Thursday, November 21, 2024
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Guerra, paz e o estado

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O movimento libertário tem sido criticado por William F. Buckley Jr. por não usar sua “inteligência estratégica” para encarar os maiores problemas de nosso tempo. Temos, de fato, sido frequentemente propensos a “continuar com nossos pequenos seminários sobre se devemos ou não desmunicipalizar a coleta de lixo” (como Buckley tem escrito com desprezo), enquanto ignoramos e falhamos em aplicar a teoria libertária ao maior problema vital de nosso tempo: a guerra e paz. Há um sentido em que os libertários tem sido utópicos ao invés de estratégicos em seu pensamento, com uma tendência de separar o sistema ideal de que contemplamos das realidades do mundo em que vivemos. Em resumo, muitos de nós tem separado a teoria da prática e, em seguida, tem se contentado em apoiar a sociedade libertária pura como um ideal abstrato para algum futuro remoto, enquanto no mundo concreto atual seguimos irrefletidamente a linha “conservadora”. Para viver a liberdade, para começar a difícil mas essencial batalha estratégica de mudar o mundo insatisfatório atual na direção de nossos ideais, devemos compreender e demonstrar ao mundo que a teoria libertária pode ser utilizada rapidamente para lidar com todos os problemas cruciais do mundo. Ao se confrontar com esses problemas, podemos demonstrar que o libertarianismo não é apenas algum ideal encantado no mundo da fantasia, mas um corpo sério de ideais que nos permite tomar nossa posição e lidar com toda gama de questões de nosso dia-a-dia.

Então vamos usar nossa inteligência estratégica por completo. Apesar de que, quando ele ver o resultado, o sr. Buckley pode muito bem ter desejado que continuássemos na esfera da coleta de lixo. Vamos construir uma teoria libertária da guerra e paz.

O axioma fundamental da teoria libertária é que ninguém deve ameaçar ou cometer violência (“agressão”) contra outra pessoa ou sua propriedade. A violência pode ser empregada apenas contra o homem que comete tal violência; ou seja, somente defensivamente contra a agressão violenta de outro.[1]

Em resumo, nenhuma violência deve ser empregada contra um não-agressor. Esta é a regra fundamental em que pode ser deduzida todo o corpus da teoria libertária.[2]

Vamos deixar de lado o problema mais complexo do estado por um tempo e considerar apenas relações entre indivíduos “privados”. João acha que sua propriedade está sendo invadida, agredida, por José. É legítimo para João, como já vimos, repelir essa invasão ao utilizar-se de violência defensiva por conta própria. Mas agora chegamos a uma questão mais complicada: está dentro do direito de João cometer violência contra terceiros inocentes como um corolário de sua defesa legítima contra José? Para o libertário, a resposta deve ser clara: não. Lembre-se que a regra proibindo violência contra a pessoa ou a propriedade de homens inocentes é absoluta: mantém-se independentemente dos motivos subjetivos para a agressão. É errado e criminoso violar a propriedade ou pessoa de outro homem, mesmo se seja um Robin Hood, ou esteja com fome, ou esteja fazendo para salvar seus parentes, ou se está se defendendo contra o ataque de um terceiro homem. Devemos entender e simpatizar com os motivos de muitos desses casos e situações extremas. Devemos posteriormente atenuar a culpa se o criminoso venha a um tribunal para julgamento, mas não podemos fugir do julgamento que essa agressão ainda é um ato criminoso, e um em que a vítima tem todo direito de repelir, com violência se necessário. Em resumo, A agride B por causa de uma ameaça ou agressão de C. Devemos entender a “maior” culpabilidade de C nesse todo processo; mas devemos ainda rotular essa agressão como ato criminoso em que B tem o direito de repelir com violência.

Para ser mais concreto, se João acha que sua propriedade está sendo roubada por José, ele tem o direito de impedi-lo e tentar prendê-lo; mas ele não tem o direito de impedi-lo bombardeando um prédio e matando pessoas inocentes ou prendê-lo metralhando uma multidão de inocentes. Se ele faz isso, ele é um agressor criminoso tanto quanto (ou mais) que José.

