I
Deixem-me começar analisando dois sentidos possíveis do termo “conservador”. O primeiro significado é imputar a característica de conservador a alguém que normalmente apoia o status quo; i.e., a uma pessoa que deseja conservar as legislações, as regras, as regulamentações e os códigos morais e comportamentais que existem em um determinado ponto no tempo.
Em razão de diferentes legislações, regras e instituições políticas existirem em tempos diferentes e/ou em locais diferentes, aquilo que um conservador apoia depende do lugar e do tempo, modificando-se de acordo. Ser um conservador, assim, denota nada de específico, exceto gostar da ordem existente, qualquer que seja ela.
O primeiro sentido, então, pode ser descartado. [1] O termo “conservador” deve possuir uma acepção diferente. O que ele significa — e, possivelmente, o que apenas pode significar — é isto: “conservador” se refere a alguém que acredita na existência de uma ordem natural, de um estado de coisas natural, que corresponde à natureza das coisas; na existência de uma ordem que se harmoniza com a natureza e o ser humano. Essa ordem natural é e pode ser perturbada por acidentes e anomalias: por terremotos e furacões; por doenças, pragas, monstros e bestas; por seres humanos de duas cabeças ou de quatro pernas; por aleijados e idiotas; e por guerras, conquistas e tiranias. Mas não é difícil distinguir o normal do anormal (anomalias), o essencial do acidental. Um pouco de abstração dissipa todas as confusões e permite que quase todos “vejam” o que é e o que não é natural, o que se encontra e não se encontra de acordo com a natureza das coisas. Além disso, o natural é, ao mesmo tempo, o estado de coisas mais duradouro. A ordem natural das coisas é antiga e sempre a mesma (apenas anomalias e acidentes sofrem mudanças); portanto, ela pode ser reconhecida por nós em todos os lugares e em todos os tempos.
“Conservador” refere-se a alguém que reconhece aquilo que é antigo e natural através do “ruído” das anomalias e dos acidentes; refere-se a alguém que o defende, que o apoia, que ajuda a preservá-lo contra aquilo que é temporário e o anômalo. No âmbito das ciências humanas — incluindo as ciências sociais —, o conservador reconhece as famílias (pais, mães, filhos, netos) e os lares familiares com base na propriedade privada e em cooperação com uma comunidade de outros lares familiares como as unidades sociais mais fundamentais, mais naturais, mais essenciais, mais antigas e mais indispensáveis. Adicionalmente, a família (o lar familiar) também representa o modelo da ordem social em geral. Assim como existe uma ordem hierárquica no seio de uma família, há uma ordem hierárquica dentro de uma comunidade de famílias — de aprendizes e servos e de mestres, vassalos, cavaleiros, lordes, senhores feudais e até mesmo reis — vinculada por um elaborado e complexo sistema de relações de parentesco; e há uma ordem hierárquica dentro de uma comunidade de crianças, pais, sacerdotes, bispos e cardeais, patriarcas ou papas e, finalmente, um Deus transcendente. Das duas camadas de autoridade, o poder físico terreno de pais, lordes e reis encontra-se naturalmente subordinado e submetido ao controle da máxima autoridade espiritual/intelectual de padres, sacerdotes, bispos e, por fim, Deus.
Os conservadores (ou, mais especificamente, os conservadores ocidentais greco-cristãos), caso eles apoiem alguma coisa, apoiam e desejam preservar a família, as hierarquias sociais e as camadas de autoridade material e espiritual/intelectual baseadas em — e decorrentes de — laços familiares e em relações de parentesco.[2]
II
Deixem-me agora efetuar uma avaliação do conservadorismo contemporâneo e, em seguida, explicar (1) a razão pela qual os conservadores da atualidade devem ser libertários antiestatistas e — o que é igualmente importante — (2) o motivo pelo qual os libertários devem ser conservadores.
O conservadorismo moderno, nos Estados Unidos e na Europa, mostra-se confuso e distorcido. Essa confusão decorre em grande parte da democracia. Sob a influência da democracia representativa — e com a transformação dos EUA e da Europa em democracias de massa após a Primeira Guerra Mundial —, o conservadorismo, que era uma força ideológica anti-igualitarista, aristocrática e antiestatista, passou a ser um movimento de estatistas culturalmente conservadores: i.e., da ala direita dos socialistas e dos social-democratas. A maioria dos autoproclamados conservadores contemporâneos está preocupada — como, na verdade, deveria estar — com a decadência das famílias, com o divórcio, com a ilegitimidade, com a perda da autoridade, com o multiculturalismo, com os estilos de vida alternativos, com a desintegração do tecido social, com o sexo e com o crime. Todos esses fenômenos representam anomalias e desvios escandalosos da ordem natural. O conservador deve, de fato, opor-se a todos esses acontecimentos e tentar restabelecer a normalidade. No entanto, a maior parte dos conservadores contemporâneos (pelo menos a maioria dos porta-vozes do establishment conservador) ou não reconhece que o seu objetivo de restaurar a normalidade exige mudanças sociais mais drásticas — até mesmo revolucionárias e antiestatistas — ou (caso eles tenham conhecimento disso) pertence à “quinta coluna” empenhada em destruir o conservadorismo a partir de dentro (devendo, portanto, ser considerada maléfica).
O fato de que isso é, em larga medida, verdadeiro para os assim denominados neoconservadores não requer maiores explicações aqui. Na realidade, na medida em que os seus líderes são analisados, há suspeitas de que a maioria deles pertence ao último tipo (maléfico). Eles não estão realmente preocupados com questões culturais, mas reconhecem que devem jogar a “carta do conservadorismo cultural” para não perderem poder e para promoverem o seu objetivo totalmente diferente de estabelecer a social-democracia mundial. [3] Entretanto, isso é igualmente verdadeiro no tocante a muitos conservadores que estão genuinamente preocupados com a desagregação familiar ou com a disfunção e a podridão culturais. Aqui, em especial, refiro-me ao conservadorismo representado por Patrick Buchanan e pelo seu movimento. [4] O conservadorismo de Buchanan não é, de forma alguma, tão diferente da ideologia do establishment conservador do Partido Republicano quanto ele e os seus seguidores fantasiam. Num aspecto decisivo, o seu tipo de conservadorismo encontra-se totalmente de acordo com aquele da ala conservadora do establishment — ambos são estatistas. Eles divergem sobre o que exatamente precisa ser feito para restabelecer a normalidade nos Estados Unidos, mas concordam que isso deve ser feito pelo estado. Não há sequer um vestígio de antiestatismo íntegro (com princípios) em ambos.
Deixem-me ilustrar citando Samuel T. Francis, um dos principais teóricos e estrategistas do movimento buchananista. Após deplorar a propaganda “anti-brancos” e “anti-ocidente”, “o secularismo militante, o egoísmo ganancioso, o globalismo político e econômico, a inundação demográfica e a centralização estatal sem limites”, ele comenta sobre o novo espírito da “Liderança Americana”, que “implica não apenas colocar os interesses nacionais acima dos interesses de outras nações e acima de abstrações como ‘liderança mundial’, ‘harmonia global’ e ‘nova ordem mundial’, mas também dar prioridade aos interesses nacionais em vez de dar prioridade à gratificação dos interesses individuais e subnacionais”. Até aí, tudo bem, mas o que ele propõe como solução para o problema da degradação moral e da podridão cultural? Os órgãos do Leviatã federal responsáveis pela proliferação da poluição moral e cultural — como o Ministério da Educação, a Fundação Nacional das Artes, a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego e a Justiça Federal — devem ser fechados ou diminuídos em tamanho. Mas não existe oposição ao envolvimento do estado no campo educacional. Não há o reconhecimento de que a ordem natural na educação significa que o estado não tem nada a ver com ela. A educação é um assunto totalmente familiar. [5]
Além disso, não há o reconhecimento de que a degeneração moral e a podridão cultural possuem causas mais profundas, não podendo ser simplesmente curadas por modificações no currículo escolar (impostas pelo estado) ou por exortações e declamações. Pelo contrário: Francis propõe que a virada cultural — o restabelecimento (a restauração) da normalidade — pode ser alcançada sem uma mudança fundamental na estrutura do moderno estado de bem-estar social (assistencialista). Na verdade, Buchanan e os seus ideólogos defendem explicitamente as três instituições centrais do estado de bem-estar social: a previdência social (seguridade social), a saúde pública (estatal) e o seguro-desemprego. Eles ainda desejam ampliar as responsabilidades “sociais” do estado, atribuindo-lhe a tarefa de “proteger”, por meio de restrições nacionais à importação e à exportação, os empregos americanos, especialmente em setores de interesse nacional, e de “isolar os salários dos trabalhadores americanos dos trabalhadores estrangeiros, os quais devem trabalhar recebendo US$ 1,00 (ou menos) por hora”.
Na verdade, os buchananistas admitem abertamente que são estatistas. Eles detestam e ridicularizam o capitalismo, o laissez-faire, o livre mercado e o livre comércio, a riqueza, as elites e a nobreza; e eles defendem um novo conservadorismo populista — na realidade, proletário — que mescle o conservadorismo social e cultural com a economia social ou socialista. Assim, continua Francis,
Ao passo em que a esquerda poderia obter simpatizantes entre os americanos médios através das suas medidas econômicas, ela os perdeu em decorrência do seu radicalismo social e cultural; e, embora pudesse atrair americanos médios através do apelo à lei e à ordem, através da defesa da normalidade sexual, das convenções morais e religiosas e das instituições sociais tradicionais e através de invocações do nacionalismo e do patriotismo, ela os perdeu quando ensaiou as suas antigas fórmulas econômicas burguesas. [6]
Assim, é necessário combinar as políticas econômicas da esquerda com o nacionalismo e o conservadorismo cultural da direita, de modo que se crie “uma nova identidade que sintetize os interesses econômicos e as lealdades culturais nacionais da classe média proletarizada em um movimento político separado e unificado”. Por razões óbvias, essa doutrina não é chamada desta forma, mas há, sim, um termo para esse tipo de conservadorismo: ele é denominado “nacionalismo social” ou “nacional-socialismo” (nazismo). [7]
Eu não me ocuparei aqui com a questão de o conservadorismo buchananista agradar ou não as massas e de o seu diagnóstico da política americana ser ou não sociologicamente correto. Tenho dúvidas de que este seja o caso; e, com certeza, o destino de Buchanan durante as primárias presidenciais do Partido Republicano de 1995 e de 2000 não indica o contrário. Em vez disso, eu desejo abordar as questões mais fundamentais: partindo do princípio de que ele possui esse recurso — i.e., supondo que o conservadorismo cultural e a economia social/socialista podem ser psicologicamente combinados (i.e., admitindo que as pessoas possam manter simultaneamente essas duas visões sem sofrerem dissonância cognitiva) —, eles podem também ser combinados em termos de eficácia e de prática (econômica e praxeologicamente)? É possível manter o nível atual de socialismo econômico (previdência social, entre outras coisas) e alcançar a meta de restaurar a normalidade cultural (as famílias naturais e as regras normais de conduta)?
Buchanan e os seus teóricos não sentem a necessidade de levantar esse tema, pois acreditam que a política é apenas uma questão de vontade e poder. Eles não acreditam em coisas como as leis econômicas. Caso as pessoas desejem algo e tenham o poder de implementar a sua vontade, tudo pode ser alcançado. O “falecido economista austríaco” Ludwig von Mises, ao qual Buchanan se referia com desprezo durante a sua campanha, caracterizava essa crença como “historicismo”, que era a postura intelectual dos Kathedersozialisten alemães, os acadêmicos Socialistas de Cátedra, os quais justificavam todas e quaisquer medidas estatistas.
Mas o desprezo historicista e a ignorância da ciência econômica não alteram o fato de que existem inexoráveis leis econômicas. Por exemplo: você não pode, simultaneamente, ter em mãos o seu bolo e comê-lo. Ou: aquilo que você consome agora não pode ser consumido novamente no futuro. Ou: uma produção maior de um bem específico exige que se produza menos de outro bem. Nenhum desejo ou pensamento mágico pode fazer com que tais leis desapareçam. Acreditar no contrário somente pode resultar em fracasso real. “Na verdade”, observou Mises, “a história econômica é um longo registro de políticas governamentais que falharam porque foram projetadas e implementadas com um ousado desrespeito às leis da economia.” [8] À luz das elementares e imutáveis leis econômicas, o programa buchananista de nacionalismo social é apenas mais um sonho ousado, mas impossível. Nenhum desejo pode alterar o fato de que a manutenção das instituições centrais do atual estado de bem-estar social (assistencialista) e o restabelecimento da família, das normas, da conduta e da cultura tradicionais são metas incompatíveis. Você pode ter um — o socialismo (o bem-estar social) — ou outro — a moral tradicional —, mas você não pode ter ambos simultaneamente, pois a economia nacionalista social (o pilar do atual sistema estatal de bem-estar social que Buchanan pretende deixar intacto) é a própria causa das anomalias culturais e sociais.
