Thursday, November 21, 2024
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O direito de ignorar o estado

[Esta é a tradução do capítulo 19 de Social Statics, de 1851, “The Right to Ignore the State”.]

§1

Como corolário à proposição de que todas as instituições devem ser subordinadas à lei da igual liberdade, nós não temos escolha além de admitir o direito do cidadão de adotar uma condição de proscrição voluntária. Se todo homem tem a liberdade de fazer o que desejar, desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem, então ele é livre para abandonar ligações com o estado — para recusar sua proteção e para se negar a custear seu suporte. É auto-evidente que, ao agir dessa forma, ele de forma alguma agride a liberdade dos outros, pois sua posição é passiva, e, enquanto passivo, ele não pode se tornar um agressor. É igualmente auto-evidente que ele não pode ser compelido a continuar a fazer parte de uma corporação política sem uma transgressão da lei moral, vendo que a cidadania envolve o pagamento de impostos; e tirar a propriedade de um homem contra sua vontade é uma violação de seus direitos. O governo sendo apenas um agente empregado em comum por um número de indivíduos para lhes assegurar certas vantagens, própria da ligação com ele implica que cada um deva dizer se ele vai ou não empregar esse agente. Se qualquer um se determinar a ignorar essa confederação de segurança mútua, nada pode ser dito a não ser que ele perde todo direito a seus bons serviços e expõe a si mesmo ao perigo dos maus tratos — algo que ele tem a liberdade de fazer, se quiser. Ele não pode ser coagido a entrar numa combinação política sem uma transgressão da lei da igual liberdade; ele pode abandoná-la sem cometer tal transgressão e, portanto, ele tem o direito de fazer isso.

§2

“Nenhuma lei humana é de qualquer validade se contrária à lei da natureza; e essas são válidas pois derivam todas as suas forças e suas autoridades mediata ou imediatamente deste original.” Assim escreve Blackstone[1], a quem deixe que toda honra seja dada por ter se adiantado tanto às ideias de seu tempo e, de fato, podemos dizer de nosso tempo. Um bom antídoto, este, para as superstições políticas que tão amplamente prevalecem. Uma boa restrição ao sentimento de veneração do poder que ainda nos induz erradamente a aumentar as prerrogativas dos governos constitucionais, como já nos induziu a aumentar o dos monarcas. Deixe os homens aprenderem que uma legislatura não é “nosso Deus sobre a terra”, embora, pela autoridade que atribuem a ela e as coisas que esperam dela, eles parecem pensar que é. Deixe-os aprender, em vez disso, que ela é uma instituição servindo a um propósito puramente temporário, cujo poder, quando não usurpado, é, no máximo, emprestado.

Além disso, de fato, nós não vimos que o governo é essencialmente imoral? Não é ele o descendente do mal, trazendo todas as marcas de sua origem? Ele não existe porque o crime existe? Ele não é forte — ou, como dizemos, despótico — quando o crime é grande? Não há mais liberdade — isto é, menos governo — quando o crime diminui? E não deve o governo cessar quando cessa o crime, pela própria falta de objetos sobre os quais executar sua função? O poder autoritário não existe apenas por causa do mal, mas através do mal. A violência é empregada para mantê-lo, e toda violência envolve criminalidade. Soldados, policiais e carcereiros; espadas, cassetetes e correntes são instrumentos para infligir dor; e toda inflição de dor é, em abstrato, errada. O estado emprega armas más para subjugar o mal e é igualmente contaminado pelos objetos com os quais lida e pelos meios com os quais trabalha. A moralidade não pode reconhecê-lo, pois a moralidade, sendo simplesmente uma afirmação da lei perfeita, não pode aprovar nada que nasça e viva através de transgressões dessa lei. Por conseguinte, a autoridade legislativa não pode nunca ser ética — ela precisa sempre ser meramente convencional. Portanto, há uma certa inconsistência na tentativa de determinar a posição, estrutura e a condução corretas de um governo pelo apelo aos princípios fundamentais da retidão. Pois, como foi apontado, os atos de uma instituição a qual é tanto em natureza quanto em origem imperfeita não pode se adequar a lei perfeita. Tudo o que podemos fazer é determinar, em primeiro lugar, em quais atitudes uma legislatura precisa ter em relação à comunidade para evitar que sua existência seja apenas uma incorporação do errado; em segundo lugar, de qual forma ela precisa ser constituída para exibir a menor incongruência possível com a lei moral; e, em terceiro lugar, a qual esfera suas ações devem ser limitadas para evitar que ela multiplique aquelas transgressões da equidade que ela foi estabelecida para impedir.