A aplicação dos problemas de guerra e paz já está se tornando evidente. Apesar da guerra em seu sentido estreito ser um conflito entre estados, no sentido amplo podemos definir como uma onda de violência aberta entre pessoas ou grupos de pessoas. Se José e um grupo de seus capangas comete agressão contra João, e João e seus seguranças perseguem José e sua gangue ao seu covil, podemos aplaudir João por seu esforço; e podemos, e outros na sociedade interessados em impedir agressão, contribuir financeiramente ou pessoalmente à causa de João. Mas João não tem o direito, nenhum mais que José, de cometer agressão contra qualquer outro ao longo de sua “guerra santa”: a roubar a propriedade de outros com o intuito de financiar sua caçada, a recrutar outros para sua posse pelo uso da força, ou a matar outros ao longo de sua luta para capturar as forças de José. Se João fizer mesmo qualquer uma dessas coisas, ele torna-se um criminoso assim como José, e ele também torna-se sujeito a quaisquer sanções que são utilizadas contra a criminalidade. Na verdade, se o crime de José foi roubo, e João usar recrutamento para capturá-lo, ou matar outros na caçada, João torna-se mais criminoso que José, por tais crimes contra outras pessoas, como escravidão e assassinato são certamente muito piores que roubo (enquanto roubo fere a extensão da individualidade de outro, a escravidão fere, e o assassinato destrói, a própria individualidade).

Suponha que João, ao longo de sua “guerra santa” contra os saques de José, mate algumas pessoas inocentes, e suponha que ele declame, em defesa de seus assassinatos, que estava simplesmente atuando sob o slogan, “dê-me liberdade ou dê-me morte”. O absurdo dessa “defesa” deve ser evidente à primeira vista, já que a questão não é se João estava disposto a encarar a morte pessoalmente em sua luta defensiva contra José; a questão é se ele estava disposto a matar outras pessoas na busca de seu fim legítimo. João estava na verdade atuando sob um slogan completamente indefensável: “Dê-me a liberdade ou dê a eles a morte”, certamente um grito de guerra bem menos nobre.[3]

A atitude básica dos libertários frente a guerra deve então ser essa: é legítimo usar violência contra criminosos em defesa de seus direitos individuais e de propriedade; é completamente impermissível violar os direitos de outras pessoas inocentes. Guerra, então, é somente própria quando o exercício da violência é rigorosamente limitado aos indivíduos criminosos. Devemos julgar por nós mesmos quantas mais guerras ou conflitos na história cumpriram esse critério.

Geralmente é defendido, especialmente por conservadores, que o desenvolvimento das horrendas armas modernas de destruição em massa (armas nucleares, guerra biológica, etc.) é apenas uma diferença de grau ao invés de tipo em relação às simples armas de uma era anterior. É claro, uma resposta a isso é que quando o grau é o número de vidas humanas, a diferença é enorme.[4]  Mas outra resposta que o libertário está especialmente amparado a dar é que, enquanto o arco-e-flecha e mesmo o rifle podem ser utilizados com precisão, se esse for o desejo, contra os verdadeiros criminosos, as modernas armas nucleares não. Aqui há uma diferença crucial em tipo. É claro, o arco-e-flecha pode ser usado para agressão, mas também pode ser utilizado apenas contra agressores. Armas nucleares, mesmos bombas aéreas “convencionais”, não podem. Essas armas são ipso facto máquinas de destruição em massa indiscriminadas (a única exceção seria o caso extremamente raro em que uma massa de pessoas que fossem todas criminosas habitassem uma vasta área geográfica). Devemos, portanto, concluir que o uso de armas nucleares ou similares, ou a ameaça de, é um mal e um crime contra a humanidade em que não há justificativa.

E é por isso que o antigo clichê não se sustenta, de que não são as armas mas o desejo de usá-las que é importante ao julgar questões de guerra e paz. E é precisamente por essa característica das armas modernas, de que elas não podem ser usadas seletivamente, que elas não podem ser usadas em uma sociedade libertária. Portanto, sua própria existência deve ser condenada, e o desarmamento nuclear torna-se um bem a ser perseguido para seu próprio bem. E se desejamos de fato usar nossa inteligência estratégica, veremos que tal desarmamento não é apenas um bem, mas o maior bem político que podemos perseguir no mundo moderno. Assim como o assassinato é um crime mais hediondo contra outro homem que o roubo de galinhas, o assassinato em massa – de fato, assassinato tão disperso como uma ameaça à própria civilização e sobrevivência humana – é o pior crime que qualquer homem pode possivelmente cometer. E esse crime é agora iminente. E a prevenção da aniquilação em massa é muito mais importante, na verdade, que a desmunicipalização da coleta de lixo, por mais interessante que isso possa parecer. Ou os libertários irão aumentar a indignação justificada sobre o controle de preços ou o imposto de renda, e ainda assim dar de ombros ou até defender positivamente o crime último do assassinato em massa?

