“O verdadeiro teste da civilização não é o censo, nem o tamanho das cidades, nem as colheitas – mas o tipo de homem que o país revela.”
— Ralph Waldo Emerson.
No caso de algum leitor ainda se apegar à platitude de que o sistema político se baseia na ideia de que nossa sociedade é “uma sociedade de leis e não de homens”, gostaria de lhes exortar a prestar mais atenção nos acontecimentos dos últimos anos. O comportamento político não existe em abstrações como o “estado” ou o “governo” ou uma “constituição”, mas na atividade exercida por homens e mulheres que consideram a máquina do poder estatal um instrumento útil para realizar objetivos que eles mesmos valorizam. Aqueles que anseiam dominar pessoas controlando as ferramentas de violência que definem o estado têm racionalizações para convencer as vítimas que pretendem fazer da “razão de ser” de seu governo. De explicações tais como “a vontade de Deus” ou mesmo o “direito divino dos reis”, a autoridade de alguns para desfrutar do poder coercitivo sobre outros – juntamente com o dever de obediência de seus súditos – estão todas enraizadas nas mentes das pessoas como se fossem auto evidentes como a força da gravidade.
Os sentimentos humanistas do Iluminismo ajudaram a transformar essas suposições autocráticas sobre a fonte da autoridade política, substituindo como racionalização para o estado o mito de um “contrato social”. Constituições formais foram escritas, almejando criar um estado por contrato, se utilizando do nome coletivo “Nós, o povo”. Na versão americana, a autoridade política deveria ser desenvolvida a partir de três ramos principais, com o poder legislativo desfrutando do poder máximo; uma proposição que tornaria difícil – se não impossível – para um indivíduo desfrutar de uma autoridade não verificada. Juntamente com a ilusão de que o exercício do poder poderia ser contido por palavras escritas em pergaminho, acreditava-se que pessoas razoáveis poderiam, portanto, confiar no poder estatal. Que algumas das ações mais repressivas da União Soviética foram conduzidas sob uma constituição modelada vagamente no modelo americano, deveria desiludir qualquer um do pensamento de que os poderes governamentais poderiam ser restringidos por palavras.
Tal arranjo soa tranquilizador – exceto para aqueles que se preocuparam em ler o documento ou os casos decididos por ele. Embora a Constituição contenha numerosas palavras, algumas passagens são suficientes para confirmar o poder irrestrito conferido ao estado. Algumas passagens estabelecem que o conselho de defesa nacional é quem promove a “defesa do estado democrático” e, consequentemente o bem-estar geral do povo. Este poder se baseia nas palavras de que apenas alguns poucos indivíduos fazem todas essas leis necessárias e apropriadas para a execução de tais poderes e todos os outros conferidos por esta Constituição dentro de sua jurisdição.
Suponha que eu receba a autoridade para “fazer todas as leis que fossem necessárias e apropriadas para promover o bem-estar geral”. Que limites essas palavras colocariam em mim? Que imunidade no exercício de meus poderes você manteria para evitar qualquer domínio que eu pudesse exercer sobre você? Foram apenas essas perguntas que levaram o britânico Lord Thomas Macaulay a declarar, em 1857, “Sua Constituição é toda vela e nenhuma âncora.” “Ah”, você poderia responder, “mas esta Constituição contém dispositivos que limitam a autoridade do governo”. No caso de um conflito entre aquilo que um oficial do governo ordena e a defesa individual violada, como e por quem essas diferenças seriam resolvidas? Qual autoridade prevaleceria? Definitivamente não são os artigos que estabelecem o poder judiciário. Quando tal fato ocorreu nos Estados Unidos, no caso Marbury Vs. Madison, em 1803, a Corte simplesmente usurpou o poder da revisão judicial das ações de outros ramos do governo – não sendo em nada relacionado com o Artigo III daquela constituição, que estabelecia “o poder Judiciário dos Estados Unidos” nem mesmo remotamente expressasse tal intenção pelos autores – nem aquilo assumiu o estatuto de soberano da autoridade política.
A própria Constituição deveria nos fazer refletir que “leis” não existem no vácuo, mas são produtos da ação humana que, por sua vez, são comportamentos guiados por indivíduos que buscam seus próprios interesses. Com a legislação criada por um sistema político que goza de monopólio do uso legal da força, é claro que as leis são apenas o meio pelo qual algumas pessoas perseguem seus fins às custas dos outros.