A fim de esclarecer esse ponto, é necessário tão-somente recordar uma das leis mais fundamentais da economia, que assevera que toda redistribuição compulsória de riqueza ou de renda, independentemente dos critérios em que se baseia, implica tomar à força de alguns — os ricos (os possuidores de algo) — e dar a outros — os pobres (os não possuidores de algo). Assim, o incentivo para ser um possuidor é reduzido, e o incentivo para ser um não possuidor é estimulado. Aquilo que o possuidor tem é, caracteristicamente, algo considerado “bom”; e aquilo que o não possuidor não tem é algo “ruim” ou uma deficiência. Na verdade, esta é a ideia subjacente a qualquer redistribuição: alguns possuem muitas coisas boas, e outros não possuem o suficiente dessas coisas. O resultado de toda redistribuição, portanto, é que serão produzidos menos bens e cada vez mais males, menos perfeição e mais deficiências. Com a prática de subsidiar com fundos públicos (recursos tomados à força de outros) as pessoas que são pobres (um mal), mais pobreza será criada. Com a prática de subsidiar determinados indivíduos porque estes estão desempregados (um mal), mais desemprego será criado. Com a prática de subsidiar as mães solteiras (um mal), haverá mais mães solteiras e mais filhos ilegítimos — e assim por diante. [9]
Obviamente, esse insight fundamental se aplica a todo o sistema (assim denominado) de previdência social que foi implementado na Europa Ocidental (a partir da década de 1880) e nos Estados Unidos (a partir da década de 1930): ao sistema de “seguro” governamental compulsório contra a velhice, a doença, os acidentes de trabalho, o desemprego, a indigência (entre tantos outros problemas). Em conjunto com o (até mesmo mais antigo) sistema compulsório de educação pública, essas instituições e práticas equivalem a um ataque maciço contra a instituição da família e a responsabilidade pessoal (individual). Com a prática de aliviar os indivíduos da obrigação de prover os seus próprios rendimentos, a sua própria saúde, a sua própria segurança, a sua própria velhice e a educação das suas próprias crianças, são reduzidos o alcance e o horizonte temporal da ação provedora privada, e o valor do casamento, da família, dos filhos e das relações de parentesco é diminuído. A irresponsabilidade, a visão de curto prazo, a negligência, a doença e até mesmo o destructionismo (males) são promovidos; e a responsabilidade, a visão de longo prazo, a diligência, a saúde e a conservação (bens) são desencorajadas e punidas. O sistema de previdência social compulsório, com a sua prática de subsidiar os aposentados (os velhos) por meio dos impostos cobrados dos atuais assalariados e criadores de riqueza (os jovens), enfraqueceu sistematicamente o natural vínculo intergeracional entre pais, avós e filhos. Os idosos, caso não tenham feito qualquer poupança para a sua própria velhice, já não mais precisam contar com a ajuda dos seus filhos; e os jovens (os quais, em geral, possuem menos riqueza acumulada) devem sustentar os velhos (os quais, normalmente, detêm mais riqueza acumulada) — em vez de as coisas serem o contrário (como é típico no seio das famílias). Assim, as pessoas não só desejam ter menos filhos — e, de fato, as taxas de natalidade caíram pela metade desde o início das modernas políticas de previdência social (assistencialistas) —, mas também o respeito que os jovens tradicionalmente concediam aos seus anciãos é diminuído, e todos os indicadores de desintegração (e de disfunção) familiar — como as taxas de divórcio, de ilegitimidade, de abuso por parte dos filhos, de abuso por parte dos pais, de maus-tratos conjugais, de família monoparental, de celibato, de estilos de vida alternativos e de aborto — aumentaram. [10]
Ademais, com a socialização (estatização) do sistema de saúde através de instituições como o Medicaid e o Medicare e da regulamentação estatal do setor de seguros (restringindo o direito de recusa das seguradoras; i.e., o seu direito de excluir qualquer risco individual como impossível e de discriminar livremente, de acordo com métodos atuariais, diferentes grupos de riscos), uma máquina monstruosa de redistribuição de riqueza e de renda — à custa de pessoas responsáveis e de grupos de baixo risco e em favor de indivíduos irresponsáveis e de grupos de alto risco — foi colocada em movimento. Os subsídios para os doentes (os enfermos) e os incapacitados (os inválidos) fomentam a doença (a enfermidade) e a incapacitação (a invalidez) e enfraquecem a vontade de trabalhar para o próprio sustento e de levar uma vida saudável. Não é possível fazer melhor do que citar o “falecido economista austríaco” Ludwig von Mises mais uma vez:
Estar doente não é um fenômeno independente da vontade consciente. (…) A eficiência do homem não é apenas um efeito da sua condição física; ela depende, em grande medida, da sua mente e da sua vontade. (…) O aspecto destruidor do sistema público de seguro contra acidentes e doenças encontra-se, acima de tudo, no fato de que tais instituições promovem os acidentes e a doença, dificultam a recuperação e muitas vezes criam — ou, de qualquer forma, intensificam e prolongam — os distúrbios funcionais que acompanham a doença ou o acidente. (…) Sentir-se saudável é muito diferente de ser saudável no sentido médico. (…) Ao enfraquecer ou destruir completamente a vontade de estar bem e de estar em condições para o trabalho, a previdência social cria a doença e a incapacidade para o trabalho; ela estimula o hábito de reclamar — o qual, por si mesmo, já é uma neurose —, bem como neuroses de outros tipos. (…) Como uma instituição social, ela torna o povo física e mentalmente doente — ou pelo menos ajuda as doenças a se multiplicarem, a aumentarem e a se intensificarem. (…) Assim, a previdência social transformou a neurose do segurado em uma perigosa doença pública. Caso a instituição seja ampliada e desenvolvida, a doença se alastrará. Nenhuma reforma pode ser de alguma serventia. Nós simplesmente não podemos enfraquecer ou destruir a vontade de ser saudável sem produzir a doença. [11]
Eu não desejo explicar aqui o absurdo econômico da ideia suplementar de Buchanan e dos seus teóricos de promover políticas protecionistas (cujo propósito seria proteger os salários dos americanos). Se eles estivessem certos, o argumento em favor do protecionismo econômico equivaleria a uma crítica acusatória de todas as trocas comerciais e a uma defesa da tese de que todos (todas as famílias) estariam em melhor situação caso deixassem de comercializar com todos os demais. É certo que, nessa situação, ninguém perderia o seu emprego; é certo que o desemprego em virtude da concorrência “desleal” seria reduzido a zero. Todavia, tal sociedade com pleno emprego não seria próspera e forte; ela seria, na realidade, composta por pessoas (famílias) que, apesar de trabalharem do amanhecer ao anoitecer, estariam condenadas à pobreza e à fome. O protecionismo internacional de Buchanan, embora menos destrutivo do que uma política de protecionismo inter-regional ou de protecionismo interpessoal, engendra exatamente o mesmo efeito. Isso não é conservadorismo (os conservadores desejam famílias prósperas e fortes). Isso é destrucionismo econômico. [12]
Em todo caso, o que deve estar claro agora é que a maior parte — se não a totalidade — da degradação moral e da podridão cultural — as quais são os sinais de descivilização — que verificamos ao nosso redor são os resultados inevitáveis e inescapáveis do estado de bem-estar social (assistencialista) e das suas principais instituições. Os conservadores clássicos, ao estilo antigo, sabiam disso; e eles se opuseram vigorosamente à educação pública e à previdência social. Eles sabiam que os estados em tudo quanto é lugar intencionavam deteriorar — e, em última análise, destruir — as famílias (assim como as instituições, as camadas e as hierarquias de autoridade que são a consequência natural das comunidades baseadas em famílias) para, então, aumentar e reforçar o seu próprio poder. [13] Eles sabiam que, a fim de fazê-lo, os estados teriam de tirar proveito da revolta natural dos adolescentes (dos jovens) contra a autoridade paternal. E eles sabiam que a educação socializada e a responsabilidade socializada eram os meios de atingir essa meta. A educação pública e a previdência social fornecem uma possibilidade para os jovens rebeldes de escapar da autoridade paternal (de escapar de punições por comportamentos impróprios). Os velhos conservadores sabiam que essas políticas emancipariam o indivíduo da disciplina imposta pela vida familiar e comunitária apenas para submetê-lo, em vez disso, ao controle direto e imediato do estado. [14] Adicionalmente, eles sabiam — ou pelo menos tinham um palpite sobre isso — que tais práticas conduziriam a uma infantilização sistemática da sociedade — a um retrocesso, tanto em termos emocionais quanto em termos mentais (intelectuais), da idade adulta para a adolescência ou a infância.
Em contraste, o conservadorismo populista/proletário de Buchanan — o seu nacionalismo social — demonstra completa ignorância de tudo isso. A ideia de combinar o conservadorismo cultural com o estatismo de bem-estar social (assistencialista) é impossível, sendo, portanto, um disparatado absurdo econômico. O estatismo de bem-estar social — na prática, não importando a maneira ou a forma, trata-se de previdência social — fomenta a podridão e a degeneração moral e cultural. Assim, se existe genuína preocupação com a decadência moral dos Estados Unidos e se há o desejo de que se restabeleça a normalidade no tocante à sociedade e à cultura, é necessário opor-se a todos os aspectos do moderno estado assistencialista. O retorno à normalidade exige, no mínimo, a completa eliminação do atual sistema de previdência social (do seguro-desemprego, da seguridade social, da saúde pública, da educação pública — e assim por diante) e, então, a dissolução completa do aparato estatal e do poder governamental atual. Se o objetivo é restaurar a normalidade, os recursos e o poder do governo devem diminuir até os níveis apresentados no século XIX — ou mesmo ficar abaixo deles. Portanto, os verdadeiros conservadores devem ser libertários de linha dura (antiestatistas). O conservadorismo de Buchanan é falso: ele deseja o retorno à moralidade tradicional, mas ao mesmo tempo defende a manutenção das próprias instituições responsáveis pela perversão e pela destruição da moral tradicional.
III
A maior parte dos conservadores contemporâneos, então — especialmente aqueles que são os queridinhos da mídia —, não são conservadores, mas sim socialistas — ou da variedade internacionalista (os novos e neoconservadores estatistas em prol do assistencialismo e do belicismo e os defensores da social-democracia global) ou da variedade nacionalista (os buchananistas populistas). Os conservadores genuínos devem se opor a ambos os tipos. A fim de restabelecer a normalidade social e cultural, os verdadeiros conservadores só podem ser libertários radicais, e eles devem exigir a demolição de toda a estrutura de previdência social, pois ela é uma perversão moral e econômica. Se os conservadores devem ser libertários, por que os libertários devem ser conservadores? Se os conservadores devem aprender com os libertários, os libertários devem também aprender com os conservadores?
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer algumas expressões terminológicas. O termo “libertarianismo”, como empregado aqui, é um fenômeno do século XX — ou, mais precisamente, um fenômeno pós-Segunda Guerra Mundial — que possui raízes intelectuais tanto no liberalismo clássico (dos séculos XVIII e XIX) quanto na filosofia do direito natural (a qual é ainda mais antiga). Trata-se de um produto do racionalismo moderno (iluminismo). [15] Culminando na obra de Murray N. Rothbard, a qual é o nascedouro do movimento libertário moderno (em especial, a sua ética da liberdade), o libertarianismo é um sistema racional de ética (de direito). [16] Trabalhando dentro da tradição da filosofia política clássica — de Hobbes, Grotius, Pufendorf, Locke e Spencer — e empregando o mesmo antigo aparato lógico e as mesmas antigas ferramentas analíticas (conceituais), o libertarianismo (o rothbardianismo) é um código legal (jurídico) sistemático, obtido por meio da dedução lógica de um único princípio, cuja validade (e é isso que faz com que ele seja um princípio — i.e., um axioma ético — e com que o código legal libertário seja uma teoria da justiça axiomático-dedutiva) não pode ser contestada sem que se caia em contradições lógicas/práticas (praxeológicas) ou performativas (i.e., sem que se afirme implicitamente o que se nega explicitamente). Esse axioma é o antigo princípio da apropriação original: “A propriedade de recursos escassos — o direito de exercer um controle exclusivo sobre recursos escassos (propriedade privada) — é adquirida através de um ato de apropriação original (por meio do qual recursos são retirados de um estado de natureza e transformados para um estado de civilização).” Se isso não fosse assim, ninguém jamais poderia começar a agir (fazer ou propor qualquer coisa); portanto, qualquer outro princípio é praxeologicamente impossível (e argumentativamente indefensável). A partir do princípio da apropriação original — o princípio de que “o primeiro usuário é o primeiro proprietário” —, decorrem regras relativas à transformação e à transferência (troca) de recursos originalmente apropriados; e toda a ética (direito), incluindo os princípios da punição, é então reconstruída nos termos de uma teoria dos direitos de propriedade: todos os direitos humanos são direitos de propriedade, e todas as violações de direitos humanos são violações de direitos de propriedade. O resultado dessa teoria libertária da justiça é bem conhecido nesses círculos: o estado, conforme a vertente mais influente da teoria libertária (a vertente rothbardiana), é uma organização fora-da-lei (criminosa), e a única ordem social justa é um sistema de anarquia de propriedade privada.
Não desejo, neste momento, aprofundar a análise ou a defesa da teoria libertária da justiça. Permitam-me apenas confessar que considero tal teoria verdadeira; de fato, irrefutavelmente verdadeira. [17] Ao invés disso, desejo voltar à questão da relação entre o libertarianismo e o conservadorismo (a crença numa ordem social natural baseada e centrada nas famílias). Alguns comentaristas superficiais — principalmente do lado conservador —, como Russell Kirk, caracterizaram o libertarianismo e o conservadorismo como ideologias incompatíveis, hostis ou até mesmo antagônicas. [18] Na verdade, esse ponto de vista está completamente errado. A relação entre o libertarianismo e o conservadorismo é uma relação de compatibilidade praxeológica, de complementaridade sociológica e de reforço recíproco.
