InícioUncategorizedO que o governo fez com o nosso dinheiro?

O que o governo fez com o nosso dinheiro?

III. A Interferência do Governo na Moeda

  1. As receitas do governo

 

 

Os governos, ao contrário de todas as outras organizações, não obtêm suas receitas por meio da oferta de serviços.  Sendo assim, os governos enfrentam um problema econômico distinto daquele enfrentado por empresas e indivíduos.  Indivíduos que desejam adquirir mais bens e serviços de outros indivíduos têm de produzir e vender aquilo que estes outros indivíduos desejam.  Já os governos têm apenas de encontrar algum método de expropriar bens sem o consentimento de seus proprietários.

Em uma economia de escambo, os funcionários do governo podem expropriar recursos somente de uma maneira: confiscando bens físicos.  Já em uma economia monetizada, eles descobrirão ser mais fácil confiscar ativos monetários para, em seguida, utilizar o dinheiro para adquirir bens e serviços para si próprios, ou ainda, para conceder subsídios para seus grupos favoritos.  Tal confisco é chamado de tributação.[1]

A tributação, no entanto, é sempre algo impopular e, em épocas menos moderadas, frequentemente gerava revoluções.  O surgimento do dinheiro, uma bênção para a espécie humana, também abriu um caminho sutil para a expropriação governamental de recursos.  No livre mercado, o dinheiro pode ser adquirido de duas formas: ou o indivíduo produz e vende bens e serviços desejados por terceiros, ou ele se dedica à mineração de ouro (um negócio tão lucrativo como outro qualquer, no longo prazo).  Mas se o governo descobrir maneiras de praticar falsificação — criar dinheiro do nada —, então ele poderá, rapidamente, produzir o próprio dinheiro sem ter o trabalho de vender serviços ou de garimpar ouro.  Ele poderá, assim, se apropriar maliciosamente de recursos e de forma bastante discreta, sem suscitar as hostilidades desencadeadas pela tributação.  Com efeito, a falsificação pode criar em suas próprias vítimas a feliz ilusão de incomparável prosperidade.

Falsificação, evidentemente, nada mais é do que outro nome para a inflação — ambas criam um novo “dinheiro” que não é um metal como ouro ou prata e ambas funcionam similarmente.  E assim podemos entender por que os governos são inerentemente inflacionários: porque a inflação monetária é um meio poderoso e sutil para o governo adquirir recursos do público, uma forma de tributação indolor e bem mais perigosa.

 

  1. Os efeitos econômicos da inflação

Para mensurar os efeitos econômicos da inflação, vejamos o que acontece quando um grupo de falsificadores dá início ao seu “trabalho”.  Suponhamos que a economia tenha uma oferta de 10.000 onças de ouro.  E então os falsificadores, tão sagazes que ninguém os percebe, injetam mais 2.000 “onças” nesta economia.  Quais serão as consequências?

Inicialmente, os próprios falsificadores serão os primeiros a se beneficiar.  Eles utilizarão esse dinheiro recém-criado para comprar bens e serviços.  Como bem ilustrou uma famosa charge da revista New Yorker, que mostrava um grupo de falsificadores contemplando solenemente o próprio trabalho: “Os gastos em consumo estão prestes a receber um grande e necessário estímulo”.  Exatamente.  Os gastos em consumo, de fato, realmente recebem um estímulo.

Esse dinheiro novo vai percorrendo, pouco a pouco, todo o sistema econômico.  À medida que ele vai se espalhando pela economia, os preços vão aumentando — como vimos antes, dinheiro criado do nada pode apenas diluir a eficácia de cada unidade monetária.  Mas essa diluição é um processo lento e, por isso, é desigual; durante este ínterim, algumas pessoas ganham e outras perdem.  No início deste processo, a renda e o poder de compra dos falsificadores e dos varejistas locais aumentam antes que tenha havido qualquer aumento nos preços dos bens e serviços que eles compram.  Com o tempo, à medida que o dinheiro vai perpassando toda a economia e elevando os preços, aquelas pessoas que estão nas áreas mais remotas da economia e que ainda não receberam esse dinheiro recém-criado terão de lidar com preços maiores sem que tenham vivenciado um aumento de suas rendas.  Os varejistas que estão do outro lado do país, por exemplo, estarão em pior situação.  Terão de lidar com preços maiores sem que sua renda e seu poder de compra tenham aumentado.  Os primeiros recebedores do dinheiro novo se beneficiam à custa daqueles que recebem este dinheiro por último.  Houve uma redistribuição de renda às avessas.