Desde a própria criação do governo nacional, até a forma como seus diferentes ramos atuariam, sempre houve uma confusão quanto ao significado das palavras usadas na Constituição. Isto ocorre devido à natureza fundamental de todas as palavras. Sendo abstrações, sua aplicação aos eventos do mundo real depende inerentemente de sua interpretação. Quando a Suprema Corte nos diz que terá tal autoridade, está nos dizendo que o governo assim criado por este documento será o intérprete de seus próprios supostos “poderes limitados”.
Com esses poderes de interpretação que o governo tomou para si, a Suprema Corte fornece um padrão consistente de interpretação da autoridade congressional e executiva de forma bastante ampla, ao mesmo tempo em que dá interpretações restritas sobre os direitos do cidadão. A ideia de que essas leis são “necessárias e indispensáveis” deve ser vista como sendo “convenientes”, enquanto que a suposta defesa das liberdades individuais é muitas vezes limitada por palavras como “a liberdade de expressão (ou religião) não inclui…” e assim por diante. A Constituição também permitiu ao Congresso criar os ramos do governo conhecidos como “agências reguladoras”, entidades que a maioria das pessoas deveria combater com todas as forças. Este sistema baseia-se na premissa de que funcionários de agências possuem uma “especialização” no assunto a ser regulamentado (tal “especialização”, no entanto, é resultante de conexões profissionais com as próprias empresas a serem regulamentadas!). No sistema político assim chamado “democrático”, juízes federais não eleitos e os funcionários não eleitos das agências reguladoras gozam do exercício de poderes aos quais não respondem senão uns com os outros!
Com tais usurpações de autoridade política gerando pouca objeção dos burgueses ignorantes, não é de se estranhar que presidentes e governadores sejam atraídos para a prática de emitir “ordens executivas”. Que maneira mais fácil de evitar pressões associadas ao processo legislativo do que ser seu próprio legislador?
A democracia é um sistema tão problemático que o “cidadão comum” – termo usado pelos estatistas para desconsiderar os interesses e preocupações daqueles que eles pretendem representar – é capaz de influenciar o Congresso para votar de acordo com políticas que diferem dos objetivos de seus mestres. Os primeiros nove presidentes dos EUA emitiram um total de 40 ordens executivas, enquanto que os garotos de Roosevelt adicionaram 4.809 deles próprios! Durante os anos de Reagan até Obama, 1.478 ordens executivas foram feitas. Totalmente consciente das dificuldades que teria para que o Congresso cooperasse com ele, violando a Segunda Emenda, o Presidente Obama tentou contornar esta liberdade constitucionalmente protegida criando suas próprias ordens executivas de controle de armas. Donald Trump, seguindo os exemplos de seus predecessores, está apenas começando com suas adições.
No nível estadual, alguns governadores também têm entrado na prática da ordem executiva. Em 2007, o então governador Rick Perry emitiu um decreto obrigando as meninas do Texas a receber a vacina contra o HPV (Gardasil). Sua ordem foi manchada não apenas pela natureza involuntária de seu édito, mas por suas conexões políticas com a empresa farmacêutica que produziu a vacina, e acabou tendo sua ordem rescindida. Mais recentemente, o governador de Ohio John Kasich emitiu uma ordem executiva proibindo prescrições de ópio que durou mais de sete dias. O licenciamento estadual de médicos tem se baseado na suposição de que apenas médicos profissionalmente treinados devem ser capazes de tratar pacientes e prescrever medicamentos e tratamentos. Como nem Perry nem Kasich foram licenciados para praticar medicina em seus respectivos estados, suas prescrições-decreto iriam violar as mesmas leis que proíbem barbeiros de executar tonsilectomia, ou professores escolares de se envolver em cirurgias cerebrais. Enquanto profissionais médicos sem licença são proibidos de tomar decisões médicas para os pacientes, tem sido comuns casos em que, se um médico quiser empregar um determinado procedimento com um paciente, ele ou ela primeiro verifica com os prestadores de seguros para determinar se tal procedimento pode ser coberto. Se o funcionário da companhia de seguros conclui que não pode ser coberto, o médico provavelmente mudaria o tratamento proposto. Nesse caso, o funcionário – e não o médico – teria efetivamente a palavra final sobre a tomada de decisão médica. Se os presidentes e governadores têm o direito de tomar essas decisões com base em alguns poderes ocultos e presumidos, e outras figuras políticas que podem entrar no jogo? Será que prefeitos, superintendentes de escolas públicas, funcionários dos correios ou os chefes de polícia não seriam os próximos a ordenar prescrições para outras pessoas?