Se a guerra nuclear é totalmente ilegítima mesmo para indivíduos defendendo a si próprios contra agressão criminosa, imagine o quanto é a guerra nuclear ou até a “convencional” entre estados!

Agora é hora de trazer o estado em nossa discussão. O estado é um grupo de pessoas que conseguiu adquirir um monopólio virtual do uso da violência em certa área territorial. Em especial, embora tenha adquirido um monopólio de agressões violentas, os estados geralmente reconhecem o direito dos indivíduos de usar violência (embora não contra o estado, é claro) em autodefesa.[5] O estado então usa esse monopólio para exercer poder sobre os habitantes dessa área e desfruta dos frutos materiais desse poder. O estado, então, é a única organização na sociedade que regularmente e abertamente obtém suas receitas monetárias pelo uso da agressão violenta; todos os outros indivíduos e organizações (exceto se delegadas o direito pelo estado) podem obter riqueza apenas por produção pacífica e voluntária de seus respectivos produtos. Esse uso da violência para obter sua receita (chamado “tributos”) é a fonte do poder estatal. Sob essa base o estado ergue uma estrutura adicional de poder sob os indivíduos em seu território, regulando-os, penalizando críticas, subsidiando seus favoritos, etc. O estado também toma conta de atribuir-se o monopólio compulsório de vários serviços críticos necessitados pela sociedade, então mantendo as pessoas na dependência do estado por serviços básicos, mantendo o controle de postos de comandos vitais na sociedade e também promovendo entre o público o mito que somente o estado pode fornecer esses bens e serviços. Então o estado é cuidadoso ao monopolizar a polícia e serviço judicial, a propriedade de estradas e rodovias, a oferta de dinheiro, o serviço postal, e efetivamente monopolizar ou controlar a educação, utilidades públicas, transporte, rádio e televisão.

Agora, já que o estado reivindica para si próprio o monopólio da violência sobre uma área territorial, desde que suas depredações e extorsões continuem sem resistência, diz-se que há “paz” na área, já que a única violência é de via única, direcionada pelo estado contra as pessoas. Conflito aberto na área somente surge no caso de “revoluções”, em que as pessoas resistem ao uso do poder estatal contra elas. Tanto o caso calmo de um estado sem resistência e o caso de revolução declarada podem ser chamados de “violência vertical”: violência do estado contra seu povo ou vice-versa.

No mundo moderno, cada área de terra é governada por uma organização estatal, mas há vários estados espalhados pela Terra, cada um com o monopólio da violência sobre seu próprio território. Nenhum superestado existe com o monopólio da violência sobre o mundo inteiro; e então um estado de “anarquia” existe entre os vários estados (sempre foi uma fonte de espanto, incidentalmente, a esse autor, como os mesmos conservadores que denunciam como lunática qualquer proposta de eliminar o monopólio da violência sobre um dado território e portanto deixar os indivíduos privados sem um mestre, devem ser igualmente insistentes em deixar estados sem um mestre para resolver disputas entre eles. O primeiro caso é sempre denunciado como “anarquismo lunático”; o último é aclamado como preservação da independência e “soberania nacional” do “mundo governamental”). E então, exceto por revoluções, que ocorrem apenas esporadicamente, a violência aberta e o conflito de dois lados no mundo ocorre entre dois ou mais estados, isto é, no que é chamado de “guerra internacional” (ou “violência horizontal”).