A inflação, portanto, não gera nenhum benefício social; ao contrário, ela redistribui a riqueza para aqueles que obtiveram primeiramente o dinheiro recém-criado, e tudo à custa daqueles que o recebem por último.  A inflação é, efetivamente, uma disputa — uma disputa para ver quem obtém antes dos outros a maior fatia do dinheiro recém-criado.  Aqueles que ficam por último — aqueles que arcam com a redução de seu poder de compra — são majoritariamente aqueles que estão no chamado de “grupo de renda fixa”.  Sacerdotes, professores e assalariados em geral estão notoriamente entre aqueles que são os últimos a receber este dinheiro recém-criado.  Aposentados, pensionistas, pessoas dependentes de algum seguro de vida, senhorios com contratos de aluguel de longo prazo, portadores de títulos e credores em geral, aqueles que portam dinheiro em espécie — todos arcarão com o fardo da inflação.  Eles são os únicos “tributados”.[2]

A inflação gera outros efeitos desastrosos.  Ela distorce aquele pilar básico da economia: o cálculo empreendedorial.  Dado que os preços não se alteram de maneira uniforme e com a mesma velocidade, torna-se muito difícil para os empreendedores distinguir aquilo que é duradouro daquilo que é transitório, e mensurar corretamente as verdadeiras demandas do consumidor ou o custo de suas operações.  Por exemplo, a norma da prática contábil é registrar o “custo” de um ativo pelo valor em que ele foi pago.  Porém, com a inflação, o custo de repor este ativo quando ele já estiver exaurido será bem maior do que aquele valor registrado nos livros contábeis.  Como resultado, a contabilidade das empresas irá superestimar acentuadamente seus lucros durante um processo de inflação — podendo até mesmo chegar ao ponto de estar consumindo seu capital ao mesmo tempo em que se imagina estar aumentando os investimentos.[3] Do mesmo modo, os detentores de ações e de imóveis auferirão ganhos de capital durante a inflação que não são de modo algum ganhos reais.  Eles podem até acabar consumindo parte destes ganhos sem perceber que estão consumindo seu capital original.

Ao criar lucros ilusórios e distorcer o cálculo econômico, a inflação suspenderá o processo — feito automaticamente pelo livre mercado — de penalização das empresas ineficientes e de recompensa das eficientes.  Quase todas as empresas irão aparentemente prosperar.  Essa atmosfera geral de “mercado propício ao consumo” levará a um declínio na qualidade dos bens e serviços ofertados aos consumidores, uma vez que os consumidores tendem a oferecer menos resistência a aumentos de preços quando estes ocorrem na forma de redução da qualidade.[4]

A qualidade da mão-de-obra também será pior durante uma inflação e por um motivo mais sutil: as pessoas serão cativadas por esquemas que prometem enriquecimento rápido, os quais, durante uma época de preços em ascensão, parecem estar ao alcance de praticamente todos.  Ao mesmo tempo, várias pessoas passarão a desdenhar o esforço e a prudência.  A inflação também penaliza a poupança e a frugalidade, premia o consumismo e encoraja o endividamento, pois qualquer soma tomada emprestada hoje será paga no futuro com um dinheiro cujo poder de compra será menor do que aquele em que o empréstimo originalmente ocorreu.  O incentivo, consequentemente, passa a ser o de se endividar para pagar mais tarde, em vez de poupar e investir.  A inflação, portanto, diminui o padrão de vida geral ao mesmo tempo em que cria uma falsa e opaca atmosfera de “prosperidade”.

Felizmente, a inflação é um processo que não pode continuar para sempre.  Com o tempo, as pessoas inevitavelmente acordarão para esta forma insidiosa de tributação; elas perceberão a contínua redução do poder de compra do seu dinheiro.