A primeira condição a ser preenchida antes que uma legislatura possa ser estabelecida sem violar a lei da igual liberdade é o reconhecimento do direito agora em discussão — o direito de ignorar o estado.[2]

§3

Os partidários do puro despotismo podem naturalmente acreditar que o controle do estado seja ilimitado e incondicional. Eles, que afirmam que os homens são feitos para os governos e não os governos para os homens, podem consistentemente sustentar que ninguém possa se retirar do âmbito da organização política. Mas aqueles que sustentam que as pessoas são a única fonte legítima de poder — que a autoridade legislativa não é original, mas delegada — não podem negar o direito de ignorar o estado sem dizer um absurdo.

Pois, se a autoridade legislativa é delegada, se segue que aqueles por quem ela o é são os mestres daqueles para quem ela é conferida; se segue, além disso, que, como mestres, eles conferem a dita autoridade voluntariamente; e isso implica que eles podem dá-la ou retirá-la como lhes aprouverem. Chamar de delegação aquela que é desviada dos homens, quer queiram, quer não, não faz sentido. Mas o que aqui é verdade para todos coletivamente é igualmente verdadeiro para cada um separadamente. Como um governo somente pode agir pelo povo quando seu puder é concedido por ele, então só pode também agir pelo indivíduo quando seu poder é concedido por ele. Se A, B e C debatem se devem empregar um agente para executar para eles certo serviço, e se embora A e B concordem com isso, C discorde, C não pode ser equitativamente tornado uma parte no acordo a despeito de si mesmo. E isto precisa ser igualmente verdade para trinta como para três; e se de trinta, por que não trezentos, três mil ou três milhões?

§4

Das superstições políticas a que foram aludidas, nenhuma é tão universalmente difundida como a noção de que as maiorias são onipotentes. Sob a impressão de que a preservação da ordem sempre requererá que o poder seja dominado por algum partido, o senso moral de nosso tempo sente que tal poder não pode ser devidamente conferido para ninguém além da maior parte da sociedade. Ela interpreta literalmente o dito de que “a voz do povo é a voz de Deus”, e, transferindo para um a sacralidade do outro, ela conclui que da vontade do povo — isto é, da maioria — não pode haver apelação. Contudo, esta crença é errônea.

Suponha, pelo argumento, que, atingida por algum pânico malthusiano, a legislatura devidamente representando a opinião pública decretasse que todas as crianças nascidas durante os próximos dez anos devessem ser afogadas. Alguém pensa que esse decreto seria justificável? Se não, há evidentemente um limite ao poder da maioria. Suponha, novamente, que de duas raças vivendo juntas — os celtas e os saxões, por exemplo —, a mais numerosa determinasse que os outros devessem ser seus escravos. Seria válida a autoridade do maior número em tal caso? Se não, há algo a qual sua autoridade deve ser subordinada. Suponha, uma vez mais, que todos os homens que tenham rendimentos abaixo de 50 libras por ano resolvessem reduzir todos os rendimentos acima daquela quantia ao nível deles e que os excessos fossem apropriados para propósitos públicos. Essa resolução poderia ser justificada? Se não, precisa ser pela terceira vez confessado que há uma lei à qual a voz popular precisa se curvar. Qual, então, é essa lei senão a lei da pura equidade — a lei da igual liberdade? Essas limitações, que todos colocariam à vontade da maioria, são exatamente as limitações estabelecidas por aquela lei. Nós negamos o direito da maioria de matar, escravizar ou roubar, simplesmente porque o assassinato, a escravização e o roubo são violações daquela lei — violações grosseiras demais para serem negligenciadas. Mas se grandes violações dela são erradas, então também são as menores. Se a vontade dos muitos não pode sobrepor-se ao primeiro princípio da moralidade nesses casos, não pode em nenhum. De forma que, insignificante como for a minoria e desimportante como seja a violação de seus direitos, nenhuma violação desse tipo é permissível.