Para explicar isso, deixem-me enfatizar, em primeiro lugar, que a maioria — mas não a totalidade — dos principais pensadores libertários, como uma questão de dado empírico, era formada por conservadores sociais e culturais: por defensores dos costumes e da moralidade burgueses tradicionais. Mais notadamente, Murray Rothbard — o pensador libertário mais importante e mais influente — era um assumido conservador cultural. O professor mais importante de Rothbard, Ludwig von Mises, também o era. (Ayn Rand, outra grande influência sobre o libertarianismo contemporâneo, é, por óbvio, um caso diferente.) [19] Embora isso não revele muito (prova-se apenas que o libertarianismo e o conservadorismo podem ser psicologicamente reconciliados), trata-se de um indicativo de uma afinidade substancial entre as duas doutrinas. Não é difícil reconhecer que a visão conservadora e a visão libertária da sociedade são perfeitamente compatíveis (congruentes). Com certeza, os seus métodos são nitidamente diferentes. Uma corrente é (ou parece ser) empirista, sociológica e descritiva, ao passo que a outra corrente é racionalista, filosófica, lógica e construtivista. Não obstante essa diferença, ambas concordam num aspecto fundamental. Os conservadores estão convencidos de que o “natural” e o “normal” é antigo e generalizado (e assim podem ser discernidos em todos os tempos e em todos os lugares). Do mesmo modo, os libertários estão convencidos de que os princípios da justiça são eterna e universalmente válidos (e, portanto, devem ter sido essencialmente conhecidos pela humanidade desde os seus primórdios). Ou seja, a ética libertária não é nova nem revolucionária; ela é antiga e conservadora. Até mesmo os indivíduos primitivos e as crianças são capazes de compreender a validade do princípio da apropriação original, e a maioria das pessoas normalmente costuma reconhecê-lo como uma realidade indiscutível.
Além disso, na medida em que se analisa o objeto sobre o qual os conservadores e os libertários se focam — por um lado, as famílias, as relações de parentesco, as comunidades, a autoridade e a hierarquia social; por outro lado, a propriedade, assim como a sua apropriação, a sua transformação e a sua transferência —, deve estar claro que, ao passo em que não se referem às mesmas entidades, eles ainda falam sobre os diferentes aspectos do mesmo objeto: os agentes humanos e a cooperação social. Extensivamente, i.e., no tocante à sua área de investigação (o seu quadro de referência), o seu objeto é idêntico. As famílias, a autoridade, as comunidades e as classes sociais são a concretização empírica/sociológica dos conceitos e categorias abstratos filosóficos/praxeológicos de propriedade, de produção, de troca e de contrato. A propriedade e as relações de propriedade não existem fora da família e das relações de parentesco. As últimas moldam e determinam a forma específica e a configuração da propriedade e das relações de propriedade, embora ao mesmo tempo estejam limitadas pelas leis universais e perenes da escassez e da propriedade. De fato, como já foi visto, as famílias consideradas normais pelos padrões conservadores são aquelas dos lares familiares; e a desintegração familiar e a decadência moral e cultural que os conservadores contemporâneos lamentam são, em grande medida, o resultado da erosão e da destruição dos lares familiares (propriedades) — na condição de base econômica das famílias — pelo moderno estado de bem-estar social (assistencialista). Portanto, a teoria libertária da justiça pode realmente fornecer ao conservadorismo uma definição mais precisa e uma defesa moral mais rigorosa do seu próprio objetivo (o retorno à civilização sob a forma de normalidade moral e cultural) do que o próprio conservadorismo jamais conseguiria elaborar. Ao fazê-lo, ela pode afiar e fortalecer a tradicional visão de mundo antiestatista do conservadorismo. [20]
IV
Ainda que os criadores intelectuais do libertarianismo moderno fossem conservadores culturais — e ainda que a doutrina libertária seja totalmente compatível (congruente) com a visão de mundo conservadora (não implicando, como alegam alguns críticos conservadores, um “individualismo atomístico” e um “egoísmo ganancioso”) —, corrompido pelo moderno estado de bem-estar social (assistencialista), o movimento libertário sofreu uma transformação significativa. Em larga medida (e de forma completa aos olhos da mídia e do público), ele se tornou um movimento que combina o antiestatismo radical e a economia de mercado com o esquerdismo cultural, com o multiculturalismo e o contramulticulturalismo e com o hedonismo pessoal; ou seja, ele é exatamente o contrário do programa buchananista de socialismo culturalmente conservador: trata-se de um capitalismo contracultural.
Anteriormente, foi observado que o programa buchananista de nacionalismo social(ista) não parece ser do agrado das massas; pelo menos, não nos Estados Unidos. Isso é verdadeiro numa amplitude ainda maior em relação à tentativa libertária de combinar a economia de mercado com o multiculturalismo e o contramulticulturalismo. Contudo, como no tocante ao conservadorismo, também nesse caso a minha preocupação principal não é sobre a hipótese de agradarem ou não às massas e sobre a hipótese de certas ideias poderem ou não ser psicologicamente combinadas e integradas, mas sim sobre a hipótese de essas ideias poderem ou não ser combinadas de modo prático e eficiente. É o meu plano demonstrar que elas não podem ser sintetizadas e que muito do libertarianismo contemporâneo é falso, sendo, na verdade, um libertarianismo contraproducente (assim como o conservadorismo de Buchanan é falso e contraproducente).
O fato de que grande parte do libertarianismo moderno é culturalmente esquerdista não se deve a inclinações dessa natureza entre os principais teóricos libertários. Conforme foi observado, eles eram, em sua maioria, conservadores culturais. Ao invés disso, trata-se do resultado de uma compreensão superficial da doutrina libertária por muitos dos seus fãs e seguidores; e essa ignorância encontra a sua explicação numa coincidência histórica e na mencionada tendência (inerente e ínsita) do estado social-democrático assistencialista (de bem-estar social) a promover um processo de infantilização intelectual e emocional (processo de descivilização da sociedade).
Os primórdios do movimento libertário moderno nos Estados Unidos se localizam na metade da década de 1960. Em 1971, o Partido Libertário foi fundado; e, em 1972, o filósofo John Hospers foi nomeado o seu primeiro candidato presidencial. Era o tempo da Guerra do Vietnã. Ao mesmo tempo, promovido pelos grandes “avanços” no crescimento do estado de bem-estar social (assistencialista) a partir do início e da metade da década de 1960 nos Estados Unidos e, da mesma forma, na Europa Ocidental (a chamada legislação dos direitos civis e a guerra contra a pobreza), surgiu um novo fenômeno de massa. Emergiu um novo “lumpenproletariado” de intelectuais e de jovens intelectualizados — os produtos de um sistema em constante expansão de educação socialista (pública) — “alienados” da moralidade e da cultura do mainstream “burguês” (mesmo vivendo com muito mais conforto do que o lumpenproletariado de antigamente graças à riqueza criada por essa cultura dominante). O multiculturalismo e o relativismo cultural (“viva e deixe viver”) e o antiautoritarismo igualitarista (“não respeite nenhuma autoridade”) foram elevados da condição de fases temporárias e transitórias de desenvolvimento mental (adolescência) para o status de atitudes permanentes entre intelectuais adultos e os seus alunos.
A oposição íntegra (com princípios) dos libertários à guerra do Vietnã coincidiu com uma oposição pouco difusa da nova esquerda a essa guerra. Adicionalmente, a conclusão anarquista da doutrina libertária atraiu e agradou a esquerda contracultural. [21] Pois a ilegitimidade do estado e o axioma da não agressão (segundo o qual não se permite a iniciação — ou a ameaça da iniciação — do uso da força física contra outras pessoas e os seus bens) não implicavam que todos tivessem a liberdade de escolher o seu próprio estilo de vida não agressivo? Isso não implicava que a vulgaridade, a obscenidade, a grosseria, o uso de drogas, a promiscuidade, a pornografia, a prostituição, o homossexualismo, a poligamia, a pedofilia ou qualquer outra perversidade ou anormalidade imaginável, na medida em que constituíam crimes sem vítimas, fossem estilos de vida e atividades perfeitamente normais e legítimos? Portanto, não é de surpreender que, a partir do seu início, o movimento libertário atraiu um número anormalmente elevado de seguidores desequilibrados e perversos. Subsequentemente, o ambiente contracultural e a “tolerância” multicultural e relativista do movimento libertário atraiu um número ainda maior de desajustados, de fracassados (tanto em termos pessoais quanto em termos profissionais) ou de simples perdedores. Murray Rothbard, em nojo, chamou-os de “libertários vazios” e os identificou como libertários “modais” (típicos e representantes). Eles fantasiavam uma sociedade em que todos estariam livres para escolher e cultivar quaisquer estilos de vida, carreiras ou características que não fossem agressivos e em que, graças à economia de livre mercado, todos poderiam fazê-lo em um nível elevado de prosperidade geral. Ironicamente, o movimento que estabeleceu o objetivo de desmantelar o estado e de restaurar a propriedade privada e a economia de mercado foi, em larga medida, apropriado e moldado em sua face externa pelos produtos mentais e emocionais do estado de bem-estar social (assistencialista): a nova classe de adolescentes permanentes. [22]
V
Essa combinação intelectual dificilmente poderia ter terminado de maneira feliz. O capitalismo de propriedade privada e o multiculturalismo igualitarista formam uma combinação tão improvável quanto o socialismo e o conservadorismo cultural. E, na tentativa de combinar o que não pode ser combinado, muitos do movimento libertário moderno contribuíram efetivamente para a continuação da deterioração dos direitos de propriedade privada (assim como muitos do conservadorismo contemporâneo contribuíram para a erosão das famílias e da moralidade tradicional). O que os libertários contraculturais falharam em reconhecer — e o que os verdadeiros libertários não podem deixar de enfatizar — é que a restauração dos direitos de propriedade privada e da economia laissez-faire implica um aumento forte e drástico da “discriminação” social, eliminando rapidamente a maior parte — se não a totalidade — das experiências de estilos de vida multiculturais e igualitaristas tão caras aos libertários de esquerda. Em outras palavras, os libertários devem ser conservadores radicais e intransigentes.
Em contraste com os libertários de esquerda reunidos em instituições como, por exemplo, o Cato Institute e o Institute for Justice — os quais buscam o apoio do governo central para a aplicação de diversas políticas de não discriminação e clamam por uma política imigratória não discriminatória ou “livre” [23] —, os verdadeiros libertários devem abraçar a discriminação, seja ela interna (em relação a nativos domésticos), seja ela externa (em relação a estrangeiros). Na verdade, a propriedade privada significa discriminação. Eu — e não você — sou o dono disso e daquilo. Eu tenho o direito de excluir você da minha propriedade. Eu posso estipular condições para o seu uso da minha propriedade; e eu posso expulsar você da minha propriedade. Ademais, você e eu, que somos donos de propriedades privadas, podemos negociar e submeter os nossos bens a um contrato restritivo (ou protetor). Nós e os outros podemos, se ambas as partes entenderem que é isso benéfico, impor limites ao uso futuro que cada um de nós pode fazer com os respectivos bens.
O estado de bem-estar social moderno, em larga medida, retirou dos proprietários privados o direito de exclusão implícito no conceito de propriedade privada. A discriminação é proibida. Os empregadores não podem contratar quem eles desejam. Os proprietários não podem alugar a quem eles queiram. Os vendedores não podem vender para quem desejarem; os compradores não podem adquirir de quem eles queiram comprar. E os grupos de donos de propriedades privadas não estão autorizados a pactuar qualquer contrato restritivo que acreditem ser mutuamente benéfico. O estado, portanto, privou os indivíduos de uma grande parte da sua proteção pessoal e física. Não ter o direito de excluir outras pessoas significa não ter o direito de se defender de outros indivíduos. O resultado da erosão dos direitos de propriedade privada no âmbito do estado democrático de bem-estar social é a integração forçada. Ela, a integração forçada, é onipresente. Os americanos devem aceitar imigrantes que não desejam. Os professores não podem se livrar de alunos bagunceiros ou mal-comportados; os empregadores têm de ficar com funcionários ineficientes ou destrutivos; os proprietários são obrigados a conviver com maus inquilinos; os bancos e as companhias de seguros não têm o direito de evitar maus riscos; os restaurantes e os bares devem acomodar clientes indesejados; e os clubes privados e os convênios são compelidos a aceitar membros e ações que violam as suas próprias regras e restrições. Por outro lado, na propriedade pública (i.e., nos bens governamentais) em especial, a integração forçada tomou uma forma perigosa: a anomia (a pura ausência de lei e de ordem). [24]
Excluir outras pessoas da sua própria propriedade é o único meio pelo qual o proprietário pode evitar que “males” aconteçam (i.e., os eventos que provocarão a diminuição do valor da propriedade). Inexistindo o direito de excluir livremente, aumentará a incidência de males — alunos, funcionários e clientes mal-comportados, preguiçosos, podres e pouco confiáveis —, e cairá o valor das propriedades. Na verdade, a integração forçada (o resultado de todas as políticas de não discriminação) fomenta o mau comportamento e a má índole. Numa sociedade civilizada, a punição máxima para o mau comportamento é a expulsão, e os indivíduos de mau comportamento ou de má índole (mesmo que eles não cometam crimes) se verão rapidamente expulsos de todos os lugares e por todas as pessoas e se tornarão párias e desterrados, sendo removidos fisicamente da civilização. Trata-se de um duro preço a pagar; portanto, é reduzida a frequência de tal comportamento. Em contrapartida, se há a proibição de expulsar outros da propriedade sempre que a sua presença for considerada indesejável, o mau comportamento, a má conduta e a má índole são incentivados (pois esses comportamentos se tornam menos dispendiosos, menos custosos). Em vez de serem isolados e, em última instância, completamente excluídos da sociedade, os “vagabundos” — em toda área imaginável de incompetência — têm a permissão de perpetrarem os seus aborrecimentos em todos os lugares; assim, os “vagabundos” — bem como esse tipo de comportamento — se multiplicarão. Os resultados da integração forçada são bastante visíveis. Todas as relações sociais — tanto na vida privada quanto na vida profissional — tornaram-se cada vez mais igualitárias (todos estão muito próximos a todos os outros) e incivilizadas.