No início, quando os preços sobem, as pessoas dizem: “Bem, isso não é normal; é certamente fruto de alguma emergência. Adiarei minhas compras e esperarei até os preços baixarem”.  Essa é a atitude comum durante a primeira fase de uma inflação.  Essa postura ajuda a conter a subida dos preços e oculta os efeitos da inflação, dado que houve um aumento na demanda por dinheiro.  Mas, à medida que a inflação monetária prossegue, as pessoas começam a perceber que os preços irão aumentar perpetuamente como resultado de uma inflação perpétua.

Neste momento, as pessoas passam a dizer: “Embora os preços estejam ‘altos’, comprarei agora porque, se esperar mais, os preços ficarão ainda mais altos”.  O resultado dessa postura é que a demanda por dinheiro diminui e os preços passam a crescer, em termos proporcionais, mais do que o aumento na oferta monetária.  Neste ponto, o governo normalmente é conclamado para aliviar a ‘escassez’ de moeda gerada pelo crescimento acelerado dos preços e inflaciona ainda mais aceleradamente.  Em pouco tempo, o país chega ao ponto de descontrole absoluto dos preços, e é aí que as pessoas dizem: “Tenho de comprar qualquer coisa agora — qualquer coisa para me livrar deste dinheiro que só desvaloriza”.  A oferta monetária dispara, a demanda por dinheiro despenca e os preços sobem astronomicamente.  A produção cai de forma dramática, pois as pessoas agora dedicam grande parte do tempo tentando descobrir formas de se livrar do seu dinheiro.  O sistema monetário entra em total colapso, e a economia recorre a outras moedas, caso existam — metais ou moedas estrangeiras caso esta inflação seja em um único país; no extremo, a população tem de retornar ao escambo.  O sistema monetário se desintegrou sob o impacto da inflação.

Esta situação de hiperinflação foi observada durante a Revolução Francesa com os assignats, durante a Revolução Americana com os continentais e, especialmente, durante a crise alemã de 1923 com o marco.  Foi também vivenciada pela China e por outros países após a Segunda Guerra Mundial.[5] Mais recentemente, hiperinflações devastaram os principais países da América Latina.

Por fim, uma última condenação da inflação é o fato de que, sempre que o dinheiro recém-criado é utilizado para conceder empréstimos, essa inflação gera os pavorosos “ciclos econômicos”.  Esse processo silencioso, porém mortal, e que passou despercebido por gerações, age da seguinte maneira: o dinheiro é criado pelo sistema bancário de reservas fracionárias, que opera sob os auspícios do governo, e é emprestado para financiar empreendimentos.  Para os empreendedores, esses novos fundos parecem ser investimentos genuínos; mas o problema é que esses fundos não surgiram, como os investimentos que ocorreriam sob um sistema bancário com 100% de reservas, de poupanças voluntárias.

Após esse dinheiro novo ter entrado na economia e ter sido investido por empreendedores em vários projetos, os preços e os salários começam a subir.  O dinheiro novo é também utilizado para pagar os agora mais altos salários dos trabalhadores e os agora também mais caros fatores de produção.  No entanto, após esse novo dinheiro ter perpassado toda a economia, as pessoas tendem a restabelecer suas antigas e voluntárias proporções de consumo/poupança.  Em suma, se as pessoas desejam poupar e investir cerca de 20% de sua renda e consumir o restante, esse novo dinheiro criado pelo sistema bancário e emprestado para empreendimentos irá primeiramente fazer com que a fatia destinada à poupança pareça maior.  Quando o novo dinheiro já tiver chegado a todo o público, as pessoas restabelecem a antiga proporção de 20/80, o que faz com que muitos investimentos se revelem insolventes e não-lucrativos.  A liquidação destes investimentos insolventes, que só se originaram por causa do boom inflacionário, constitui a fase da depressão dos ciclos econômicos.[6]

 

 

  1. O monopólio compulsório da moeda

 

Para que o governo pudesse recorrer à falsificação para aumentar sua receita, várias medidas graduais tiveram de ser tomadas, medidas que, a cada etapa, se distanciavam ainda mais do livre mercado.  O governo não poderia simplesmente invadir um mercado livre e plenamente operante e passar a imprimir suas próprias cédulas de papel.  Caso fizesse isso de maneira abrupta e estabanada, poucas pessoas aceitariam esse dinheiro emitido pelo governo.  Mesmo na época atual, várias pessoas que vivem em “países mais atrasados” simplesmente se recusam a aceitar as cédulas de papel emitidas por seus respectivos governos, e insistem em transacionar somente em ouro.  A intromissão governamental na seara monetária, portanto, tem de ser bem mais sutil e gradual.

