bem levar à expulsão do movimento. Em segundo lugar, é difícil impor uma conduta rígida a todas as áreas da vida e pensamento quando, como era o caso de Ayn Rand e seus principais discípulos, se é amplamente ignorante em vários dos assuntos que possam surgir. Ayn Rand admitiu que ler não era seu forte, e os discípulos, é claro, não tinham permissão para conhecer o real mundo de heresias, mesmo que, supostamente, tivessem sido moldados para fazê-lo. E então os jovens convertidos – e eles eram quase todos jovens – começavam a questionar quando se especializavam mais em algum assunto que escolhessem. Desta forma, o historiador, ao aprender mais sua área, dificilmente poderia se contentar com clichês burkhardtianos já obsoletos sobre o Renascimento, ou noções básicas sobre os Pais Fundadores. E se o discípulo começava a perceber que Ayn Rand estava errada e era simplista demais em sua especialidade, era natural que passasse a duvidar de sua infalibilidade em outras áreas.
Tabaco racional
A natureza abrangente do dogma Randiano pode ser ilustrada por um incidente que ocorreu com um amigo meu, que perguntou a um líder Randiano se ele discordava da posição do movimento em qualquer assunto concebível. Depois de vários minutos pensando com afinco, o randiano respondeu: “Bem, não consigo entender sua posição quanto ao fumo”. Surpreso que o culto randiano tivesse uma posição sobre o fumo, meu amigo pressionou: “Eles têm uma posição sobre o fumo? E qual é?”. O Randiano respondeu que fumar, de acordo com o culto, era uma obrigação moral. Na minha própria experiência, um alto Randiano uma vez me perguntou com rispidez: “Como é que você não fuma?”. Quando respondi que recentemente havia descoberto que era alérgico à fumaça, o Randiano abrandou seu tom: “Oh, está bem, então.”. A justificativa oficial para fazer do ato de fumar uma obrigação moral era uma frase em A Revolta de Atlas, onde a heroína se refere a acender um cigarro como simbolizando uma chama na mente, o fogo de ideias criativas (também poderia-se pensar que simplesmente segurar um palito de fósforo aceso já serviria para desempenhar esta função simbólica). Poderia-se suspeitar que o real motivo, como em tantas outras circunstâncias da teoria de Rand, de Rachmaninoff a Victor Hugo e ao sapateado, era que Ayn Rand simplesmente gostava de fumar e tinha a necessidade de criar um sistema filosófico que tornava suas preferências pessoais não apenas morais, mas também em obrigações morais aplicáveis a todos os que desejassem ser considerados racionais.
Se a doutrina de Ayn Rand era ditatorial, abrangia cada mínimo aspecto da vida de um seguidor, então, mesmo com todas as premissas gerais já estabelecidas e os que randianos conferissem com a liderança para ver quem estava dentro ou fora, ainda havia a necessidade de existir um mecanismo “judicial” para resolver questões concretas e para garantir que cada membro estivesse de acordo sobre determinada questão. Ninguém estava autorizado a ser neutro em qualquer tema. O mecanismo judicial para resolver tais questões concretas se resumia, como de costume em seitas, à posição que se desfruta na hierarquia do movimento. Essencialmente, por assim dizer, o Randiano de posição superior estava certo, o inferior, errado, e todos aceitavam este argumento de autoridade, atitude que pode não parecer muito coerente com a devoção explícita dos Randianos à razão.
Um incidente divertido ilustra essa decisão por hierarquia. Uma disputa entre dois randianos certificados e do alto escalão, ambos reconhecidos como racionais pelo psicoterapeuta objetivista. Especificamente, uma era secretária do outro. A secretária foi até seu chefe e solicitou um aumento, que ela havia racionalmente intuído que era seu por direito. O chefe, no entanto, verificando sua própria racionalidade decidiu que ela era incompetente e a demitiu. Agora havia uma disputa, um conflito de interesses, entre dois randianos certificados. De que forma todos os outros membros decidiriam quem era o certo, e, portanto, racional; e quem era o errado, irracional e, portanto, sujeito a expulsão? Em qualquer grupo de pessoas verdadeiramente racionais, obviamente, não caberia a ninguém, exceto aos únicos familiarizados com os fatos do caso, tomar qualquer tipo de posição. Mas esse tipo de neutralidade passiva não é permitida em nenhuma seita, incluindo a randiana. Dada a necessidade de impor um discurso uniforme a todos, a disputa foi resolvida da única maneira possível: através da classificação na hierarquia. Aconteceu de o chefe fazer parte da alta cúpula; e como a secretária estava em uma posição mais baixa, ela não foi apenas demitida de seu trabalho, mas também foi expulsa do movimento Randiano.
