Mais uma vez o único país de grandes proporções que, pelo que vejo, termina os jogos olímpicos com algum crédito é a Índia. Respondendo por algo como 1/6 da população mundial, ela não ganhou – até a última vez que chequei o quadro – nem uma única medalha em nenhuma modalidade. Isto prova que, ao menos neste quesito, ela acerta em suas prioridades. Ela se recusa peremptoriamente a se avaliar segundo o número de medalhas que ganha nas Olimpíadas e não faz absolutamente nada para encorajar seus cidadãos a dedicar suas vidas para tentar pular um mísero centímetro mais longe ou mais alto que qualquer outra pessoa já pulou na história da humanidade.
Este é o tipo de objetivo que regimes totalitários estabelecem para os seus cidadãos (ou talvez devêssemos nos referir a eles como prisioneiros). O Marquês de Custine observou há muito tempo, em sua grande obra Rússia em 1839, que tiranos demandam esforços imensos de suas populações para produzirem inutilidades, e não pode haver inutilidade mais inútil do que um recorde olímpico, ou mesmo uma vitória sem um recorde. Ser o melhor do mundo em alguma coisa não tem nenhum mérito se essa coisa não for algo que valha a pena. Um homem que joga um dardo mais longe do que todo mundo (nem tenho certeza se essa modalidade ainda existe) não é algo a ser admirado, mas a ser lamentado, isto se a pessoa dedicou muitas horas a essa atividade, o que certamente ele deve ter feito para ser o melhor nisto neste mundo de tolos.
Não vale a pena fazer algo se não for pra fazer direito, mas uma coisa feita direito que não valha a pena ser feita é algo muito errado – na verdade, muito mais errada do que uma coisa direita feita errada. Entre outras coisas, isto exprime um desperdício de habilidades, o que poderia ser considerado uma ofensa a Deus, se formos considerar as habilidades como uma graça divina.
A primeira vez que pensei neste assunto foi há muitos anos quando meu irmão fez questão de me levar ao cinema para ver um daqueles filmes tecnicamente sofisticados, mas que em todos os outros quesitos é apenas infantil, que geralmente são grandes sucessos de bilheteria.
“O que você achou?” meu irmão me perguntou quando estávamos saindo do cinema.
“Eu achei uma porcaria.”
“Mas foi muito bem feito.”
“Uma porcaria bem feita não deixa de ser uma porcaria”, eu disse. “O fato de ter sido bem feita a torna pior, não melhor.”
Isto com certeza foi um pouco pesado. As pessoas, e até mesmo os diretores de cinema, têm que sobreviver, e nós, todos nós, por inúmeras razões, quase sempre damos menos que o nosso melhor. No entanto, a produção deliberada de lixo intelectual, moral e artístico – aquilo que Orwell chamou de “prolefeed” em seu 1984 – é uma forma maligna peculiar de cinismo.
Mas voltemos às Olimpíadas. Não preciso nem dizer que se eu fosse um brasileiro pobre da periferia de São Paulo que tivesse que sofrer por duas horas na ida e na volta do trabalho todos os dias por causa das péssimas condições das ruas e dos transportes públicos, e que tivesse testemunhado os bilhões de dólares gastos em infraestrutura que logo irão se transformar em elefantes-branco e dívidas, tudo por causa de três semanas de uma diversão global idiota, eu estaria furioso e pronto para uma revolta. Somente alguém com titica na cabeça (como o Sr. Blair, ex-primeiro ministro que trouxe os jogos olímpicos para Londres) poderia pensar que isso vale a pena; que não chega a ser tão trágico quanto os eternos desfiles de massa em Pyongyang, mas que são do mesmo gênero.
Todavia, se os jogos fossem genuinamente amadores, se os competidores fossem professores ou garis que, depois do trabalho fossem pra algum ginásio esportivo encardido para praticar tiro ao alvo ou outra modalidade estúpida, eu seria a favor deles, ou ao menos não seria contra. Logicamente, os padrões de desempenho seriam incomparavelmente menores, mas o nível de humanidade dos competidores seria analogamente maior.
No entanto, este é um sonho totalmente utópico. Os jogos olímpicos têm sido há muito tempo um tipo de patologia política, talvez até antes das Olimpíadas de Berlim de 1936. Minha mãe viu Hitler no Estádio Olímpico, e eu me lembro de ver a chama olímpica passando por mim em Amalfi sendo carregada para Roma em 1960, época na qual os jogos olímpicos já haviam se tornado há muito tempo um espetáculo profundamente depravado. Quem ainda se lembra das irmãs Press, que ganharam medalhas para a União Soviética nas Olimpíadas de Roma, e que se aposentaram precocemente da vida esportiva quando tornaram obrigatórios os testes de sexo? Eu acho que hoje em dia este tipo de teste não as teria retirado dos jogos ou sequer seria considerado relevante; afinal, você agora pertence ao sexo –ou gênero, para usar a terminologia correta – que você acha que pertence. Mas, em todo caso, o sucesso das irmãs Press (ou irmãos, como foram depreciativamente chamados) foi em alguns locais promovido a evidência da superioridade do sistema social e político soviético, como se acertar um tiro, arremessar um disco ou pular barreiras (atividades em que as duas Press se destacaram, ao menos contra competidoras femininas) fosse o que Alexander Pope chamou de “o estudo correto da Humanidade”.