Mas existem diferenças cruciais e vitais entre as guerras interestatais de um lado e as revoluções contra o estado ou conflitos entre indivíduos privados no outro. Uma diferença vital é a mudança em geografia. Em uma revolução, o conflito ocorre dentro da mesma área geográfica: tanto os lacaios do estado e os revolucionários habitam o mesmo território. Guerra interestatal, por outro lado, ocorre entre dois grupos, cada um tendo o monopólio sobre sua própria área geográfica; isto é, ocorre entre habitantes de territórios diferentes. Desta diferença segue-se várias consequências importantes: (1) na guerra interestados o incentivo para o uso de armas modernas de destruição é bem maior. Se uma “escalada” de armamento em um conflito intra-territorial tornar-se muito grande, cada lado irá se explodir com as armas dirigidas uns contra os outros. Nem um grupo revolucionário nem o estado combatendo a revolução, por exemplo, podem usar armas nucleares contra o outro. Mas, por outro lado, quando os lados combatentes habitam áreas territoriais diferentes, o incentivo para o armamento moderno torna-se enorme, e todo o arsenal de devastação em massa entra em jogo. Uma segunda consequência (2) é que enquanto é possível para revolucionários selecionar seus alvos e confiná-los a seus inimigos estatais, e portanto evitando agressão contra pessoas inocentes, a identificação é bem menos possível em uma guerra interestados.[6] Isso é verdade mesmo com as armas mais antigas; e, é claro, com armas modernas pode não haver nenhuma identificação. Além disso, (3) já que cada estado pode mobilizar todas as pessoas e recursos em seu território, o outro estado acaba por considerar todos os cidadãos do país opositor como ao menos temporariamente seus inimigos e a ameaçá-los de acordo com a extensão da guerra entre eles. Então, todas as consequências da guerra inter-territorial torna quase inevitável que a guerra interestatal envolverá agressão de cada lado contra civis inocentes – indivíduos privados – do outro. Isso inevitavelmente torna-se um absoluto com o uso de armas modernas de destruição em massa.

Se um atributo distinto da guerra inter-estados é a inter-territorialidade, outro atributo único deriva do fato de que cada estado vive pela tributação sobre seus sujeitos. Qualquer guerra contra outro estado, portanto, envolve o aumento e extensão da agressão por impostos sobre seu próprio povo.[7] Conflitos entre indivíduos privados podem ser, e geralmente são, voluntariamente promovidos e financiados pelos setores envolvidos. Revoluções podem ser, e geralmente são, financiadas e lutadas por contribuições voluntárias do público. Mas as guerras dos estados podem apenas ser promovidas através da agressão contra o pagador de impostos.

Todas as guerras de estados, portanto, envolvem um aumento da agressão contra os próprios pagadores de impostos do estado, e quase todas as guerras do estado (todas, nas guerras modernas) envolvem a máxima agressão (assassinato) contra civis inocentes governados pelo outro estado. Por outro lado, revoluções geralmente são financiadas voluntariamente e podem mirar sua violência aos governantes, e conflitos privados podem confinar sua violência aos verdadeiros criminosos. O libertário precisa, portanto, concluir que, enquanto algumas revoluções e alguns conflitos privados podem ser legítimos, as guerras do estado devem sempre ser condenadas.

Muitos libertários contestam da seguinte forma: “Enquanto nós também deploramos o uso da tributação para a guerra, e o monopólio do estado do serviço de defesa, temos que reconhecer que essas condições existem, e enquanto existirem, devemos apoiar o estado nas guerras de defesa”. A resposta a isso seria algo assim: “Sim, como você disse, infelizmente os estados existem, cada um tendo um monopólio da violência sobre sua área territorial”. Qual deve ser então a atitude de libertários em relação a conflitos entre os estados? O libertário deve dizer, na verdade, ao estado: “Tudo bem, você existe, mas enquanto você existir ao menos restrinja suas atividades a área em que você monopoliza”. Em resumo, o libertário está interessado em reduzir tanto quanto possível a área de agressão do estado contra todos os indivíduos privados. A única maneira de fazer isso, em questões internacionais, é com as pessoas de cada país pressionando seu próprio estado para restringir suas atividades para a área em que monopoliza e não iniciar agressão contra ouros estados monopolistas. Em resumo, o objetivo do libertário é restringir qualquer estado existente a um grau tão pequeno quanto possível de invasão às pessoas e às propriedades das pessoas. E isso significa a revogação completa das guerras. As pessoas em cada estado devem pressionar “seu” respectivo estado a não atacar os outros e, se um conflito surgir, negociar uma paz ou declarar um cessar fogo tão rapidamente quanto fisicamente possível.

Suponha além que temos essa raridade – um caso excepcionalmente claro em que o estado está de fato tentando defender a propriedade de um de seus cidadãos. Um cidadão do país A viaja ou investe no país B, e então o estado B agride contra sua pessoa ou confisca sua propriedade. Claro, nossa crítica libertária argumentaria, aqui é caso claro em que o estado A deve ameaçar ou cometer guerra contra o estado B com o intuito de defender a propriedade de “seus” cidadãos. Então, o argumento segue, já que o estado tem reivindicado para si o monopólio de defesa de seus cidadãos, ele então tem a obrigação de declarar guerra em defesa de qualquer cidadão, e libertários tem uma obrigação de apoiar essa guerra como sendo justa.