A pirâmide
E o movimento Randiano era estritamente hierárquico. No topo da pirâmide, é claro, estava a própria Rand, autoridade máxima em qualquer situação. Branden, conhecido como seu “herdeiro intelectual” e Apóstolo Paulo do movimento, era o número 2. Em terceiro lugar no ranking vinha a alta cúpula, os discípulos originais, os que tinham sido convertidos antes da publicação de A Revolta de Atlas. Como eles foram convertidos lendo seu romance anterior, A Nascente, que havia sido publicado em 1943, a liderança era chamada no movimento de “a classe de 43”. Mas havia uma designação não oficial que era muito mais reveladora: “o Coletivo Sênior”. À primeira vista, esse nome deveria “destacar” a alta individualidade de cada um dos membros randianos; na realidade, no entanto, havia uma ironia dentro da ironia, já que o movimento Randiano era de fato um “coletivo” em qualquer significado genuíno do termo. Fortalecendo os laços dentro do “Coletivo Sênior” estava o fato de que todos e cada um deles estavam relacionados uns aos outros, sendo parte de uma família judaico-canadense, eram ligados a Nathaniel Branden ou Barbara Branden. Havia, por exemplo, a irmã de Nathaniel Branden, Elaine Kalberman; seu cunhado, Harry Kalberman; seu primo em primeiro grau, o Dr. Allan Blumenthal, que assumiu o título de principal psicoterapeuta Objetivista após a expulsão de Nathaniel Branden; o primo em primeiro grau de Barbara Branden, Leonard Piekoff; e Joan Mitchell, esposa de Allan Blumenthal. A relação familiar de Alan Greenspan era mais singela, sendo o ex-marido de Joan Mitchell. A única que não era parente da família na classe de 43 era Mary Ann Rukovina, que obteve um lugar na liderança por ter sido companheira de quarto da faculdade de Joan Mitchell.
Estes eram os discípulos antes da publicação do A Revolta de Atlas. Depois disso Nathaniel Branden começou a dar suas palestras, que logo evoluíram para o Instituto Nathaniel Branden, braço organizacional do movimento. Com o tempo, o INB estabeleceu-se no simbolicamente heroico Empire State Building, embora estivesse no nem tão heroico porão. Na cidade de Nova York, as várias palestras e seminários eram realizados pessoalmente; fora da sede, cada cidade ou região tinha seu próprio representante INB designado, que era responsável por exibir as gravações das palestras. O representante do INB era, geralmente, o randiano mais robótico e fiel de sua região, e várias tentativas eram feitas, apesar de nem sempre muito exitosas, de duplicar a atmosfera de admiração e obediência que permeava a matriz em Nova York. Intensos esforços eram feitos para transformar a massa de leitores das obras mais famosas de Ayn Rand em discípulos fiéis, que primeiro assinariam a revista O Objetivista, e continuariam comparecendo a palestras gravadas no INB de sua região, visando sua conversão ao movimento. Se um fluxo de revistas, fitas e livros recomendados saíssem do INB para os membros de base do culto, um fluxo de dinheiro e trabalho voluntário inevitavelmente percorreria o caminho inverso, sem falar nos pagamentos por serviços psicoterapêuticos.
Tem sido evidente ao longo deste trabalho que a estrutura e crença implícitas, o próprio funcionamento do movimento Randiano, estavam em oposição explícita e fundamental ao discurso divulgado de individualidade, independência e reconhecimento de nenhuma autoridade senão a de sua própria mente e razão. Mas o axioma central do credo esotérico do movimento randiano ainda não foi tratado especificamente, a premissa implícita, o objetivo oculto que assegurou e reforçou a lealdade inquestionável dos discípulos. Esse axioma central era a afirmação “Ayn Rand é a maior pessoa que já viveu ou que sempre viverá”. Se Ayn Rand for a maior pessoa de todos os tempos, entende-se que ela estará certa em todas as questões, ou pelo menos, terá muito mais probabilidade de estar correta em qualquer situação do que o mero discípulo, que não é digno de comparação com uma grandeza tão abrangente.