Em nítido contraste, uma sociedade em que o direito de exclusão é totalmente restabelecido para os donos de propriedades privadas seria profundamente não igualitária, intolerante e discriminatória. Haveria pouca ou nenhuma “tolerância” e “mente aberta”, as quais são tão caras aos libertários de esquerda. Em vez disso, estar-se-ia no caminho certo no sentido de restabelecer a liberdade de associação e de exclusão implícita na instituição da propriedade privada; as cidades e as aldeias, dessa maneira, poderiam fazer — e o fariam — o que eles fizeram rotineiramente até bem dentro do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Haveria sinais sobre requisitos para a entrada na cidade; e, uma vez na cidade, haveria requisitos para a entrada em partes específicas de propriedades (proibindo, por exemplo, mendigos, vagabundos ou moradores de rua; mas também: homossexuais, hindus, usuários de drogas, judeus, muçulmanos, alemães, zulus — e assim por diante); e aqueles que não atendessem a esses requisitos seriam expulsos como invasores. Quase instantaneamente, seria reafirmada (restaurada) a normalidade cultural e moral.
Os libertários de esquerda e os experimentadores de estilos de vida multiculturais ou contramulticulturais, mesmo que não estivessem envolvidos em algum crime, mais uma vez teriam de pagar um preço pela sua conduta. Se continuassem com o seu comportamento ou o seu estilo de vida, eles seriam barrados da sociedade civilizada e viveriam separados fisicamente dela, em guetos ou em lugares distantes, e muitos cargos ou profissões lhes seriam inatingíveis. Em contraste, se eles quisessem viver e progredir no seio da sociedade, eles teriam de se adaptar e de assimilar as normas morais e culturais da sociedade em que desejassem entrar. Essa assimilação não implicaria necessariamente que seria preciso renunciar completamente a um comportamento ou estilo de vida anormal ou diferente. Isso significaria, porém, que não mais seria possível “sair por aí” exibindo em público um comportamento ou estilo de vida alternativo. Esse comportamento teria de ficar “no armário”, estando escondido dos olhos do público e ficando fisicamente restrito à total privacidade das quatro paredes. A sua propaganda ou a sua demonstração em público engendrariam a expulsão.[25]
Por outro lado, os verdadeiros conservadores libertários — em contraste com os libertários de esquerda — devem não apenas reconhecer e ressaltar o fato de que haverá um forte aumento da discriminação (exclusão e expulsão) numa sociedade libertária (em que os direitos de propriedade privada são plenamente restabelecidos para os donos de residências particulares e de propriedades privadas); mais importante ainda: eles terão de reconhecer — e os conservadores e os seus insights podem ser úteis para concretizar esse objetivo — que isso realmente deveria ser assim; ou seja, terão de reconhecer que deve haver discriminação rigorosa caso se pretenda atingir a meta de uma anarquia de propriedade privada (ou uma pura e genuína sociedade de leis privadas). Sem discriminação constante e implacável, uma sociedade libertária rapidamente erodiria e degeneraria no socialismo assistencialista estatal. Toda ordem social, incluindo uma ordem social libertária ou conservadora, exige um mecanismo de autoexecução. Mais precisamente: as ordens sociais (ao contrário dos sistemas mecânico ou biológico) não são mantidas automaticamente; elas exigem o esforço consciente e a ação propositada por parte dos membros da sociedade para impedi-la de se desintegrar.[26]
VI
O modelo libertário padrão de uma comunidade é aquela de indivíduos que, ao invés de viverem fisicamente separados e isolados uns dos outros, associam-se uns com os outros na condição de vizinhos que vivem em pedaços de terra adjacentes, mas separados. Todavia, esse modelo é muito simplista. Provavelmente, a razão para preferir uma relação com os seus vizinhos ao isolamento físico é o fato de que, no tocante a indivíduos que participam dos benefícios da divisão do trabalho, o bairro oferece a vantagem adicional da redução dos custos de transação; i.e., o bairro facilita o intercâmbio (a troca). Em consequência disso, o valor de um pedaço de terra de propriedade individual será reforçado pela existência de pedaços de terras vizinhos pertencentes a outras pessoas. Entretanto, embora possa ser verdade e constitua uma razão válida para preferir um bairro ao isolamento físico, isso de forma alguma é sempre verdadeiro. Um bairro também envolve riscos e pode conduzir à queda — ao invés de ao aumento — do valor das propriedades, pois, mesmo que se presuma, de acordo com o modelo em questão, que o estabelecimento inicial da propriedade vizinha tenha sido mutuamente benéfico — e mesmo que se suponha que todos os membros de uma comunidade (bairro) se abstenham de perpetrar atividades criminosas —, pode ainda acontecer que um antigo vizinho “bom” se torne odioso, detestável e insolente; que ele não cuide da sua propriedade ou a modifique de modo a afetar negativamente o valor das propriedades dos outros membros da comunidade; ou que ele simplesmente se recuse a participar de qualquer esforço de cooperação dirigido a aumentar o valor da comunidade como um todo. [27] Portanto, a fim de superar as dificuldades inerentes ao desenvolvimento da comunidade quando a terra é controlada por propriedades divididas, a formação de bairros e de comunidades de fato procedeu segundo linhas diferentes daquelas sugeridas nesse referido modelo.
Então, em vez de serem compostos por pedaços de terra adjacentes (vizinhos) pertencentes a vários proprietários, os bairros foram geralmente comunidades proprietárias ou contratuais, sendo fundados e pertencendo a um único titular (proprietário) que “arrendaria” (leasing) parcelas separadas da terra sob condições especificadas a indivíduos selecionados.[28]Originalmente, tais acordos se baseavam em relações de parentesco, com o papel do titular (proprietário) sendo executado pelo chefe de uma família ou de um clã. Em outras palavras, assim como as ações dos membros familiares próximos são orientadas e coordenadas pelo chefe e proprietário do lar familiar (dentro de um único seio famíliar), a função de orientar e de coordenar a utilização das terras por grupos de lares familiares vizinhos era tradicionalmente realizada pelo chefe de um grupo ampliado de relações de parentesco. [29] Nos tempos modernos, os quais se caracterizam por um forte crescimento populacional e por uma diminuição significativa da importância das relações de parentesco, esse modelo libertário original de uma comunidade proprietária foi substituído por novos e conhecidos desenvolvimentos, como shopping centers e “condomínios fechados”. Os shopping centers e os condomínios fechados residenciais pertencem a uma única entidade (um indivíduo ou uma empresa privada); e a relação entre a comunidade titular e os seus inquilinos e residentes é puramente contratual. O titular é um empresário que busca obter lucros com o desenvolvimento e o gerenciamento de comunidades residenciais e/ou comerciais, atraindo pessoas a lugares onde elas desejem residir e/ou tocar os seus negócios. “O proprietário”, explica Spencer H. MacCallum,
Cria valor no inventário das terras da comunidade principalmente satisfazendo três requisitos funcionais de uma comunidade que só ele, na condição de proprietário, pode cumprir adequadamente: a seleção dos membros, o planejamento do território e a liderança. (…) As duas primeiras funções — a seleção dos membros e o planejamento do território — são realizadas automaticamente por ele durante a determinação sobre o uso da terra (para quem e para qual finalidade ele será estabelecido). A terceira função — a liderança — é a sua responsabilidade natural e também a sua oportunidade especial, uma vez que o seu interesse é o sucesso de toda a comunidade (em vez do sucesso de qualquer interesse especial dentro dela). A atribuição de terras estabelece automaticamente os tipos de inquilinos e a sua justaposição espacial uns em relação aos outros (e, portanto, a estrutura econômica da comunidade). (…) A liderança também inclui a arbitragem das diferenças entre os inquilinos, bem como a orientação e a participação em esforços conjuntos. (…) [Na verdade], em um sentido fundamental, a segurança da comunidade faz parte da função do titular. No planejamento do território, ele supervisiona o projeto de todas as construções do ponto de vista da segurança. Ele também escolhe os inquilinos tendo em vista a sua compatibilidade e a sua complementaridade com os demais membros da comunidade; e ele aprende a antecipar as locações e a fornecer outras formas de soluções contra litígios que se desenvolvem entre os inquilinos. Pela sua arbitragem informal, ele resolve diferenças que, de outra forma, poderiam se tornar graves. Dessas muitas maneiras, ele garante e assegura a “posse mansa e pacífica” — como foi tão admiravelmente redigido na língua do direito comum — para os seus inquilinos. [30]
É evidente, então, que a tarefa de manter o pacto (o contrato) vivo numa comunidade libertária (proprietária) é, em primeiro lugar e acima de tudo, do titular. No entanto, ele não é mais do que um se humano; é impossível que ele obtenha sucesso nessa tarefa a menos que seja apoiado nos seus esforços por uma maioria dos membros da comunidade em questão. Em particular, o proprietário necessita do apoio da elite comunitária, i.e., dos chefes de famílias e de empresas mais fortemente estabelecidos na comunidade. A fim de protegerem e possivelmente aumentarem o valor das suas propriedades e dos seus investimentos, tanto o titular quanto a elite comunitária devem estar dispostos e preparados para assumir duas formas de medidas de proteção. Em primeiro lugar, eles devem estar dispostos a se defenderem, por meio da força física e da punição, de invasores externos e de criminosos internos. Porém, em segundo lugar — e igualmente importante —, eles também devem estar dispostos a se defenderem, por meio do ostracismo, da exclusão e, em última análise, da expulsão, daqueles membros da comunidade que advogam, anunciam ou difundem ações incompatíveis com a finalidade do pacto, que é a proteção das propriedades e das famílias.[31]
Nesse sentido, uma comunidade sempre enfrenta as ameaças (relacionadas entre si) do igualitarismo e do relativismo cultural. O igualitarismo, qualquer que seja a sua forma, é incompatível com a ideia de propriedade privada. A propriedade privada significa exclusividade, desigualdade e diferença. E o relativismo cultural é incompatível com o fato fundamental — na realidade, basilar — das famílias e das relações de parentesco intergeracionais. As famílias e as relações de parentesco implicam o absolutismo cultural. Como uma questão de fato sócio-psicológico, os sentimentos igualitaristas e relativistas encontram apoio constante nas gerações cada vez mais novas de adolescentes. Devido ao seu desenvolvimento mental ainda incompleto, os jovens — especialmente os do sexo masculino — estão sempre suscetíveis a ambas as ideias. A adolescência é caracterizada por explosões regulares (e, para essa fase, normais) de rebelião (revolta) contra a disciplina imposta pela vida familiar e pela autoridade paternal. [32]O relativismo cultural e o multiculturalismo fornecem o instrumento ideológico para a emancipação de tais limitações. E o igualitarismo — baseado na visão infantil de que a propriedade é “dada” (sendo, portanto, distribuída de maneira arbitrária) e não individualmente apropriada e produzida (sendo, portanto, distribuída de maneira justa, i.e., de acordo com a produtividade pessoal) — fornece os meios intelectuais através dos quais os jovens rebeldes podem reivindicar os recursos econômicos necessários para uma vida livre e fora do quadro disciplinar das famílias. [33]
A execução do pacto é, em grande medida, uma questão de prudência, obviamente. Como e quando reagir e que medidas de proteção adotar são temas que requerem julgamento por parte dos membros da comunidade e, em especial, do titular e da elite comunitária. Assim, por exemplo, na medida em que as ameaças do relativismo moral e do igualitarismo estão restritas a uma pequena proporção de adolescentes e de jovens adultos durante apenas um breve período das suas vidas (até que estabeleçam uma família na idade adulta), pode muito bem ser suficiente simplesmente não fazer nada. Os defensores do relativismo cultural e do igualitarismo representariam pouco mais do que aborrecimentos ou irritações temporários, e a punição (sob a forma de ostracismo) pode ser bem leve e branda. Uma pequena dose de ridicularização e de desprezo pode ser tudo quanto seja necessário para conter a ameaça relativista e igualitarista. Quando o espírito de relativismo moral e de igualitarismo se consolida entre os membros adultos da sociedade (entre as mães, os pais e os chefes de famílias e de empresas), a situação, contudo, torna-se muito diferente; e medidas mais drásticas podem ser necessárias.