Mas novamente, a questão é que cada estado tem um monopólio de violência e, portanto, de defesa apenas sobre sua área territorial. Não tem tal monopólio; na verdade, não tem nenhum poder, sobre qualquer outra área geográfica. Portanto, se um habitante do país A deve mudar ou investir no país B, o libertário deve argumentar que ele desse modo assume o risco com o estado monopolista do país B, e seria imoral e criminoso para o estado A tributar pessoas no país A e matar vários inocentes no país B com o objetivo de defender a propriedade de um viajante ou investidor.[8]

Deve-se também salientar que não há defesa contra armas nucleares (a única “defesa” atual é a ameaça de aniquilação mútua) e, portanto, que o estado não pode satisfazer qualquer tipo de função de defesa enquanto essas armas existirem.

O objetivo libertário, então, deve ser, independentemente das causas específicas de qualquer conflito, pressionar os estados a não declarar guerras contra outros estados e, se uma guerra for declarada, pressioná-los a buscar a paz e negociar um cessar fogo e tratado de paz tão rapidamente quanto fisicamente possível. Esse objetivo, incidentalmente, é resguardado na lei internacional dos séculos XVIII e XIX, isto é, o ideal que nenhum estado pode cometer agressão contra o território de outro – em resumo, a “coexistência pacífica” de estados.[9]

Suponha, entretanto, que apesar da oposição libertária, a guerra começou e os estados beligerantes não estão negociando uma paz. Qual, então, deve ser a posição libertária? Claramente, para reduzir o escopo de ataques a civis inocentes tanto quanto possível. Leis internacionais antigas tinham dois excelentes dispositivos para isso: as “leis de guerra”, e as “leis de neutralidade” ou “direitos neutros”. As leis de neutralidade foram planejadas para manter qualquer guerra que surja confinada aos próprios países beligerantes, sem agressão contra os estados ou particularmente contra as pessoas de outras nações. Por isso a importância do antigo e agora esquecido princípio americano de “liberdade dos mares” ou de severas limitações sobre os direitos de estados beligerantes de bloquear o comércio neutro com o país inimigo. Em resumo, o libertário tenta induzir estados neutros a permanecerem neutros em qualquer conflito interestado e induzir os estados beligerantes a obedecer completamente os direitos dos cidadãos neutros. As “leis de guerra” foram projetadas para limitar tanto quanto possível a invasão de estados beligerantes aos direitos dos civis dos respectivos países beligerantes. Como o jurista britânico F. J. P. Veale salienta:

“O princípio fundamental desse código era que as hostilidades entre pessoas civilizadas devem ser limitadas às forças armadas de fato engajadas… Desenhava uma distinção entre combatentes e não-combatentes por estabelecer que o único objetivo dos combatentes é lutar entre si e, consequentemente, que não-combatentes devem ser excluídos do escopo das operações militares.”[10]

Em sua forma modificada como a proibição do bombardeamento de todas as cidades que não estivessem na linha de frente, essa regra manteve-se nas guerras europeias ocidentais em séculos recentes até que a Grã-Bretanha lançou o bombardeio estratégico de civis na Segunda Guerra Mundial. Nos dias atuais, é claro, todo o conceito raramente é lembrado, já que a própria natureza da guerra nuclear baseia-se na aniquilação de civis.

Ao condenar todas as guerras, independentemente do motivo, o libertário sabe que pode muito bem ter vários graus diferentes de culpa entre os estados em uma guerra específica. Mas a consideração primordial para o libertário é a condenação da participação de qualquer estado em guerras. Logo sua política é de exercer pressão em todos os estados para não começar guerras, a parar um que já começou e reduzir o escopo de qualquer guerra persistente em ferir civis de ambos os lados.

Um corolário negligenciado da política libertária de coexistência pacífica de estados é a abstenção rigorosa de qualquer ajuda externa; isto é, uma política de não-intervencionismo entre estados (= “isolacionismo” = “neutralidade”). Para qualquer ajuda dada pelo estado A ao estado B (1) aumenta a agressão por impostos contra as pessoas do país A e (2) agrava a repressão pelo estado B de seu próprio povo. Se há quaisquer grupos revolucionários no país B, então a ajuda externa intensifica sua repressão em todo o resto. Mesmo ajuda externa a um grupo revolucionário em B – mais defensável porque direcionado a um grupo voluntário opositor a um estado ao invés de um estado oprimindo pessoas – deve ser condenada como (no mínimo) um agravante agressão por impostos em casa.