Exemplo desta premissa foi um encontro de expoentes jovens Randianos presenciado por um amigo meu. A reunião transformou-se em uma série de depoimentos, nos quais cada pessoa testemunhava a influência avassaladora que Ayn Rand desempenhara em sua vida. Como um deles afirmou: “Ayn Rand trouxe para o mundo o conhecimento de que A é A, que 2 e 2 são 4”. Quando um alto randiano ouviu que um membro notoriamente rebelde, que estava em processo de saída do movimento, havia escrito uma sátira no estilo da filosofia Randiana, “provando” que Ayn Rand era Deus, o Randiano, em perplexidade genuína, perguntou: “Ele está brincando, não é?”.
Havia uma preocupação generalizada com obter prestígio e figurar entre os destaques do movimento. Era universalmente aceito que Ayn Rand era a maior pessoa de todos os tempos. Houve então uma disputa amigável sobre qual seria a posição exata de Nathaniel Branden entre as maiores estrelas. Alguns sustentavam que Nathaniel Branden era o segundo maior de todos os tempos; outros que Nathaniel Branden empatava em segundo lugar em um empate técnico com Aristóteles. Esse era o máximo de discordância permitido no movimento Randiano.
A aceitação do axioma central da grandeza de Ayn Rand foi possível por seu incontestável carisma pessoal, um carisma apoiado por seu ar de arrogância e inabalável autoconfiança. Eram um carisma e uma arrogância que foram parcialmente copiados por seus discípulos da liderança. Como o discípulo de base sabia em seu coração que não era infalível nem totalmente seguro de si mesmo, ficava fácil fazê-lo sujeitar sua própria vontade e intelecto a Ayn Rand. Ayn Rand tornou-se a encarnação viva da razão e da verdade, e por algum traço de sua personalidade Ayn Rand conseguiu incutir em seus discípulos a ideia de que seu maior prêmio era ser digno de sua aprovação, enquanto o pecado mais grave era provocar seu descontentamento. A fervorosa crença na suprema originalidade de Ayn Rand era, naturalmente, reforçada pelo fato de que os discípulos que não liam (ou não eram autorizados a ler) qualquer obra que os levasse a perceber que outros autores já tinham descoberto ou dito o mesmo que Ayn Rand há muito tempo.
Expulsão do paraíso
O culto a Rand cresceu e prosperou até o rompimento irrevogável entre a maior e o segundo maior, até que Satanás foi expulso do paraíso, no outono de 1968. A separação entre Ayn Rand e Nathaniel Branden destruiu o INB, e com isso, o movimento Randiano organizado. Ayn Rand não demonstrou capacidade ou desejo de juntar os destroços e reconstruir uma organização equivalente. A revista O Objetivista voltou a ser apenas a Ayn Rand Letter, e pouco durou.
Com a morte do INB, os seguidores Randianos ficaram à deriva, pela primeira vez em uma década, condenados a pensar por si mesmos. No geral, suas personalidades se recuperaram para seus eus não robotizados de antes da conversão. Mas houve alguns legados infelizes da seita. Em primeiro lugar, há o problema que os tomistas chamam de ignorância invencível. Como muitos ex-cultistas permaneceram imbuídos com a crença Randiana de que cada indivíduo é dotado dos meios de processar todas as verdades a partir de sua própria inteligência, concluíam que não era necessário aprender os fatos concretos sobre o mundo real, seja sobre a história contemporânea ou as leis das Ciências Sociais. Armados com princípios axiomáticos básicos, muitos ex-Randianos não viam necessidade de aprender coisas novas. Além disso, persistia a tolice randiana em muitos ex-membros que pregavam a ideia de que cada um é capaz e qualificado para desenvolver toda uma filosofia de vida e do mundo apenas através de deduções. Aberrações como os “Estudantes do Objetivismo para a Bestialidade Racional” não estavam longe das bizarrices de muitas filosofias neo-randianas, pregando a um punhado de zelosos ouvintes. Por outro lado, há outra compreensível, mas infeliz reação: após muitos anos de sujeição à ditadura randiana em nome da “razão”, há uma tendência entre alguns ex-cultistas de flertar com o outro lado, rejeitando completamente a razão ou pensamento crítico em nome da sensação hedonista e puro capricho.