Quando nós tornarmos nossa constituição puramente democrática, pensa para si o sincero reformador, nós teremos colocado o governo em harmonia com a justiça absoluta. Tal crença, embora talvez necessária para esta era, é profundamente errada. De forma alguma a coerção pode ser tornada justa. A forma mais livre de governo é apenas a forma menos questionável. O domínio dos muitos pelos poucos chamamos de tirania; o domínio dos poucos pelos muitos também é tirania, embora de um tipo menos intenso. “Você deve agir como nós desejamos, não como você deseja” é em todo caso a declaração; e se os cem a fazem para os noventa e nove, em vez dos noventa e nove para os cem, é apenas uma fração menos imoral. Dos dois partidos, qualquer um que faça essa declaração necessariamente fere a lei da igual liberdade: a única diferença sendo que num caso é ferida pelas pessoas que fazem parte das noventa e nove, enquanto no outro, pelas pessoas das cem. E o mérito da forma democrática de governo consiste somente nisso, que ele viole os direitos do menor número.

A própria existência de maiorias e minorias é indicativa de um estado imoral. O homem cujo caráter se harmoniza com a lei moral nós vemos ser aquele que pode obter a completa felicidade sem diminuir a felicidade dos outros (cap. III). Mas a aplicação de arranjos públicos pelo voto implica uma sociedade consistida de homens que, caso contrário, seriam constituídos de outra forma; implica que os desejos de alguns não podem ser satisfeitos sem o sacrifício dos desejos dos outros; implica que em sua busca pela felicidade a maioria inflige uma certa infelicidade sobre a minoria; implica, portanto, uma imoralidade orgânica. Assim, de outro ponto de vista, nós novamente percebemos que mesmo em sua forma mais equitativa é impossível para o governo se dissociar do mal; e, além disso, que a não ser que o direito de ignorar o estado seja reconhecido, seus atos devem ser essencialmente criminosos.

§5

Que um homem seja livre para abandonar os benefícios e os encargos da cidadania pode-se inferir das admissões das existentes autoridades e da opinião corrente. Despreparados como provavelmente estão para uma doutrina tão extrema como a aqui mantida, os radicais de nossos dias inconscientemente professam suas crenças numa máxima que obviamente incorpora esta doutrina. Nós não continuamente os ouvimos citar a asserção de Blackstone de que “nenhum súdito da Inglaterra pode ser forçado a pagar quaisquer contribuições ou impostos mesmo para a defesa do reino ou para o sustento do governo, tais são impostos por seu próprio consentimento, ou pelo consentimento de seu representante no parlamento”? E o que isso significa? Significa, dizem eles, que todos os homens deveriam ter um voto. Verdade: mas significa muito mais. Se existe qualquer sentido nas palavras ele é uma distinta enunciação do próprio direito agora defendido. Ao afirmar que um homem não possa ser taxado a não ser que tenha dado direta ou indiretamente seu consentimento, ele afirma que pode se recusar a ser taxado; e se recusar a ser taxado é cortar toda conexão com o estado. Talvez seja dito que esse consentimento não é específico, mas geral, e que deve-se entender que o cidadão assentiu a tudo que seu representante fizer quando votou nele. Mas suponha que ele não votou nele; e, pelo contrário, fez tudo que era capaz para eleger algum outro que sustenta opiniões opostas — o que ocorre? A resposta provavelmente será que, tomando parte em tal eleição, ele tacitamente concordou em obedecer às decisões da maioria. Mas como, se ele não votou? Por que então ele não pode justificadamente reclamar de qualquer imposto, vendo que ele não fez nenhum protesto contra sua imposição. Então, curiosamente, parece que ele deu o seu consentimento por qualquer forma que agiu — se disse sim, se disse não ou se permaneceu neutro! Uma esquisita doutrina, esta. Aqui temos um infeliz cidadão a quem se pede que dê dinheiro a uma certa vantagem oferecida; e se ele empregar ou não os únicos meios para expressar sua recusa, nos é dito que ele praticamente concorda; se apenas o número de outros que concordam é maior que o número daqueles que discordam. E assim nós somos introduzidos ao original princípio de que o consentimento de A a alguma coisa não é determinado pelo que A diz, mas pelo que B venha a dizer!

Aqueles que citam Blackstone devem escolher entre esse absurdo e a doutrina demonstrada anteriormente. Ou sua máxima implica o direito de ignorar o estado ou não faz o menor sentido.