Vamos ver como a teoria libertária se aplica ao problema de imperialismo, em que pode ser definido como a agressão do estado A sobre as pessoas do país B, e a subsequente manutenção desse poderio estrangeiro. A revolução pelo povo do país B contra o império de A certamente é legítima, dado novamente que o fogo revolucionário seja direcionado somente contra os comandantes. Geralmente tem sido apoiado – mesmo entre libertários – que o imperialismo ocidental sobre países subdesenvolvidos deve ser apoiado por haver um maior respeito aos direitos de propriedade que qualquer governo nativo antecessor teria feito. A primeira resposta é que julgar o que poderia seguir do status quo é puramente especulativo, enquanto o domínio imperialista existente é completamente real e culpado. Além disso, nesse caso o libertário começa seu foco no lugar errado – ao alegado benefício do imperialismo sobre o nativo. Ele deve, pelo contrário, concentrar-se primeiro no pagador de imposto ocidental, que é despojado e sobrecarregado de pagar pelas guerras de conquista, e então pela manutenção da burocracia imperial. Com base nisso, o libertário deve condenar o imperialismo.[11]

A oposição a todas as guerras significa que o libertário nunca deve mudar de compostura – que ele está consignando o mundo a um congelamento permanente de regimes injustos? Certamente não. Suponha, por exemplo, que o estado hipotético de “Waldavia” atacou o país “Ruritania” e anexou a parte ocidental do país. Os ruritanianos ocidentais agora desejam ser reunidos com seus irmão ruritanianos. Como isso pode ser alcançado? Há, é claro, a rota de negociação pacífica entre os dois poderes, mas suponha que os imperialistas waldavianos estão irredutíveis. Ou, libertários waldavianos podem colocar pressão em seu governo para abandonar sua conquista em nome da justiça. Mas suponha que isso, também, não funcione. E então? Devemos continuar com essa ilegitimidade de Ruritania de entrar em guerra contra Waldavia. As rotas legítimas são (1) levantes revolucionários pelo povo ruritaniano ocidental oprimido, e (2) ajuda por grupos privados ruritanianos (ou, para essa questão, por amigos da causa ruritaniana em outros países) aos rebeldes ocidentais – tanto na forma de equipamento ou por pessoal voluntário.[12]

Vimos ao longo de nossa discussão a importância crucial, em qualquer programa de paz libertário atual, da eliminação de métodos modernos de aniquilação em massa. Essas armas, contra a qual não se tem defesa, assegura agressão máxima contra civis em qualquer conflito com o clara possibilidade de destruição da civilização e mesmo da própria raça humana. Alta prioridade de qualquer agenda libertária, portanto, deve ser pressionar todos os estados a concordar com um desarmamento geral e completo a níveis policiais, com relevância particular no desarmamento nuclear. Em resumo, se estamos usando nossa inteligência estratégica, devemos concluir que o desmantelamento da maior ameaça que a vida e a liberdade da raça humana já enfrentou é de fato muito mais importante que desmunicipalizar o serviço de lixo.

Não podemos deixar nosso tópico sem dizer ao menos uma palavra sobre a tirania doméstica que é o acompanhante inevitável da guerra. O grande Randolph Bourne percebeu que “guerra é o alimento do estado”.[13] É na guerra que o estado realmente toma sua forma verdadeira: aumentando de poder, em número, em orgulho, em dominação absoluta sobre a economia e a sociedade. A sociedade torna-se um rebanho, buscando eliminar seus alegados inimigos, erradicando e suprimindo todos os dissidentes do esforço oficial de guerra, traindo a verdade com felicidade para o suposto interesse público. A sociedade torna-se um campo armado, com os valores e a moral – como Albert Jay Nock disse – de um “exército em marcha”.