Nós concluímos nossa análise do culto a Rand com a observação de que ali havia um exemplo de extrema contradição entre o discurso exotérico e o credo esotérico. Que, em nome da individualidade, razão e liberdade, o culto a Rand, com efeito, pregava algo totalmente diferente. O culto a Rand não estava preocupado com a individualidade de cada homem, mas apenas com a individualidade de Rand; não com o direito de todos à razão, mas apenas com a razão de Rand. A única individualidade que floresceu às custas da sujeição de todos os outros, foi a da própria Ayn Rand; a intenção era tornar todas as outras pessoas em instrumentos sujeitos à mente e vontade de Rand.
A famosa denúncia de Nikolai Bukharin sobre o culto a Stalin, mascarada na Rússia da década de 1930 como uma crítica da ordem dos jesuítas, não parece muito exagerada quando comparada com a realidade Randiana:
Foi dito corretamente que não há maldade no mundo para a qual não se encontre justificativa ideológica. Loyola, o rei dos jesuítas, desenvolveu uma teoria da subordinação, a “disciplina de cadáver”. Todos os membros da ordem deveriam obedecer ao seu superior “como um cadáver que poderia ser virado para qualquer lado, como um volante que obedece a todos os comandos, como uma bola de cera que pode ser modelada e esticada em todas as direções”… Este cadáver é caracterizado por três graus de perfeição: Subordinação por ação, Subordinação da vontade, subordinação do intelecto. Quando o último grau é atingido, quando o homem manifesta a subordinação cega do intelecto, renunciando a todas as suas convicções, então você tem um jesuíta verdadeiro.[3]
Uma contradição inusitada é notória do ponto de vista estratégico no movimento randiano. Por um lado, os discípulos não eram autorizados a ler ou conversar com outras pessoas de fora do movimento, mesmo que seguissem princípios parecidos, como os libertários ou objetivistas. No âmbito do movimento racionalista ou libertário, os randianos assumiram uma posição 100% pura e ultra-sectária. Porém, quando se tratava do mundo político a estratégia randiana era outra, drasticamente conflitante, pois Rand e seus discípulos estavam dispostos a apoiar e trabalhar com políticos que fossem apenas um milímetro mais conservadores que seus oponentes. Fora do movimento, a preocupação com pureza ou princípios parecia ser totalmente abandonada. Assim, Rand apoiou fervorosamente as candidaturas de Goldwater, Nixon e Ford, e até mesmo dos senadores Henry Jackson e Daniel P. Moynihan.
Nem liberdade nem razão
Parece haver apenas uma maneira de interpretar a contradição na estratégia do movimento randiano de pregar o sectarismo extremista dentro do movimento libertário, juntamente com o oportunismo extremista, ao mesmo tempo em que, no mundo exterior, manifestava interesse em colaborar com chefes de estado apenas porque eram um pouco mais conservadores. Essa conclusão, confirmada pelo resto de nossa análise do culto, determina que o objetivo principal do movimento randiano não era liberdade individual – como era apresentado para muitos membros jovens – mas sim o poder pessoal de Ayn Rand e seus principais discípulos. Certamente o poder dentro do movimento poderia ser assegurado pelo isolamento ditatorial e pelo controle das mentes e vidas de cada membro; porém essas táticas dificilmente funcionariam fora do movimento, onde o poder só teria chances de ser alcançado bajulando o presidente e seus círculos internos de autoridade.
Finalmente, o poder, e não a liberdade ou razão, era a motivação intrínseca do movimento randiano. A principal lição da história deste movimento para os libertários é que isso pode acontecer em qualquer lugar; que os libertários, apesar do explícito apreço pela razão e individualidade, não estão livres do cultismo místico e totalitário que permeia outros movimentos, ideológicos ou religiosos. Espera-se que os libertários, uma vez vacinados contra este vírus, passem a ser imunes.