Eu lamento dizer que meu país, o Reino Unido, para sua eterna desgraça, saiu-se extremamente bem nestas Olimpíadas. Per capita superou os Estados Unidos. Apesar de que, pelo mesmo critério, a Nova Zelândia, para sua grande e infinita vergonha, superou de longe até mesmo o Reino Unido.
Um artigo recente no The Guardian, o Izvestia dos progressistas britânicos, glorificou as conquistas do planejamento central, por estarem certos do que era um sucesso – para não dizer conquista total do mundo – da equipe de ciclismo britânica. Ele foi atribuído ao “investimento” do governo – na minha opinião, um desvio criminoso de recursos – em instalações para corridas de ciclismo.
Consideremos por um momento aquilo que ainda não foi provado, que o sucesso britânico nesta modalidade tenha sido consequência de uma superioridade farmacológica, para nos perguntar: que tipo de pessoa iria se regozijar com uma vitória desse tipo para seu país? Teria que ser um retardado, se bem que temos que admitir que esse tipo de imbecilidade esteja muito bem espalhada pelo mundo, com a exceção da Índia.
Certamente, a Índia é a melhor esperança para a humanidade. Que ela perdure sempre, para sua eterna glória, sem ganhar nenhuma medalha.
Texto original aqui.
Tradução de Fernando Chiocca
Um artigo excelente para um período difícil
“Um homem que joga um dardo mais longe do que todo mundo (nem tenho certeza se essa modalidade ainda existe) não é algo a ser admirado, mas a ser lamentado, isto se a pessoa dedicou muitas horas a essa atividade, o que certamente ele deve ter feito para ser o melhor nisto neste mundo de tolos.”[
Só não entendi essa parte. Por que isso deveria ser lamentado?
Felipe Lange, isso é algo a se lamentar pq um cidadão que gastou tantas horas para nada, quando poderia estar produzindo algo melhor para a humanidade, é algo a se lamentar. Tire os incentivos governamentais e veja se alguém ainda vai se dedicar a uma inutilidade dessas.
Eu acho esse texto um pouco infeliz. Se as pessoas estiverem dispostas a pagar e assistir atletlas praticando tais esportes, qual é o problema? Apenas sou contra o governo financiar tais atividades.
Felipe Lange Pelo fato de ser uma atividade inutil
Acho que ele se contradiz quando diz que, se uma pessoa gasta muito tempo se dedicando a um esporte até se tornar o melhor nessa atividade, isso seria um desperdício de habilidade.
E se a habilidade que ela possui é justamente a prática deste determinado esporte? Onde está o desperdício?
Ao invés de pegar no pé da utilidade em si de um evento esportivo, o que o autor talvez quisesse dizer é que nem sempre as obras de uma pessoa são glorificáveis porque seus propósitos nem sempre carregam grande quantidade de beleza, de justiça e de propósitos, de modo que para o autor pouco importa tuas obras ou teus títulos (concordo, e de fato, se inférteis de propósito realmente de nada valem mesmo, só em aberrações como o mundo moderno-utilitarista como o de hoje, que premia porque é bonito premiar e acha digno de louvor meras conquistas) mas sim os propósitos de teus atos, tuas intenções e tuas medidas de beleza e justiça que as tuas ações carregam; e fala que encontra no esporte uma infertilidade desses aspectos que eu citei. Coisa que eu também tendo a concordar, porque os esportes especializados em geral no máximo têm como finalidade brindar o vigor, a capacidade de um homem em ser o melhor em alguma coisa (a grande pergunta que se impõe aqui é: nós realmente devemos nos importar em sermos os melhores? O autor responde logo no início do texto que nem sempre; muitas vezes isso pode ser apenas uma perseguição vazia, a depender da substância (ou da ausência dela) que a tua ideia carrega), e os jogos olímpicos servem nada mais nada menos para contemplar através de títulos os estados, que por sinal coisa mais feia, injusta e má em intenções inexiste na face da terra.
Felipe Lange, arremessar dardos é vestígio anacrônico da época em que soldados precisavam arremessar dardos. Para que o governo deveria investir nisso?
Na ordem de prioridades em que posição se encaixa, e em qual posição deveria se encaixar