A base do mito que permite o estado aumentar o poder na guerra é a mentira que a guerra é uma defesa pelo estado de seus interesses. Os fatos, é claro, são precisamente o inverso. Caso a guerra seja o alimento do estado, é também seu maior perigo. Um estado pode apenas “morrer” ao ser derrotado na guerra ou por revolução. Na guerra, portanto, o estado freneticamente mobiliza as pessoas a lutarem para ele contra outro estado, sob o pretexto que se está lutando por eles. Mas tudo isso não deveria causar espanto; vemos isso em outros ramos da vida. Em que categorias de crime o estado persegue e pune mais intensamente – aqueles contra cidadãos privados ou aqueles contra si mesmo? Os maiores dos crimes no vocabulário do estado são quase sempre invariavelmente não a invasão das pessoas e de suas propriedades, mas perigos de seu próprio conteúdo: por exemplo, traição, deserção de um soldado ao inimigo, fracasso em se registrar para o recrutamento, conspiração para a derrocada do governo. Assassinato é perseguido casualmente ao menos que a vítima seja um policial, ou Gott soll hüten, um assassino de um Chefe de Estado; a falha em pagar uma dívida privada é, se algo, quase encorajada, mas a sonegação do imposto de renda é punida com a maior severidade possível; a falsificação da moeda estatal é perseguida muito mais implacavelmente que a falsificação de cheques privados, etc. Todas essas evidências demonstram os direitos dos cidadãos privados.

Uma palavra final sobre recrutamento militar: todas as formas em que a guerra agiganta o estado, essa é talvez a mais flagrante e mais despótica. Mas o fato mais impressionante sobre o recrutamento é o absurdo de argumentos levantados em seu favor. Um homem deve se recrutar para defender sua (ou de outra pessoa?) liberdade contra um estado malvado além das fronteiras. Defender sua liberdade? Como? Sendo coagido em um exército em que toda raison d´être é a expurgação da liberdade, o atropelo de todas as liberdades da pessoa, a desumanização brutal e calculada do soldado em sua transformação em uma máquina eficiente de matar ao desejo de seu “oficial de comando”?[14] Pode qualquer possível estado estrangeiro fazer algo pior a ele que o que “seu” exército agora está fazendo em seu alegado benefício? Quem está lá, ó deus, para defendê-lo contra seus “defensores”?

________________________________________________

Notas

[1] Há alguns libertários iriam mais além e diriam que ninguém pode empregar a violência mesmo para se defender da violência. Porém, mesmo esses tolstoianos ou “pacifistas absolutos” iriam conceder o direito do defensor a empregar violência defensiva e iriam apenas incitá-lo a não exercer esse direito. Eles, portanto, não discordam com nossa proposição. Da mesma forma, um libertário defensor do movimento da prudência não iria contra o direito de um homem de beber álcool, apenas sua escolha em exercer tal direito.

[2] Não tentamos justificar esse axioma aqui. A maioria dos libertários e mesmo conservadores são familiarizados com a regra e mesmo a defendem; o problema não é chegar à regra mas sim defender a execução de suas inúmeras e muitas vezes surpreendentes implicações.

[3] Ou, para trazer outro famoso slogan antipacifista, a questão não é se “estamos dispostos a usar força para evitar o estupro de nossa irmã”, mas se, para evitar esse estupro, estamos dispostos a matar pessoas inocentes e talvez mesmo a própria irmã.

[4] William Buckley e outros conservadores têm proposto a curiosa doutrina moral que não é pior matar milhões do que matar apenas um homem. O homem que faz qualquer um desses dois é, sem dúvida, um assassino; mas com certeza faz uma grande diferença quantas pessoas ele mata. Talvez possamos ver isso ilustrando o problema dessa forma: depois de um homem ter matado uma pessoa, faz alguma diferença se ele para de matar agora ou continuar e matar mais uma dúzia de pessoas? Obviamente, faz diferença.

 

[5] O professor Robert L. Cunningham definiu o estado com a instituição com “um monopólio de iniciar coerção física aberta”. Ou, como Albert Jay Nock salienta similarmente até mais causticamente, “o estado alega e exerce o monopólio do crime… Proíbe o assassinato privado, mas ele próprio organiza assassinatos em uma escala colossal. Pune o roubo privado, mas ele próprio põe a mão em qualquer coisa que quer”.

[6] Um exemplo excelente de localização por revolucionários foi a prática invariável do Exército Republicano Irlandês (IRA), em seus últimos anos, de ter certeza que apenas tropas britânicas e propriedades do governo britânico fossem atacadas e que nenhum civil inocente irlandês fosse ferido. Uma revolução de guerrilha não apoiada pela maioria das pessoas, é claro, é bem mais propensa a agressão contra civis.