Assim que os membros maduros da sociedade habitualmente expressam aceitação dos sentimentos igualitaristas ou até mesmo os defendem — seja na forma de democracia (governo da maioria), seja na forma de comunismo —, torna-se essencial que outros membros — em especial, as elites sociais naturais — estejam preparados para agir de forma decisiva; e, no caso de a inconformidade continuar, eles devem excluir e, em última instância, expulsar esses membros da sociedade. Em um pacto celebrado entre o titular e os inquilinos da comunidade com a finalidade de proteger as suas propriedades privadas, não há algo como um direito de livre (ilimitada) expressão, nem mesmo um direito de expressão ilimitada na própria propriedade de um inquilino. É possível dizer inúmeras coisas e promover qualquer ideia sob este sol; mas, naturalmente, não é lícito a ninguém defender ideias contrárias à própria finalidade do pacto de preservação e de proteção da propriedade privada (ideias como a democracia e o comunismo). Não pode haver tolerância para com os democratas e os comunistas numa ordem social libertária. Eles terão de ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com a finalidade de proteger a família e os clãs, não pode haver tolerância para com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida incompatíveis com esse objetivo. Eles — os defensores de estilos de vida alternativos, avessos à família e a tudo que é centrado no parentesco (como, por exemplo, o hedonismo, o parasitismo, o culto da natureza e do meio ambiente, a homossexualidade ou o comunismo) — terão de ser também removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem libertária.
VII
Deve estar bem claro, então, o motivo pelo qual os libertários devem ser conservadores morais e culturais da mais intransigente natureza. O estado atual de degradação moral, de desintegração social e de podridão cultural é precisamente o resultado de uma tolerância demasiada e, acima de tudo, errônea e equivocada. Ao invés de todos os habituais democratas, comunistas e adeptos de estilos de vida alternativos serem rapidamente isolados, excluídos e expulsos da civilização (de acordo com os princípios dos contratos), eles são tolerados pela sociedade. No entanto, essa tolerância apenas incentivou e promoveu ainda mais sentimentos e atitudes igualitaristas e relativistas — até que, finalmente, atingiu-se o ponto em que o direito (a autoridade) de excluir alguém de alguma coisa foi efetivamente extinto (ao passo em que o poder do estado, que se manifesta nas políticas estatais de integração forçada, aumentou proporcionalmente).
Os libertários, na sua tentativa de estabelecer uma ordem social natural livre, devem se esforçar para recuperar do estado o direito de exclusão inerente e ínsito à propriedade privada. Porém, mesmo antes de fazerem isso — e a fim de tornarem essa conquista até mesmo possível —, os libertários devem imediatamente começar a reafirmar e a exercitar — na medida em que a situação ainda lhes permita fazê-lo — o seu direito de exclusão nas suas vidas cotidianas. Os libertários devem se distinguir dos outros praticando e defendendo a forma mais extrema de intolerância e de discriminação contra os igualitaristas, os democratas, os socialistas, os comunistas, os multiculturalistas e os ambientalistas; contra os maus costumes, a má conduta, a incompetência, a grosseria, a vulgaridade e a obscenidade. Assim como os verdadeiros conservadores — que terão de se desvencilhar do falso conservadorismo social(ista) dos buchananistas e dos neoconservadores —, os verdadeiros libertários devem visível e ostensivamente se dissociar dos falsos, igualitaristas e impostores libertários de esquerda contramulticulturalistas e anti-autoridade.
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NOTAS
[1] Afirmar isso não significa alegar que ninguém jamais adotou esse significado de conservadorismo. De fato, um proeminente exemplo de conservador que chegou bem perto de aceitar a definição aqui rejeitada como inútil é Michael Oakeshott, no texto “On Being Conservative”, em idem, Rationalism in Politics and other Essays. Para Oakeshott, o conservadorismo
Não é um credo ou uma doutrina, mas uma disposição. (…) Trata-se de uma propensão a usar e desfrutar o que se encontra disponível em vez de desejar ou procurar algo mais; a deliciar-se com aquilo que se encontra no presente, não com aquilo que foi ou com aquilo que pode ser. (…) Trata-se de preferir o tentado ao inédito, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, as risadas do presente à felicidade utópica. (pp. 407–408)
[2] Ver Robert A. Nisbet, “Conservatism”, em A History of Sociological Analysis, editado por Tom Bottomore e Robert A. Nisbet (New York: Basic Books, 1978); e Robert A. Nisbet, Conservatism: Dream and Reality (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986). “Naturalmente”, afirma Nisbet, “os conservadores, no seu apelo à tradição, não apoiavam ou aprovavam toda e qualquer ideia ou coisa transmitida pelo passado. A filosofia do tradicionalismo, assim como todas as filosofias dessa natureza, é seletiva. Uma tradição salutar deve advir do passado, mas ela também deve ser desejável em função da sua substância.” (Ibid., p. 26) “Os dois conceitos centrais da filosofia conservadora”, Nisbet passa a explicar, são a “propriedade” e a “autoridade” (voluntariamente reconhecida), as quais, por sua vez, implicam a “liberdade” e a “ordem” (pp. 34–35). “A propriedade”, na filosofia conservadora, “é mais do que um apêndice externo ao homem; é mais do que uma mera serva inanimada das necessidades humanas. Ela é, acima de todo o resto que há na civilização, a própria condição da humanidade do homem; ela denota a sua superioridade sobre a totalidade do mundo natural.” (p. 56)
Grande parte da veneração conservadora pela instituição da família reside na sua afinidade histórica com a família e com a propriedade. Trata-se de uma norma geral que cada família busque os maiores benefícios possíveis para os seus filhos e os seus outros membros. (…) Não há um assunto em que os conservadores tenham lutado tão corajosamente contra os progressistas e os socialistas quanto as ameaças, por meio da legislação, de livrar as propriedades do controle familiar através da tributação ou de qualquer outra forma de redistribuição. (p. 52)
Praticamente todas as disposições da lei medieval do matrimônio e da família — incluindo a ênfase severa e rigorosa na castidade feminina e a punição terrível que podia ser executada contra a mulher adúltera — decorrem de uma reverência quase absoluta pela propriedade, pela herdabilidade legítima da propriedade. (p. 57)
Da mesma forma, a ênfase conservadora na autoridade e nas camadas de ordens sociais e a sua afinidade com o modelo de organização social da Europa medieval (pré-Reforma) estão enraizadas na supremacia da família e da propriedade. Afirma Nisbet:
O princípio mais básico da filosofia conservadora é a incompatibilidade inerente e absoluta entre a liberdade e a igualdade. Essa incompatibilidade brota dos objetivos opostos ínsitos aos dois valores. A finalidade da liberdade é a proteção da propriedade individual e familiar — sendo a palavra “propriedade” utilizada no seu sentido mais abrangente, de modo a incluir tanto o imaterial quanto o material. O objetivo inerente da igualdade, por outro lado, é algum tipo de redistribuição ou de nivelamento dos valores materiais e imateriais desigualmente repartidos de uma comunidade. Ademais, sendo diferentes as forças individuais tanto em termos de mente quanto em termos de corpo desde o nascimento, todos os esforços no sentido de equilibrar e compensar essa diversidade de forças por meio da legislação e do governo só podem enfraquecer e mutilar as liberdades das pessoas envolvidas — especialmente as liberdades dos mais fortes e dos mais brilhantes. (p. 47)
Portanto, para o conservador, a preservação da propriedade e da liberdade requer a existência de uma elite (ou aristocracia) natural; ele, assim, opõe-se vigorosamente à democracia. De fato, constata Nisbet, “para a maioria dos conservadores, o socialismo surgiu como uma consequência quase necessária da democracia, e o totalitarismo, como uma consequência igualmente quase necessária da social-democracia” (p. 92). Sobre a incompatibilidade entre a liberdade e a igualdade (assim como entre a liberdade e a democracia), ver também Erik von Kuehnelt-Leddihn, Liberty or Equality? (Front Royal, Virginia: Christendom Press, 1993); sobre a ênfase do pensamento conservador na nobilitas naturalis como um pré-requisito sociológico essencial da liberdade, ver também Wilhelm Röpke, Jenseits von Angebot und Nachfrage (Berna: Paul Haupt, 1979), cap. 3.3.
[3] Sobre o conservadorismo americano contemporâneo em particular, consultar Paul Gottfried, The Conservative Movement, edição revista (New York: Twayne Publishers, 1993); George H. Nash, The Conservative Intellectual Movement in America (New York: Basic Books, 1976); Justin Raimondo, Reclaiming the American Right: The Lost Legacy of the Conservative Movement (Burlingame, California: Center for Libertarian Studies, 1993); ver também o capítulo 11 deste livro. O caráter fundamentalmente estatista do neoconservadorismo americano encontra-se muito bem resumido em uma declaração de um dos seus principais defensores intelectuais, o antigo trotskista Irving Kristol: “O princípio básico por trás de um estado de bem-estar social (assistencialista) conservador deve ser um princípio simples: sempre que possível, as pessoas devem ter o direito de manter consigo o seu próprio dinheiro — em vez de tê-lo transferido (através dos impostos para o estado) — sob a condição de que elas o utilizem de determinadas maneiras.” Irving Kristol, Two Cheers for Capitalism (New York: Basic Books, 1978), p. 119 (ênfase adicionada). Esse ponto de vista é essencialmente idêntico à visão defendida pelos social-democratas europeus modernos (pós-marxistas). Assim, o Partido Social-Democrata (PSD) da Alemanha, por exemplo, em seu Programa Godesberg de 1959, adotou como o seu principal lema o slogan “tanto mercado quanto possível, tanto estado quanto necessário”.
Uma segunda ramificação do conservadorismo americano contemporâneo — um pouco mais velha, mas hoje em dia praticamente indistinguível — é representada pelo novo conservadorismo (após a Segunda Guerra Mundial) lançado e promovido, com o apoio da CIA (Central Intelligence Agency — “Agência Central de Inteligência”), por William Buckley e pelo seu National Review. Considerando que o antigo conservadorismo americano (antes da Segunda Guerra Mundial) se caracterizava pela defesa de uma política externa decididamente anti-intervencionista (isolacionista), a marca registrada do novo conservadorismo de Buckley tem sido o seu militarismo fanático e a sua defesa de uma política externa intervencionista. Em um artigo, “A Young Republican’s View”, publicado três anos antes do lançamento do seu National Review in Commonweal, em 25 de janeiro de 1952, Buckley assim resumia o que, mais tarde, iria se tornar o novo credo conservador: diante da ameaça representada pela União Soviética, “nós [os novos conservadores] temos de aceitar um grande governo pelo tempo que for necessário — pois nem uma guerra ofensiva nem uma guerra defensiva podem ser travadas (…) exceto por meio do instrumento de uma burocracia totalitária em nossas costas litorâneas”. Os conservadores, escreveu Buckley, estavam obrigados a promoverem “as abrangentes e produtivas legislações tributárias que são necessárias para sustentar uma vigorosa política externa anticomunista”, assim como os “grandes exércitos e as forças aéreas, a energia atômica, a espionagem central, as comissões da produção de guerra e a concomitante centralização do poder em Washington”. Não surpreendentemente, desde o colapso da União Soviética no final da década de 1980, essencialmente nada mudou nessa filosofia. Hoje, a manutenção e a preservação do estado assistencialista e belicista americano são simplesmente justificadas e promovidas pelos novos conservadores e pelos neoconservadores através da referência a outros inimigos e perigos estrangeiros: a China, o fundamentalismo islâmico, Saddam Hussein, os “estados perigosos” e/ou a ameaça do “terrorismo global”. Em relação ao novo conservadorismo de Buckley, observou Robert Nisbet:
De todas as deturpações da palavra “conservador” (…), a mais divertida, de acordo com uma perspectiva histórica, é sem dúvida a aplicação do termo “conservador” para essa gente [i.e., os entusiastas da expansão do orçamento governamental para que se concretizem grandes aumentos nos gastos militares]. Pois, nos Estados Unidos, durante todo o século XX — um período que inclui quatro grandes guerras no estrangeiro —, os conservadores foram os defensores mais firmes dos orçamentos militares não inflacionários e enfatizaram o comércio mundial em detrimento do nacionalismo americano. Nas duas guerras mundiais, na guerra da Coreia e na guerra do Vietnã, os líderes que promoveram a entrada dos EUA nesses conflitos foram progressistas famosos como Woodrow Wilson, Franklin Roosevelt, Harry Truman e John F. Kennedy. Em todos esses quatro episódios, os conservadores — tanto aqueles que exerciam funções governamentais quanto aqueles que viviam como cidadãos comuns — mostraram-se em grande medida hostis às intervenções; eles, na verdade, defendiam o isolacionismo. (Robert A. Nisbet, Conservatism: Dream and Reality [Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986], p. 103)
E sobre Ronald Reagan em particular: durante a sua administração, o novo conservadorismo e o movimento neoconservador foram fundidos e amalgamados. Nisbet, no tocante a Reagan, observou que a sua “paixão por cruzadas morais e militares dificilmente pode se enquadrar no conservadorismo americano”. (Ibidem, p. 104)
[4] Ver Patrick J. Buchanan, Right from the Beginning (Washington, D. C.: Gateway Regnery, 1990); e idem, The Great Betrayal: How American Sovereignty and Social Justice Are Sacrificed to the Gods of the Global Economy (New York: Little Brown, 1998).
[5] Buchanan e os seus aliados intelectuais almejam abolir o controle do governo federal sobre as questões relativas à educação e devolver esse controle para os estados ou, melhor ainda, para os governos locais. Contudo, os neoconservadores, a maioria dos líderes da chamada Direita Cristã e a “maioria moral” simplesmente desejam substituir a atual elite esquerdista encarregada da educação nacional por outra elite (i.e., por eles próprios) — o que, de uma genuína perspectiva conservadora, é algo ainda pior. “De Burke em diante”, disse Robert A. Nisbet, criticando essa postura, “tem sido um preceito conservador e um princípio sociológico (desde Auguste Comte) a ideia de que a forma mais segura de enfraquecer a família ou qualquer outro grupo social vital é o governo assumir — e, em seguida, monopolizar — as funções históricas da família.” Em contraste, a maior parte da direita americana contemporânea “está menos interessada nas imunidades burkeanas contra o poder governamental do que em colocar o máximo de poder governamental nas mãos daqueles em quem pode confiar. É o controle do poder — e não a diminuição do poder — o que ocupa lugar de destaque”.