Nota Bibliográfica
Entre os vários trabalhos sobre o randianismo, apenas um se concentrou no culto em si: “Born Eccentric“, de Leslie Hanscom, Newsweek (27 de março de 1961), pp. 104-05. Hanscom brilhante e astutamente captou o espírito do culto a Rand após assistir e analisar uma das palestras de Nathaniel Branden. Hanscom escreveu:
“Depois de três horas heroicamente prestando atenção à performance pedante de Nathaniel Branden, os fãs foram recompensados com a aparição da própria Srta. Ayn Rand – uma senhora com penetrantes olhos negros e sotaque russo, que muitas vezes usa um broche com o símbolo do dólar como marca pessoal…”
“Os livros dela…”, disse um membro da congregação, “são tão bons que a maioria das pessoas não deveria ter permissão para lê-los. Eu costumava querer trancar meio mundo em uma jaula, mas depois de ler seus livros, quero prender a todos lá dentro”. Mais tarde, esse mesmo exaltado – um “consultor de investimentos” autônomo de 22 anos – recebeu uma chicotada da lógica de sua deusa na cara. Enviando uma pergunta da plateia – um privilégio concedido apenas a alunos pagantes – o discípulo em formação identificou-se como um mero visitante. Srta. Ayn Rand – uma senhora cujo brilho ofuscaria um cacto – o expulsou aos gritos da tribuna, chamando-o de “fraude barata”. Outros discípulos sedentos por sabedoria se saíram melhor. Foi dito a um discípulo preocupado que era permitido celebrar o Natal e a Páscoa, desde que se rejeitasse seu significado religioso (o tema da palestra daquela noite era a loucura da fé). Foi garantido a uma dona de casa que ela não precisava se sentir culpada por ser dona de casa, desde que tivesse escolhido este trabalho por razões não emocionais…
Apesar de misticismo ser uma das palavras mais asquerosas em seu arsenal político, não houve um messias desde Aimee McPherson, que hipnotizasse tanto uma plateia ao vivo”.[4]
No mínimo tão revelador quanto o artigo de Hanscom, foi o previsível tumulto causado pela indignação exagerada dos membros do culto. Duas semanas mais tarde, sob a manchete “Criminosos e arruaceiros?”, a Newsweek publicou trechos de cartas de randianos enviadas em reação ao artigo. Uma carta dizia: “Essa matéria deturpada, vil e obscena contra Ayn Rand é um recorde de baixeza, até para vocês. Permitir tamanha invasão ofensiva … é um ato de depravação moral sem precedentes. Uma revista com funcionários irresponsáveis não tem lugar em minha casa”. Outro homem escreveu que “aquele que leu os trabalhos da Srta. Ayn Rand e passa a escrever um artigo desta natureza só pode ser motivado por maldade. É o trabalho de um bandido literário”. Outro advertiu: “Já que vocês decidiram agir como baratas, estejam preparados para ser tratados como tal” e, finalmente, um tal Bonnie Benov manifestou o axioma central: “Ayn Rand é … o maior indivíduo que já viveu”. Tirando sarro do movimento, a Newsweek publicou uma foto particularmente depreciativa de Ayn Rand embaixo da Carta de Benov com a legenda: “A maior de todas?”[5]
Tradução de Gisele Jales.
Artigo original aqui.
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Notas:
[1] Alfred G. Meyer, Leninism (Nova Iorque: Frederick A. Praeger, 1962), pp. 97-98. Uma expressão particularmente vívida desta fé comunista foi apresentada por Trotsky, em um discurso no Congresso de 1924 do Partido Comunista Soviético:
“Camaradas, nenhum de nós deseja ser ou pode estar certo contra o partido. Em última instância, o partido sempre está certo, porque é o único instrumento histórico que a classe trabalhadora possui para a solução de suas tarefas fundamentais… Somente pode estar certo com o partido e através do partido porque a história não criou qualquer outra forma de realização da própria justiça.”
Em Isaac Duetscher, The Prophet Unarmed. (Nova Iorque: Random House, 1965), p. 139.
Em tudo isso, veja em particular Williamson M. Evers, “Lenin and His Critics on the Organizational Question” (inédito MS.) pp. 15ff.
[2] Frank S. Meyer, The Moulding of Communists: The Training of the Communist Cadre (New York: Harcourt, Brace and Co., 1961).
[3] Nikolai Bukharin, Finance Capital in Papal Robes: A Challenge (New York: Friends of the Soviet Union, n.d.), pp. 10–11. Ver ainda Evers, “Lenin and his Critics,” p. 15.
[4] Newsweek (27 de março de 1961), p. 105.
[5] Newsweek (10 de abril de 1961), pp. 9, 14.