[7] Se for argumentado que a guerra pode teoricamente ser financiada somente pela diminuição dos gastos não-militares do estado, então a resposta ainda permanece que a tributação permanece maior que seria se não fosse o efeito da guerra. Além disso, o propósito desse artigo é que os libertários devem ser contrários aos gastos do governo qualquer que seja o campo, guerra ou não-guerra.

[8] Há outra consideração que se aplica ao argumento da defesa “doméstica” no território de um estado: quanto menos o estado pode defender com sucesso os habitantes de sua área contra ataques contra criminosos, mais esses habitantes podem aprender sobre a ineficiência das operações estatais, e mais eles irão se voltar para métodos não-estatais de defesa. O fracasso do estado de defesa, portanto, tem valor educativo para o público.

[9] A lei internacional mencionada nesse artigo é a antiga lei libertária que emergiu voluntariamente nos séculos passados e não tem nada a ver com o moderno crescimento estatal de “segurança coletiva”. Segurança coletiva força uma escalada máxima de qualquer guerra local em uma guerra mundial – o exato contrário do objetivo libertário de reduzir o escopo de qualquer guerra tanto quanto possível.

[10] F.J.P. Veale, Advance to Barbarism (Appleton, Wis.: C.C. Nelson, 1953), p. 58.

[11] Outros dois pontos sobre o imperialismo ocidental: primeiro, suas leis não são nem um pouco liberais ou benevolentes como muitos libertários querem acreditar. O único direito de propriedade respeitado eram os dos europeus; os nativos tiveram suas melhores terras roubadas pelos imperialistas e seu trabalho coagido com violência pelo trabalho nas vastas terras que o estado adquiriu por esse roubo.

Segundo, outro mito que permanece é que a “diplomacia de guerra” da virada do século foi uma ação heroica libertária em defesa dos direitos de propriedade dos investidores ocidentais em países atrasados. Além das restrições acima contra ir além de qualquer área de terra monopolizada pelo estado, é ignorado que a maioria dos movimentos pró-guerra foram em defesa, não de investimentos privados, mas de investidores ocidentais de títulos do governo. O poderio ocidental coagiu os governos menores em aumentar a agressão por impostos em seu próprio povo, com o objetivo de pagar investidores estrangeiros. De forma alguma essa foi uma ação na defesa da propriedade privada – bem pelo contrário.

[12] A ala tostoiana do movimento libertário poderia se unir com os ruritanianos ocidentais para se engajar em uma revolução não-violenta, por exemplo, greves de impostos, boicotes, recusa em massa de obedecer ordens do governo ou uma guerra geral – especialmente nas fábricas militares. Cf. O trabalho do revolucionário tostoiano, Bartelemy De Ligt, The Conquest of Violence: An Essay On War and Revolution (New York: Dutton, 1938).

[13] Veja Randolph Bourne, “Unfinished Fragment on the State,” em Untimely Papers (New York: B.W: Huebsch, 1919).

[14] Para a velha provocação militarista feita contra o pacifista: “Você usaria a força pare evitar o estupro de sua irmã?”, a réplica adequada é: “Você estupraria sua irmã se o seu comandante ordenasse?”

Tradução de Robson Silva. Revisão de Adriel Santana // Artigo Original

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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2 COMENTÁRIOS

  1. Gostaria de tratar do tema com o tradutor e o revisor, bem como outros interessados. Mais especificamente, para agendarmos uma reunião virtual para debater o artigo, e procurar conciliar a visão de Rothbard para a realidade brasileira.

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Maurício J. Melo on Ayn Rand está morta
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Luan Oliveira on Ayn Rand está morta
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YURI CASTILHO WERMELINGER on Ayn Rand está morta
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PAULO ROBERTO MATZENBACHER DA ROSA on O mito do genocídio congolês de Leopoldo II da Bélgica
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Maurício J. Melo on Bem-estar social fora do estado
Maurício J. Melo on A guerra do Ocidente contra Deus
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Maurício J. Melo on Objetivismo, Hitler e Kant
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Maurício J. Melo on A vietnamização da Ucrânia
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Matheus Polli on Confederados palestinos
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Ex-microempresario on O bombardeio do catolicismo japonês
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Matheus Oliveira De Toledo on A queda do pensamento crítico
Ex-microempresario on O bombardeio do catolicismo japonês
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Marco Antônio F on Anarquia, Deus e o Papa Francisco
Carola Megalomaníco Defensor do Clero Totalitário Religioso on Política é tirania por procuração
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Francês on O mistério continua
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Maurício J. Melo on Anarquia, Deus e o Papa Francisco
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