Do ponto de vista dos conservadores tradicionais, é ridículo e estúpido usar a família — como os cruzados evangélicos regularmente o fazem — como justificativa em prol das suas incansáveis cruzadas para proibir categoricamente o aborto; para chamar o Ministério da Justiça sempre que ocorre um episódio enquadrado na legislação Baby Doe; para obter permissão constitucional para impor orações “voluntárias” nas escolas públicas — e assim por diante. (Robert A. Nisbet, Conservatism: Dream and Reality [Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986], pp. 104–105)
[6] Samuel T. Francis, “From Household to Nation: The Middle American Populism of Pat Buchanan”, em Chronicles (março de 1996): 12–16; ver também: idem, Beautiful Losers: Essays on the Failure of American Conservatism (Columbia: Universidade do Missouri Press, 1993); e idem, Revolution from the Middle (Raleigh, North Carolina: Middle American Press, 1997).
[7] Samuel T. Francis, “From Household to Nation: The Middle American Populism of Pat Buchanan”, em Chronicles (março de 1996), pp. 12–16.
[8] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics, Scholar’s Edition (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1998), p. 67. “Os príncipes e as maiorias democráticas”, escreve Mises, conduzindo diretamente a esse veredicto,
Embriagam-se com o poder. Ainda que, relutantemente, sejam forçados a admitir que estejam submetidos às leis da natureza, rejeitam a própria noção de lei econômica. Não são eles os legisladores supremos, que legislam como lhes convém? Não são eles que detêm o poder de derrotar os seus adversários? Nenhum senhor guerreiro admite qualquer limite ao seu poder, a não ser aquele que lhe é imposto por uma força militar superior à sua. Sempre existirão penas servis para redigir complacentemente doutrinas adequadas aos detentores do poder. E eles chamam essas deturpações de “economia histórica”.
[9] Sobre a natureza contraproducente de todas as políticas intervencionistas, ver Ludwig von Mises, Uma Crítica ao Intervencionismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010); e idem, Intervencionismo — Uma Análise Econômica (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010).
[10] Ver Allan C. Carlson, Family Questions: Reflections on the American Social Crisis (New Brunswick, N. J. : Transaction Publishers, 1988); idem, The Swedish Experiment in Family Politics (New Brunswick, N. J.: Transaction Publishers, 1990); idem, From Cottage to Work Station: The Family’s Search for Social Harmony in the Industrial Age (San Francisco: Ignatius Press, 1993); e Charles Murray, Losing Ground: American Social Policy, 1950—1980 (New York: Basic Books, 1984).
[11] Ludwig von Mises, Socialism: An Economic and Sociological Analysis (Indianapolis, Indiana: Liberty Fund, 1981), pp. 431–432.
[12] Ver Murray N. Rothbard, The Dangerous Nonsense of Protectionism (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1988); ver também o capítulo 8 deste livro.
[13] “Do ponto de vista conservador”, escreveu Robert A. Nisbet, “a supressão ou a redução acentuada das associações intermediárias na ordem social conjurou a criação, por um lado, das massas atomizadas e, por outro lado, de formas cada vez mais centralizadas de poder político.” (Robert A. Nisbet, Conservatism: Dream and Reality [Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986], p. 100) Durante a Idade Média, explica Nisbet em outra obra (citando o estudo de Pollard sobre Wolsey),
[O poder] encontrava-se diluído — não porque estava distribuído em muitas mãos, mas sim porque ele se originava de muitas fontes independentes. Havia as liberdades da igreja, baseadas em uma lei superior à lei do rei; havia a lei da natureza (o direito natural), que estava insculpida no coração dos homens e não podia ser apagada pelos decretos reais; e havia as prescrições dos imemoriais costumes locais e feudais que estereotipavam uma variedade de jurisdições e impediam a supremacia de uma única vontade. (Robert A. Nisbet, Community and Power [New York: Oxford University Press, 1962], p. 110)
Em distinto contraste,
O estado moderno é monista; a sua autoridade se estende diretamente a todos os indivíduos que se encontram dentro das suas fronteiras. As chamadas imunidades diplomáticas são a última manifestação de um complexo maior de imunidades que uma vez envolveu um número maior de autoridades internas religiosas, econômicas e consanguíneas. Para os efeitos administrativos, o estado pode criar províncias, departamentos, distritos ou “estados” (da mesma forma como o exército se divide em regimentos e batalhões). Porém, assim como o exército, o estado moderno se baseia numa unidade residual de poder. (…) Essa extraordinária unidade de relações no estado contemporâneo, em conjunto com o seu enorme acúmulo de funções, faz com que o controle do estado seja a meta maior (ou o prêmio maior) das modernas lutas pelo poder. Os objetivos das associações econômicas (e de outros interesses) cada vez mais se deslocam da preservação de imunidades favoráveis contra o estado para a captura ou o direcionamento do poder político propriamente dito. (Ibid, p. 103)
[14] Sobre o papel da educação pública nesse assunto, ver, em especial, Murray N. Rothbard, Educação: Livre e Obrigatória (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013).
[15] Sobre a história do movimento libertário, ver George H. Nash, The Conservative Intellectual Movement in America (New York: Basic Books, 1976); Paul Gottfried, The Conservative Movement, edição revista (New York: Twayne Publishers, 1993); Justin Raimondo, Reclaiming the American Right: The Lost Legacy of the Conservative Movement (Burlingame, California: Center for Libertarian Studies, 1993); para conhecer um interessante relato “de dentro” das fases iniciais do desenvolvimento do movimento, ver Jerome Tuccille, It Usually Begins with Ayn Rand (San Francisco: Fox e Wilkes, [1972] 1997).
[16] Ver Murray N. Rothbard, A Ética da Liberdade (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010); idem, Por Uma Nova Liberdade — O Manifesto Libertário (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013); idem, Governo e Mercado (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012); idem, Man, Economy and State (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, [1962] 1993); idem, Economic Thought Before Adam Smith (Cheltenham, U. K.: Edward Elgar, 1995); idem, Classical Economics (Cheltenham, U. K.: Edward Elgar, 1995).
[17] Ver Murray N. Rothbard, A Ética da Liberdade (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010); e Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer, 1993). De maneira resumida, dois argumentos centrais foram formulados em prol dessa alegação. O primeiro, originalmente esboçado por Rothbard, prossegue através de um argumentum a contrario. Se, contrariamente ao princípio da apropriação original (ou da primeira apropriação), uma pessoa A não fosse considerada a proprietária do seu corpo visivelmente apropriado (i.e., verificável demonstrativa e intersubjetivamente), do lugar em que o seu corpo se encontra e dos lugares originalmente (antes de todos os outros) apropriados por ela através do seu corpo, então apenas dois arranjos alternativos existem. Ou outra pessoa, B, que chega mais tarde, deve ser reconhecida como a proprietária do corpo de A e dos lugares originalmente apropriados por A; ou ambas — a pessoa A e a pessoa B — devem ser consideradas co-proprietárias iguais de todos os corpos e de todos os lugares. (A terceira alternativa concebível — ninguém é o dono de qualquer corpo e de qualquer lugar originalmente apropriado — pode ser descartada como uma impossibilidade. A ação exige um corpo e um lugar, e é impossível não agir; portanto, a adoção dessa alternativa implicaria a morte instantânea da humanidade inteira.) No primeiro caso, a pessoa A seria reduzida à condição de escrava da pessoa B, tornando-se objeto de exploração. A pessoa B é a proprietária do corpo e dos lugares originalmente apropriados pelo indivíduo A; e a pessoa A, por sua vez, não é a proprietária do corpo e dos lugares apropriados pelo indivíduo B. Sob esse arranjo, duas classes categoricamente distintas de pessoas são constituídas: escravos (ou Untermenschen) — o caso do indivíduo A — e senhores/mestres (ou Ubermenschen) — o caso do indivíduo B —, às quais diferentes “leis” são aplicadas. Assim, embora esse arranjo seja certamente possível, ele deve ser descartado desde o início porque não é uma ética humana, aplicável de maneira igual e universal a todos na condição de seres humanos (animais racionais). Para que um arranjo (regra) seja uma lei — i.e., um arranjo justo —, é necessário que ele se aplique igual e universalmente a todos. O arranjo em questão manifestamente não preenche esse requisito de universalização. Em alternativa, no segundo caso — a co-propriedade universal e igual —, o requisito de universalização é aparentemente satisfeito. Entretanto, essa alternativa padece de outra (e ainda mais grave) deficiência, porque, se ela fosse adotada, a humanidade inteira imediatamente pereceria — pois toda ação de um indivíduo requer a utilização de recursos (meios) escassos (pelo menos o seu corpo e o lugar em que o seu corpo se encontra). No entanto, se todos os bens pertencessem a todos (co-propriedade), então ninguém — em qualquer momento ou em qualquer lugar — teria a permissão de fazer alguma coisa a não ser que assegurasse anteriormente o consentimento de todos os outros para fazê-la. Porém, como alguém poderia conceder tal consentimento se não fosse o proprietário exclusivo do seu próprio corpo (incluindo as suas cordas vocais) por meio do qual esse consentimento se expressaria? De fato, esse indivíduo, em primeiro lugar, precisaria do consentimento dos outros para poder expressar o seu próprio consentimento, mas esses outros não poderiam expressar o seu consentimento sem terem, em primeiro lugar, recebido o consentimento dele — e assim por diante. Portanto, sobra somente a primeira alternativa — o princípio da apropriação original. Ele preenche o requisito da universalização e é praxeologicamente possível.
O segundo argumento, originalmente elaborado pelo autor deste livro — o qual alcança essencialmente a mesma conclusão —, tem a forma de um teorema da impossibilidade. O teorema procede a partir de uma reconstrução lógica das condições necessárias — Bedingungen der Moglichkeit — dos problemas éticos e de uma definição e uma delimitação exatas da finalidade da ética. Em primeiro lugar, para que surjam problemas éticos deve haver conflito entre agentes separados e independentes (ou, no mínimo, deve existir a possibilidade de existir conflito); e um conflito só pode surgir em relação a recursos (meios) escassos (ou bens “econômicos”). Nenhum conflito é possível em relação a bens superabundantes ou “livres” (como, em circunstâncias normais, o ar que respiramos) e em relação a bens escassos, mas não apropriáveis (como o sol ou as nuvens) — i.e., em relação às “condições” (ao invés dos “meios”) da ação humana. O conflito somente é possível em relação aos meios controláveis (“apropriáveis”), como um determinado pedaço de terra, uma árvore ou uma caverna situados em uma relação espacial-temporal específica e singular vis-à-vis o sol e/ou as nuvens de chuva. Portanto, a tarefa da ética é propor arranjos (normas; regras) relativos à “adequada” utilização de meios escassos (em contraste com a sua utilização “imprópria”). Ou seja, a ética diz respeito à atribuição de direitos de controle exclusivo sobre bens escassos — i.e., de direitos de propriedade —, de modo que o conflito seja evitado. O conflito, todavia, não é uma condição suficiente para os problemas éticos, pois é possível entrar em conflito também com um gorila ou com um mosquito, por exemplo; mas esses conflitos não originam problemas éticos. Os gorilas e os mosquitos representam apenas um problema técnico. É preciso aprender a gerenciar e a controlar com êxito os movimentos dos gorilas e dos mosquitos (assim como é necessário aprender a gerenciar e a controlar os objetos inanimados do meio ambiente). Somente se ambas as partes de um conflito são capazes de trocar proposições (i.e., de argumentar) é que se pode falar de um problema ético; ou seja, somente se o gorila e/ou o mosquito pudessem, em princípio, fazer uma pausa em sua atividade conflituosa e dizer “sim” ou “não” (i.e., apresentar um argumento), uma resposta lhes seria devida. O teorema da impossibilidade procede a partir dessa proposição de esclarecer, em primeiro lugar, o seu status axiomático. Ninguém pode negar, sem cair em contradição performativa, que a racionalidade comum que é demonstrada pela capacidade de engajar-se numa troca de proposições constitui uma condição necessária para os problemas éticos porque essa negação teria de ser ela própria demonstrada na forma de uma proposição. Até mesmo um relativista ético que admite a existência de questões de ordem ética, mas que nega a existência de quaisquer respostas válidas, não pode negar a validade dessa afirmação (a qual, de acordo com isso, também é referida como o “a priori da argumentação”). Em segundo lugar, ressalta-se que tudo que deve ser pressuposto pela argumentação não pode, por sua vez, ser argumentativamente contestado sem que se envolva em uma contradição performativa; e enfatiza-se que, entre esses pressupostos, não apenas existem pressupostos lógicos — como as leis da lógica proposicional (por exemplo, a lei da identidade) —, mas também pressupostos praxeológicos. A argumentação não consiste apenas em proposições em livre flutuação, mas também envolve sempre pelo menos dois distintos argumentadores, um proponente e um oponente — i.e., a argumentação é uma subcategoria da ação humana. Em terceiro lugar, mostra-se, portanto, que o reconhecimento mútuo do princípio da apropriação original, tanto pelo proponente quanto pelo oponente, constitui o pressuposto praxeológico da argumentação. Ninguém pode propor alguma coisa e esperar que o seu adversário se convença da validade dessa proposição ou a negue e proponha alguma outra coisa a menos que o seu direito de controle exclusivo sobre o seu “próprio” corpo originalmente apropriado (cérebro, cordas vocais, entre outras partes) e sobre o lugar em que o seu corpo se encontra e esse mesmo direito do seu adversário já estejam pressupostos e sejam admitidos como válidos. Por último, se o reconhecimento do princípio da apropriação inicial constitui o pressuposto praxeológico da argumentação, então é impossível fornecer uma justificativa proposicional para qualquer outro princípio ético sem que se caia, assim, em contradição performativa.