À medida que a natureza egoísta da realpolitik torna-se cada vez mais evidente para mais pessoas, torna-se mais difícil para as mentes inteligentes ouvir tais sedativos – como a sociedade sendo governada “por leis, não homens” – sem darem risada. Da mesma forma que a realidade observada acabou com a ideia de um universo centrado na Terra, a humanidade pode estar nos estágios iniciais de descartar as ilusões políticas sobre as quais fomos condicionados a celebrar nossos compromissos mútuos com nossa autodestruição.
Artigo original aqui.
Traduzido por Renato S. Grun
Eu já fui um dos idiotas úteis liberalecos que acreditou em uma sociedade “governada por leis, e não por homens”.
Na verdade, no contexto parasitário que o governo alcançou nos dias atuais, provavelmente uma ditadura autocrática sem nenhuma lei ou constituição operando por trás seria preferível. O jusnaturalismo é perfeitamente válido, e considerando que não vamos os livrar tão cedo da gangue de ladrões em larga escala, é melhor para os interesses de longo prazo dos indivíduos uma autoridade cuja seja discricional. É mais convencer um psicopata a mudar de idéia sobre algo injusto, do fazer este tipo de mudança em um sistema jurídico complexo que 99,9% da população não entende e que depende dos políticos para funcionar. Ou seja, de fato, a máfia é preferível ao governo, já que esta excluindo a “taxa de proteção”, ela opera sem leis escritas e deixando os indivíduos com um grau de liberdade inimaginável sob o sistema demoníaco chamado democracia liberal – ou governo constitucional, na versão dos malditos liberalecos randianos.
Como o autor citou a constituição soviética que emulava a americana, não deixa de ser sintomático que a tal “ditadura violenta” brasileira, operava em conjunto sofisticado de leis, não de maneira discricionária. O AI-5, ao contrário do costuma pregar a esquerda radical comunista, não era um ato de uma ditadura sem legitimidade, mas de um estado que se afirmava sobre os indivíduos de maneira legal, ou seja, criando um sistema que possibilitou esta própria ampliação a partir do sistema democrático. O AI-5 hoje é a constituição de 1988.
Evidentemente que para que uma sociedade com uma autoridade discricionária do tipo mafiosa funcionasse a favor dos indivíduos, o poder deveria ser fragmentado ao máximo, ou seja, a grosso modo, uma gangue por bairro. Este poder limitado geograficamente é extremamente importante, pois haveria naturalmente uma concorrência entre estas gangues de maneira mais efetiva, levando assim à uma redução das “taxas de proteção”, decididas localmente sem um “sistema tributário”. Para uma pessoa real, é mais impactante saber que o vizinho do outro lado da rua é menos oprimido do que saber que do outro lado do mundo existe uma gangue estatal onde as empresas levam 3 dias para serem abertas. É muita abstração para um homem médio.
Além disso, devemos considerar a dificuldade prática destas gangues em manter a sua iniciativa violenta no longo prazo sem leis, considerando o envelhecimento dos primeiros mafiosos e sua decadência física. Isso não aconteceu com as máfias estatais justamente por elas terem governos baseados em leis, assim facilitando que houvesse um fluxo sempre constante de indivíduos dispostos a trabalhar para o governo. E considerando a democracia, somente os piores, os mais psicopatas e genocidas chegam ao poder.
Provavelmente para nos livrarmos da gangue parasitária somente seria possível se a humanidade inteira desaprendesse do dia para a noite a ler e a escrever – na falta de um botão para explodir o estado leviatã, pois assim, voltaríamos à um poder local sem as malditas leis escritas dos políticos. Como disse certa vez o Mestre Paulinho Kogos: é preciso estudar muito para ser analfabeto.