§6

Há uma estranha heterogeneidade em nossas crenças políticas. Sistemas que tiveram seus apogeus e que estão começando lá e aqui a ver a luz do dia são improvisados com noções modernas completamente diferentes em qualidade e cor; e os homens seriamente mostram esses sistemas, os vestem e vivem neles sem consciência da grotesquidão deles. Este estado de transição em que estamos, que compartilha igualmente do passado e do futuro, dá origem a teorias híbridas exibindo a mais estranha união dos antigos despotismos e da liberdade vindoura. Aqui há tipos da antiga organização curiosamente disfarçados de germes da nova — peculiaridades demonstrando adaptação a um estado precedente modificados por rudimentos que profeciam algo que está por vir —, fazendo uma mistura tão totalmente caótica de relacionamentos que não há como dizer a que classe esses nascimentos da nossa era devem ser referidos.

Como as ideias precisam necessariamente carregar a marca do tempo, é inútil lamentar o contentamento com o qual essas crenças incongruentes são sustentadas. Caso contrário, pareceria infeliz que os homens não seguissem até o fim as cadeias de raciocínio que levaram a essas modificações parciais. No caso presente, por exemplo, a consistência os forçaria a admitir que, em outros pontos além daquele que acabou de se notar, eles sustentam opiniões e usam argumentos nos quais o direito de se ignorar o estado está envolvido.

Pois qual é o significado de Discordância? Já se foi o tempo em que a crença de um homem e seu modo de culto fossem tão determinados pela lei quanto seus atos seculares; e, de acordo com as provisões existentes em nosso livro-estatuto, ainda são. Graças ao crescimento de um espírito Protestante, entretanto, nós ignoramos o estado nesta questão — totalmente em teoria e parcialmente na prática. Mas como fizemos isso? Assumindo uma atitude a qual, se consistentemente mantida, implica um direito de ignorar o estado totalmente. Observe as posições das duas partes. “Este é o seu credo”, diz o legislador, “você deve acreditar e abertamente professar o que está aqui estabelecido.” “Eu não farei nada do tipo”, responde o não-conformista, “eu prefiro ir para a prisão.” “Suas ordens religiosas”, prossegue o legislador, “devem ser as que prescrevemos. Você deve ir às igrejas que dotamos e adotar as cerimônias delas.” “Nada me induzirá a fazer isso”, é a resposta, “eu nego totalmente seu poder de ditar a mim essas questões, e pretendo resistir até o fim.” “Finalmente”, adiciona o legislador, “nós requereremos que você pague tais somas de dinheiro para o suporte destas instituições religiosas como acharmos apropriado.” “Nenhum centavo você terá de mim”, exclama nosso resoluto Independente, “mesmo se eu acreditasse nas doutrinas de sua igreja (nas quais eu não acredito), eu ainda assim me rebelaria contra sua interferência; e se você me tomar minha propriedade, isso será feito com o uso da força e sob protestos.”

Agora, a que esse procedimento equivale quando considerado em abstrato? Ele equivale a uma afirmação pelo indivíduo do direito de exercer uma de suas faculdades — o sentimento religioso — sem permissão ou impedimento, e sem qualquer limite além daquele estabelecido pelas iguais reclamações dos outros. E o que significa ignorar o estado? Simplesmente uma afirmação do direito similar de exercer todas as suas faculdades. Um é apenas uma expansão do outro — tem a mesma base que o outro — e deve ter validade ou não junto com o outro. Os homens de fato falam de liberdades civis e religiosas como se fossem coisas diferentes: mas a distinção é arbitrária. Elas são partes do mesmo todo e não podem ser filosoficamente separadas.

“Sim, podem”, interpõe um opositor, “a afirmação de uma é imperativa por ser um dever religioso. A liberdade de cultuar Deus da forma que parece correto é uma liberdade sem a qual o homem não pode executar o que acredita ser comandos Divinos e, portanto, a consciência requer que ele a mantenha.” Nada mais verdadeiro; mas e se o mesmo puder ser asseverado com relação a todas as outras liberdades? E se a manutenção delas também for uma questão de consciência? Nós não vimos que a felicidade é a vontade Divina — que apenas exercendo nossas faculdades essa felicidade é alcançável — e que é impossível exercê-las sem a liberdade? (cap. IV) E se essa liberdade para o exercício das faculdades for uma condição sem a qual a vontade Divina não puder ser executada, a preservação da qual é, pelo que diz nosso opositor, um dever. Ou, em outras palavras, parece que não apenas a manutenção da liberdade de ação pode ser uma questão de consciência mas deve sê-la. E assim é demonstrado claramente que as reivindicações de ignorar o estado em matérias religiosas e seculares são em essência idênticas.