[18] Ver Russell Kirk, The Conservative Mind (Chicago: Regnery, 1953); e idem, A Program for Conservatives (Chicago: Regnery, 1955).
[19] Sobre Murray N. Rothbard, ver as homenagens a Rothbard: In Memoriam, editado por Llewellyn H. Rockwell Jr. (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1995), especialmente o tributo de Joseph T. Salerno; sobre Ludwig von Mises, ver: Murray N. Rothbard, Ludwig von Mises: Scholar, Creator, Hero (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1988); Jeffrey A. Tucker e Llewellyn H. Rockwell Jr., “The Cultural Thought of Ludwig von Mises”, em Journal of Libertarian Studies, 10, n. 1 (1991); sobre Ayn Rand, ver: Tuccille, It Usually Begins with Ayn Rand; Murray N. Rothbard, The Sociology of the Ayn Rand Cult (Burlingame, California: Center for Libertarian Studies, [1972] 1990); e, da perspectiva dos prosélitos de Rand (“randianos”), ver Barbara Branden, The Passion of Ayn Rand (Garden City, N. Y.: Doubleday, 1986).
[20] Sobre a relação entre o conservadorismo (tradicionalista) e o libertarianismo (racionalista), ver Ralph Raico, “The Fusionists on Liberalism and Tradition”, em New Individualist Review, 3, n. 3 (1964); M. Stanton Evans, “Raico on Liberalism and Religion”, em New Individualist Review, 4, n. 2 (1966); Ralph Raico, “Reply to Mr. Evans”, em ibidem; ver também: Freedom and Virtue: The Conservative—Libertarian Debate, editado por George W. Carey (Lanham, Maryland: University Press of America, 1984).
[21] Embora tenha sido, em última análise, considerada um fracasso pela maioria dos seus antigos protagonistas, a aliança entre o nascente movimento libertário e a Nova Esquerda durante a segunda metade da década de 1960 pode ser compreendida como tendo sido motivada por duas considerações. Por um lado, em meados da década de 1960, o conservadorismo americano foi quase totalmente dominado por William Buckley e pelo seu National Review. Em contraste com o conservadorismo decididamente anti-intervencionista (isolacionista) da Velha Direita, o “novo conservadorismo” defendido por Buckley e pelo National Review — e representado mais visivelmente por Barry Goldwater, o candidato presidencial do Partido Republicano de 1964 — era um movimento fervorosamente pró-guerra, pró-militarismo e até mesmo pró-imperialismo. Com isso, qualquer tipo de aliança entre os libertários e os conservadores estava simplesmente fora de questão. Por outro lado, quando a Nova Esquerda começou a surgir por volta do ano de 1965, ela aparentou ser muito mais libertária em temas fundamentais do que os conservadores por duas razões posteriormente resumidas por Rothbard:
(1) A oposição cada vez mais profunda e extrema [da Nova Esquerda] à guerra do Vietnã, ao imperialismo americano e ao alistamento militar obrigatório (as principais questões políticas desse período), em contraste com o apoio dos conservadores a essas políticas. (2) A sua renegação do estatismo antiquado e da social-democracia da Velha Esquerda conduziu a Nova Esquerda a posições semi-anarquistas, o que parecia ser uma oposição extrema e profunda ao estado corporativista assistencialista e belicista pós-New Deal e ao sistema universitário burocrático dominado pelo estado.
Escrevendo quase uma década mais tarde, Rothbard reconheceu o erro estratégico duplo da sua tentativa de outrora de forjar uma aliança entre os libertários e a Nova Esquerda:
(a) Houve grave superestimação da estabilidade emocional e do conhecimento de economia desses libertários incipientes; e, como corolário, (b) houve grave subestimação da importância do fato de que esse núcleo [libertário] encontrava-se fraco e isolado e de que não havia nenhum movimento libertário do qual falar; portanto, o expediente de empurrar os jovens para uma aliança com um grupo muito mais numeroso e poderoso estava fadado a concretizar uma alta incidência de deserção (…) para o esquerdismo verdadeiro da variedade anarquista/maoísta/sindicalista. (Murray N. Rothbard, Toward a Strategy of Libertarian Social Change [Manuscrito não publicado, 1977], pp. 159, 160–161)
[22] Murray N. Rothbard forneceu o seguinte retrato do “libertário modal” (LM):
Na verdade, o LM é homem. (…) O LM se encontrava na faixa dos seus vinte anos há vinte anos e, agora, encontra-se na faixa dos seus quarenta anos. Isso não é nem tão banal nem tão benigno como parece, pois significa que o movimento realmente não cresceu nos últimos vinte anos. (…) O LM é bastante promissor e bastante versado na teoria libertária. Mas ele não sabe nada e não se interessa pela história, pela cultura, pelo contexto da realidade ou pelos assuntos mundiais. A sua única leitura ou o seu único conhecimento cultural é a ficção científica. (…) O LM, infelizmente, não odeia o estado por vê-lo como o instrumento social exclusivo da agressão organizada contra a pessoa e a propriedade. Em vez disso, o LM um adolescente que se rebela contra todos ao seu redor: em primeiro lugar, contra os seus pais; em segundo lugar, contra a sua família; em terceiro lugar, contra os seus vizinhos; e, por fim, contra a própria sociedade. Ele se opõe especialmente às instituições da autoridade social e cultural: em particular, à burguesia da qual ele proveio, às normas e às convenções burguesas e às instituições da autoridade social (como as igrejas). Para o LM, então, o estado não é o único problema; ele é apenas a parte mais visível e mais detestável das várias instituições burguesas odiadas: vem daí o estusiasmo com que o LM aperta o botão do “questione a autoridade”. E daí se origina também a fanática hostilidade do LM ao cristianismo. Eu costumava pensar que esse ateísmo militante era apenas uma função do randianismo do qual a maioria dos libertários modernos surgiu há duas décadas. Mas o ateísmo não é a chave – pois aquele(a) que anunciasse, em uma reunião libertária, que era um(a) brux(a) ou um(a) adorador(a) do cristal de energia ou de alguma besteira da Nova Era seria tratado(a) com grande tolerância e respeito. Somente os cristãos eram os alvos dos abusos; e, claramente, a razão dessa diferença de tratamento não tinha nada a ver com o ateísmo. Isso tinha tudo a ver com a rejeição (e o desprezo) da cultura burguesa americana; e todo tipo de causa cultural maluca seria promovido a fim de torcer o nariz da odiada burguesia. (…) Na verdade, a atração original do LM para o randianismo era parte integrante da sua revolta adolescente: que maneira de racionalizar e sistematizar a rejeição aos pais, familiares e vizinhos seria melhor do que aderir a um culto que denunciava a religião e que proclamava a superioridade absoluta de si mesmo (do ego) e dos seus cultuados líderes, em contraste com os robóticos “second-handers” que supostamente povoavam o mundo burguês? Um culto que, além disso, conclama os seus prosélitos a desprezar os pais, a família e os associados burgueses e a cultivar a suposta grandeza do próprio ego individual (convenientemente orientado, é claro, pela liderança randiana). (…) O LM, caso tenha uma ocupação no mundo real (como a contabilidade ou a advocacia), é, de um modo geral, um advogado sem casos e um contador sem trabalho. A profissão habitual do LM é a de programador de computador. (…) Os computadores, na realidade, atraem a inclinação científica e teórica do LM; mas eles atraem o seu nomadismo acentuado, a sua necessidade de não ter uma folha de pagamento regular ou uma moradia fixa. (…) O LM também possui o “olhar longínquo” dos fanáticos. Ele está apto a agarrar você pela força na primeira oportunidade e a discorrer extensamente sobre as suas próprias “grandes descobertas” contidas em seu poderoso manuscrito que está chorando para ser publicado – e ele diz que isso é uma conspiração do poder constituído. (…) Mas, acima de tudo, o LM é um vadio, um vigarista e, muitas vezes, um verdadeiro bandido. A sua atitude básica em relação aos outros libertários é “a sua casa é a minha casa”. (…) Em suma, articulem eles ou não essa “filosofia”, os [LMs] são comunistas libertários: alguém que possua propriedade automaticamente tem de “compartilhá-la” com os demais membros da sua “família” libertária ampliada. (Murray N. Rothbard, “Por que paleo?”, em Rothbard – Rockwell Report, 1, n. 2 [maio de 1990]: 4–5; ver também: idem, “Diversity, Death and Reason”, em Rothbard – Rockwell Report, 2, n. 5 [maio de 1991].)
Consultar também: Llewellyn H. Rockwell Jr., The Case for Paleolibertarianism and Realignment on the Right (Burlingame, Califórnia: Center for Libertarian Studies, 1990)
[23] Mais especificamente, os libertários de esquerda (LEs) utilizam — e promovem a sua utilização — o governo federal e os seus tribunais para impingir legislações e regulamentações estaduais e/ou locais discriminatórias e presumivelmente antilibertárias; eles, assim, independentemente da sua intenção, contribuem para o objetivo antilibertário de reforçar o poder do estado central. Correspondentemente, os LEs normalmente veem com bons olhos o presidente Lincoln e o governo da União porque a vitória da União sobre os Confederados secessionistas resultou na abolição da escravatura; mas eles falham em reconhecer que (1) essa forma de alcançar o objetivo libertário da abolição da escravatura deve conduzir a um aumento drástico do poder do governo central (federal) e que (2) a vitória da União na Guerra da Secessão do Sul de fato representa um dos grandes saltos em direção ao crescimento do Leviatã federal moderno — representando, portanto, um episódio profundamente antilibertário da história americana. Ademais, ao passo que os LEs criticam as práticas atuais de “ação afirmativa”, denunciando-as como um sistema cotista, eles não rejeitam a legislação dos chamados direitos civis — da qual essas práticas decorrem—, denunciando-a como plena e fundamentalmente incompatível com a pedra angular da filosofia política libertária (i.e., com o direito de propriedade privada). Pelo contrário: os LEs estão muito preocupados com os “direitos civis”, principalmente com o “direito” de gays e de outros adeptos de estilos de vida alternativos de não serem vítimas de discriminação em matéria de emprego e de habitação. Assim, eles veem com bons olhos a decisão da Suprema Corte (Supremo Tribunal) dos Estados Unidos no caso Brown vs. Board of Education de proibir a segregação e os “direitos civis” protossocialistas do líder Martin Luther King. Com certeza, os LEs normalmente reconhecem a diferença categórica entre a propriedade privada (o setor privado) e a propriedade pública (o governo); e eles, pelo menos em teoria, admitem que os donos de propriedades privadas devem ter o direito de discriminar como bem entenderem em suas próprias propriedades. Mas os LEs notadamente expressam uma preocupação igualitarista com a concepção nobre — mas ilusória e enganosa — da “extensão progressiva da dignidade” (em vez de direitos de propriedade) para “as mulheres e as pessoas de religiões diferentes e de raças diferentes” (David Boaz, p. 16, referência abaixo; a ênfase é minha), o que os induz a aceitar o princípio da “não discriminação”, mesmo que esteja restrito e seja aplicado apenas aos bens públicos e ao setor público da economia. (Por esse motivo, os LEs defendem uma política de imigração “livre” ou não discriminatória.) No plano da teoria, os LEs, portanto, cometem o erro de considerar os bens públicos como “terras” sem dono liberadas à apropriação original (homesteading) universal e irrestrita (embora, na realidade, todos os bens públicos tenham sido financiados por pagadores de impostos domésticos) ou como propriedades “comunais” abertas a todos os cidadãos nacionais em igualdade de condições (embora, na verdade, alguns cidadãos tenham pago mais impostos do que outros — e embora alguns cidadãos, i.e., aqueles cujos salários ou vencimentos foram pagos com os recursos dos impostos [fundos públicos], não tenham pago imposto algum). Pior ainda: ao aceitar o princípio da não discriminação no âmbito da propriedade pública, os LEs, na prática, contribuem para a ampliação do poder estatal e para a diminuição e o enfraquecimento dos direitos de propriedade privada — pois, no atual mundo dominado pelo estado, a linha divisória entre o setor privado e o setor público tornou-se cada vez mais confusa. Todas as propriedades privadas são delimitadas e rodeadas por estradas e ruas públicas; praticamente todos os negócios vendem alguns dos seus produtos para alguma agência do governo ou ao longo das fronteiras dos estados; e inúmeras empresas e organizações privadas (como, por exemplo, as universidades privadas) recebem regularmente financiamento governamental. Dessa forma, a partir da perspectiva dos agentes estatais, não há mais nada que seja genuinamente “privado” e que, portanto, não esteja dentro do alcance do governo. Com base nessa confusão difusa entre o estado e a propriedade pública e as empresas privadas e a propriedade privada — e dado o exclusivo (coercitivo) poder de negociação do governo —, pode-se prever com segurança que a política da “não discriminação” não continuará por muito tempo sendo um mero princípio de política pública; ela se tornará cada vez mais um princípio geral (e, em última análise, universal), estendendo-se a — e englobando — tudo e todos, o público e o privado. (Caracteristicamente, os LEs normalmente são também defensores da proposta de vouchers escolares de Milton Friedman, ignorando, portanto, ao que parece, que a execução desse programa de vouchers invariavelmente conduziria à expansão do controle governamental da educação — além das escolas públicas, o governo controlaria as escolas privadas e destruiria todos os direitos de efetuar decisões autônomas que essas escolas atualmente ainda possuem.)
Para conhecer exemplos representativos de pensamento libertário de esquerda, consultar, por exemplo, Clint Bolick, Grassroots Tyranny: The Limits of Federalism (Washington, D. C.: Cato Institute, 1993); idem, The Affirmative Action Fraud: Can We Restore the American Civil Rights Vision? (Washington, D. C.: Cato Institute, 1996); e David Boaz, Libertarianism: A Primer (New York: Free Press, 1997); para conhecer uma refutação das visões esquerdistas libertárias de Bolick e de Boaz a partir da perspectiva direitista ou “paleo-libertária”, ver Murray N. Rothbard, “The Big Government Libertarians: The Anti-Left-Libertarian Manifesto”, em Rothbard—Rockwell Report, 4, n. 12 (dezembro de 1993); idem, “Big Government Libertarians”, em Rothbard—Rockwell Report, 5, n. 11 (novembro de 1994); e a análise de Jeffrey A. Tucker do livro de Boaz em Journal of Libertarian Studies, 13, n. 1 (1997).
[24]“Todo proprietário”, elaborou Murray N. Rothbard,
Deve ter o direito absoluto de vender, alugar ou arrendar (leasing) o seu dinheiro ou os seus outros bens a qualquer pessoa que ele escolha — o que significa que ele possui o direito absoluto de “discriminar” tudo aquilo que não o agrada. Se eu tenho uma fábrica, se eu desejo contratar apenas albinos de 1,80 metro de altura e se eu consigo encontrar funcionários dispostos, eu devo ter o direito de fazer isso, mesmo que eu possa muito bem perder todas as minhas posses em razão disso. (…) Se eu possuo um complexo de apartamentos e desejo alugá-lo apenas para suecos sem filhos, eu devo ter o direito de fazê-lo. E assim por diante. A proibição de tal discriminação — bem como as cláusulas restritivas que a confirmavam — foi o pecado original do qual todos os outros problemas decorreram. Uma vez adotado esse princípio, todo o resto segue — assim como a noite segue o dia. (…) Pois, se é certo e justo proibir a minha discriminação contra os negros, então é igualmente certo e justo, para o governo, descobrir se eu estou discriminando ou não; e, nesse caso, é perfeitamente legítimo que ele imponha quotas para testar a proposição. (…) Então, qual é o remédio para tudo isso? (…) O que tem de ser feito é: (1) repudiar totalmente os “direitos civis” e as leis anti-discriminação; e, enquanto isso, de forma separada, mas paralela, (2) tentar privatizar tudo aquilo que for possível. (Murray N. Rothbard, “Marshall, Civil Rights and the Court”, em Rothbard—Rockwell Report, 2, n. 8 [agosto de 1991]: 4 e 6)
[25]Para evitar qualquer mal-entendido, pode ser útil salientar que o aumento previsto na discriminação em um mundo puramente libertário não implica que a forma e a dimensão da discriminação serão as mesmas ou similares em todo o globo. Pelo contrário: um mundo libertário poderia ser — e provavelmente o seria — um mundo com uma grande variedade de comunidades localmente separadas que se engajariam em práticas de discriminação nitidamente diferentes (e de alcances diversos). Explica Murray N. Rothbard:
Em um país (ou um mundo) totalmente de propriedades privadas — incluindo as ruas — e de bairros contratuais privados constituídos de donos de propriedades privadas, esses proprietários podem fazer qualquer tipo de contrato de vizinhança que desejarem. Na prática, então, o país seria um verdadeiro “mosaico belíssimo” (…), variando de bairros contratuais de arruaceiros do tipo “Greenwich Village” a bairros conservadores socialmente homogêneos do tipo “WASP” (White, Anglo-Saxon and Protestant — “Branco, Anglo-Saxão e Protestante”). Lembre-se de que quaisquer obras e quaisquer convênios seriam mais uma vez plenamente legais e aplicáveis, sem as restrições que a ingerência governamental lhes impõe. Portanto, considerando a questão das drogas, se um bairro proprietário acordasse que ninguém poderia usar drogas e Jones violasse o contrato e as usasse, os seus companheiros contratantes da comunidade poderiam simplesmente executar o contrato e expulsá-lo. Ou, já que nenhum contrato realizado com antecedência pode permitir todas as possíveis circunstâncias, suponha-se que Smith tenha se tornado tão pessoalmente odioso, insolente e detestável que os seus companheiros proprietários do bairro desejem expulsá-lo. Eles, então, teriam de pagar-lhe pela renúncia ao direito de comportar-se assim — provavelmente em termos definidos contratualmente com antecedência de acordo com alguma cláusula de “detestabilidade”. (Murray N. Rothbard, “The ‘New Fusionism’: A Movement For Our Tune”, em Rothbard—Rockwell Report, 2, n. 1, [janeiro de 1991]: 9–10)
Não obstante a variedade de políticas discriminatórias promovidas por diversas comunidades proprietárias, conforme será argumentado mais adiante no texto acima, em prol da autopreservação cada uma dessas comunidades terá de reconhecer e aplicar algumas limitações rigorosas e até mesmo inflexíveis em relação à sua tolerância interna; ou seja, nenhuma comunidade proprietária pode ser tão “tolerante” e “indiscriminatória” quanto os libertários de esquerda desejam que cada lugar o seja.
[26] Sobre isso, consultar, em particular, Ludwig von Mises, Ação Humana — Um Tratado de Economia (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), especialmente o capítulo 9; e Joseph T. Salerno, “Ludwig von Mises as Social Rationalist”, em Review 01 Austrian Economics, 4 (1990).
[27] Sobre esse tema, ver Spencer H. MacCallum, The Art of Community (Menlo Park, California: Institute for Humane Studies, 1970). “Na medida em que os indivíduos possuem propriedade em partes em vez de em totalidades”, observa MacCallum,
Os seus interesses colidirão com os interesses dos outros e com o interesse comum em qualquer proposta, afetando os valores da terra de forma desigual. No entanto, evitar tais medidas significaria abandonar completamente o planejamento e a coordenação dos usos da terra e, em última análise, destruir todos os valores da terra. (…) O que agrava ainda mais a situação é a ausência de liderança eficaz para arbitrar os conflitos ou para assegurar o melhor do pior. Falta alguém que, embora não se identifique com qualquer interesse especial na comunidade, nutra ao mesmo tempo um forte interesse pelo sucesso da comunidade como um todo. (p. 57)
A propriedade da terra não pode ser deslocada para um ambiente mais favorável à sua utilização. O seu valor como um bem econômico decorre dos seus entornos. A sua melhor utilização, portanto, depende da reorganização do ambiente, para que este esteja em conformidade com ela. (…) Uma vez que os usos possíveis de uma localidade dependem dos usos do terreno circundante (em última análise, todas as ações humanas implicam, de uma forma ou de outra, o uso da terra), é essencial, para a sua utilização mais produtiva, que o uso das terras circundantes acessíveis seja coordenado. Isso raramente pode ser feito com eficiência sob uma multiplicidade de autoridades distintas. Se os terrenos circundantes pertencem a muitos indivíduos, o representante dos vários proprietários pode não ser capaz de acomodar as suas diferentes utilizações em um plano abrangente, ficando à mercê de muitos fatores (em geral fortuitos) que afetam a capacidade e a vontade de cada um. Eles são vizinhos de circunstância, não de conveniência. (p. 78)
[28] Para evitar qualquer mal-entendido, o termo “arrendar” (leasing) é usado aqui para incluir a venda de tudo, menos do título pleno (completo) de propriedade sobre essa coisa. Assim, por exemplo, o empresário pode vender todos os direitos de uma casa e de um pedaço de terra, exceto o direito de construir uma edificação acima de uma certa altura, de erigir outra conforme um determinado projeto ou de usar a terra para fins que não sejam residenciais (e assim por diante); tais direitos são retidos pelo proprietário vendedor. Sobre isso, consultar Murray N. Rothbard, The Ethics of Liberty (New York: New York University Press, 1998), p. 146.
[29] “A comunidade proprietária não é uma exclusividade da nossa época e da nossa cultura”, explica MacCallum.
As suas raízes, na história humana, são profundas. (…) No mundo primitivo, no âmbito das famílias (lares familiares), a terra é comumente administrada pelo homem mais velho na linha de sucessão patrimonial. No âmbito dos grupos de famílias, ela pode ser administrada pelo chefe de um clã, de uma linhagem ou de um outro grupo, o qual é tipicamente o homem mais velho do grupo de parentesco de maior envergadura. E, do mesmo modo, encontramos isso no nível da aldeia. Nas palavras do antropólogo Melville Herskovits, este é “o padrão familiar de propriedade da terra da aldeia confiada ao — e administrada pelo — chefe da aldeia em nome dos seus membros, nativos ou adotados, e de propriedade familiar, cujo administrador é o chefe da família”. Esse sistema é às vezes chamado de senhorialismo, pois a autoridade distributiva é exercida por um determinado membro sênior do grupo de parentesco (cuja envergadura e cujo nível moldam a organização em questão). (Spencer H. MacCallum, The Art of Community [Menlo Park, California: Institute for Humane Studies, 1970], p. 69)
[30] Spencer H. MacCallum, The Art of Community (Menlo Park, California: Institute for Humane Studies, 1970), páginas 63, 66 e 67. Além disso,
Uma vez que as titularidades são organizadas como participações em uma única propriedade, torna-se o interesse comum dos proprietários redesenvolver e gerir o conjunto como um todo da forma mais produtiva, até mesmo replanejando do antigo padrão fixo de ruas e de áreas comuns. Torna-se o seu único interesse fornecer não apenas o melhor ambiente físico, mas também o melhor ambiente social — por meio de um gerente eficaz que possa trabalhar e servir discretamente na condição de facilitador, pacificador e catalisador ativo, promovendo as condições mais livres possíveis para os seus ocupantes perseguirem os seus respectivos interesses. (p. 59)
[31] “Em todos os níveis da sociedade, tanto nas primitivas quanto nas modernas”, observa MacCallum sobre a importância da exclusão para a manutenção da ordem social, “o exílio é o remédio natural e automático para o inadimplemento e a fraude.”
Com a tomada das suas posses (a desapropriação), ele [o chefe da aldeia] exila os indivíduos que se tornaram intoleráveis (assim como o gerente de um shopping center deixa de renovar o arrendamento de um inquilino incompatível). Não obstante a rara ocorrência disso nessa aldeia, em comparação com as modernas comunidades proprietárias, o controle dos membros é ainda um requisito funcional da vida comunitária, devendo ser feito de maneira regular. (p. 70)
E, numa nota de rodapé a esse trecho, acrescenta ele:
O antropólogo Raymond Firth registra uma expressão de exílio da sociedade de Tikopia (ilha do Pacífico), a qual, em sua simplicidade, evoca o pathos do poema anglo-saxão The Wanderer [“O Peregrino”]. Na medida em que todo o território pertencia aos chefes, o exilado não tinha outra opção que não fosse colocar a sua canoa no mar e seguir rumo ao suicídio ou à vida em outras ilhas na condição de estrangeiro. A expressão que denota a pessoa que está exilada traduz-se desta forma: o indivíduo que “não tem lugar para ficar”. (Spencer H. MacCallum, The Art of Community [Menlo Park, California: Institute for Humane Studies, 1970], p. 77)
[32] Ver Konrad Lorenz, Civilized Man’s Eight Deadly Sins (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1974), cap. 7; ver também: Sigmund Freud, Civilization and its Discontents [“O Mal-Estar Na Civilização”].
[33] Ver também Helmut Schelsky, Die Arbeit tun die anderen. Klassenkampf und Priesterherrschaft der Intellektuellen (Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1977).
Tradução de Marcelo Werlang de Assis
Melhor artigo que li em vida.
Não achei em lugar nenhum alguma referência ou link indicando o texto original! Qual o nome, e onde foi publicado?
Vlad, é a tradução do capítulo 10 do livro “Democracia, O Deus que Falhou” de Hans-Hermann Hoppe. Eu li o livro agora no final de 2018, é muito bom! O melhor livro que eu já li na minha vida!
Podemos considerar que, a atual guerra às drogas é ilegítima porque o financiamento dela é ilegítimo e, além disso, usuários, não-usuários e vendedores são forçosamente integrados em um mesmo território?
E sob um sistema puramente libertário, tentativas por parte de um administrador de terras de coibir o uso de drogas em sua propriedade, através da proibição da entrada de usuários, seria totalmente legítima?
Sobre o caso Silk Road: Ele representou uma luta importante e legítima contra a proibição de drogas pelo estado que rouba a sociedade e integra coercitivamente os indivíduos. Mas sob o ordenamento de Hoppe, sites desse tipo iriam dar certo apenas em propriedades que permitissem usuários de drogas.
Minhas considerações estão corretas?
Hoppe é patético. O ato de remoção física é um atentado a propriedade privada.
Já é o segundo artigo que vejo aqui e percebo que o site deveria se chamar instituto hoppe, e não Rothbard
kkkkkkk: Hoppefobia
Então em resumo o conservadorismo é só um nome mais curto para uma teocracia cristã.