A outra razão comumente atribuída para a não-conformidade admite similar tratamento. Além de resistir ao que o estado ditar em abstrato, o discordante resiste a ele através da desaprovação das doutrinas ensinadas. Nenhuma injunção legislativa o fará adotar o que ele considera ser uma crença errônea; e, tendo em mente seu dever para com os outros homens, ele se recusa a ajudar através de suas riquezas a disseminação dessa crença errônea. Essa posição é perfeitamente inteligível. Mas ela é uma posição a qual ou faz com que seus defensores também defendam a não-conformidade civil ou os deixa num dilema. Pois por que eles se recusam a auxiliar a disseminação do erro? Porque o erro é adverso à felicidade humana. E sobre quais bases qualquer parte da legislação secular é desaprovada? Pela mesma razão — porque é pensada como adversa à felicidade humana. Como então pode-se mostrar que o estado deve ser resistido num caso e não no outro? Alguém afirmará deliberadamente que se o governo exigir nosso dinheiro para ajudar a ensinar o que consideramos a produção do mal, nós devemos nos recusar, mas que se o dinheiro for para o propósito de fazer o que pensamos que produzirá o mal, nós não devemos resistir? E, no entanto, tal é a proposição daqueles que reconhecem o direito de ignorar o estado em questões religiosas, mas o negam em questões civis.

§7

A substância deste capítulo novamente nos lembra da incongruência entre uma lei perfeita e um estado imperfeito. A praticidade do princípio aqui mostrado varia diretamente em relação à moralidade social. Numa comunidade totalmente viciosa, sua admissão produziria uma anarquia. Numa comunidade completamente virtuosa sua admissão seria tanto inócua quanto inevitável. O progresso em direção a uma condição de saúde social — uma condição, isto é, na qual as medidas curativas da legislação não serão mais necessárias — é um progresso rumo a uma condição na qual essas medidas curativas serão deixadas de lado e a autoridade que as prescreve será desconsiderada. As duas mudanças são de necessidade coordenada. Esse sistema moral cuja supremacia fará a sociedade harmônica e o governo desnecessário é o mesmo senso moral o qual faz com que cada homem afirme sua liberdade ao ponto mesmo de ignorar o estado — é o mesmo senso moral o qual, detendo a maioria de coagir a minoria, eventualmente tornará o governo impossível. E como as meras manifestações diferentes do mesmo sentimento devem ter uma relação constante umas com as outras, a tendência de repudiar os governos crescerá apenas no mesmo ritmo que os governos se tornarem desnecessários.

Que ninguém fique alarmado, portanto, com a promulgação da doutrina acima mencionada. Há muitas mudanças para serem feitas antes que ela possa começar a exercer muita influência. Provavelmente um longo tempo vai passar antes que o direito de ignorar o estado seja geralmente admitido, mesmo em teoria. Demorará ainda mais antes que ela receba reconhecimento legislativo. E mesmo nesse momento, haverá muitas limitações sobre o exercício prematuro dela. Uma experiência áspera instruirá suficientemente aqueles que possam cedo demais abandonar a proteção legal. Existe, na maior parte dos homens, um tal amor pelos arranjos já experimentados e um pavor tão grande de experimentos que eles provavelmente não exercerão esse direito até que seja seguro fazê-lo.

 

Tradução Erick Vasconcelos


Notas:

 

[1] [N.T.] Sir William Blackstone (1723-1780), jurista inglês que escreveu o famoso tratado sobre a common law em quatro volumes Commentaries on the Laws of England (1765-1769).

[2] Daí pode se tirar um argumento pela taxação direta; porque somente quando a taxação é direta a repudiação do fardo estatal se torna possível.

Herbert Spencer
Herbert Spencer
(1820-1903) foi um filósofo liberal inglês. Contribuiu para várias áreas do conhecimento, como a sociologia, a filosofia política, a ética, a psicologia e a metafísica.
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