Até há poucos séculos, não havia bancos e, consequentemente, não havia como o governo fazer uso do sistema bancário de reservas fracionárias para inflacionar maciçamente, como faz hoje.  O que o governo podia fazer quando somente ouro e prata circulavam?

O primeiro passo, firmemente dado por todos os governos relativamente grandes, foi o de tomar para si próprio o monopólio absoluto da cunhagem.  Este era o meio indispensável para se controlar a oferta de moedas.  A figura do rei ou do nobre era estampada nas moedas e, em seguida, propagava-se o mito de que a cunhagem era uma prerrogativa essencial para a “soberania” real ou baronial.  O monopólio da cunhagem permitia ao governo oferecer quaisquer denominações de moeda que ele, e não o público, desejasse.  Como resultado, a variedade de moedas no mercado foi forçosamente reduzida.

Adicionalmente, agora em posse do monopólio da cunhagem, o governo tinha três opções: ele poderia cobrar um preço alto, que fosse maior do que os custos (senhoriagem), um preço que cobrisse exatamente os custos (brassagem) ou oferecer moedas sem custos.  A senhoriagem, por ser um preço monopolista, impunha um ônus extra à conversão de lingotes em moeda; a cunhagem gratuita, por outro lado, incentivava demasiadamente a manufatura de moedas a partir de lingotes, e forçava os pagadores de impostos a custear os serviços de cunhagem utilizados por terceiros.

Após adquirirem o monopólio da cunhagem, os governos promoveram e estimularam o uso do nome da unidade monetária, se esforçando ao máximo para separar o nome da moeda de sua base em massa (seu peso).  Essa foi também uma medida extremamente importante, pois liberou cada governo da necessidade de aceitar e de agir de acordo com uma moeda comum para todo o mercado mundial.  Em vez de usar grãos ou gramas de ouro e prata, cada estado promoveu seu próprio nome nacional de acordo com seu suposto patriotismo monetário: dólares, marcos, francos etc. A mudança possibilitou aos governos incorrer naquele que viria a ser o principal meio de falsificação da moeda: a adulteração.

 

  1. Adulteração

 

A adulteração foi a prática estatal de falsificar as mesmas moedas que o estado havia banido as empresas privadas de produzir.  Este banimento, é bom lembrar, se deu em nome da “vigorosa” proteção do padrão monetário.  Algumas vezes, o governo cometia uma fraude simples, diluindo secretamente o ouro em uma liga metálica inferior, fabricando moedas ligeiramente mais leves.  Nesta operação, a Casa da Moeda derretia e re-cunhava todas as moedas do reino, devolvendo aos súditos o mesmo número de “libras” ou “marcos”, mas agora com uma massa menor.  Os refugos de ouro e prata que sobravam deste processo eram fundidos em novas moedas, as quais eram embolsadas pelo rei e utilizadas para pagar suas despesas.  Desta maneira, o governo continuamente manipulava e redefinia o mesmo padrão monetário que havia jurado defender.  Os lucros deste processo de adulteração eram arrogantemente reivindicados pelos soberanos como sendo “senhoriagem”.

A adulteração rápida e severa da liga metálica foi uma tradição da Idade Média em praticamente todos os países da Europa.  Por exemplo, em 1200 DC, o livre tournois francês foi definido como sendo 98 gramas de prata pura; por volta de 1600 DC ele já estava sendo definido como apenas 11 gramas.  Um caso notável é o do dinar, a moeda dos sarracenos na Espanha.  O dinar, originalmente, consistia de 65 grãos de ouro, quando foi cunhado pela primeira vez no final do século VII.  Os sarracenos eram notavelmente austeros em questões monetárias, de modo que, em meados do século XII, o dinar ainda continha 60 grãos.  Foi então que os reis cristãos conquistaram a Espanha e, já no início do século XIII, o dinar (agora chamado maravedí) foi reduzido a 14 grãos.  Rapidamente, a moeda de ouro se tornou leve demais para circular, de modo que o termomaravedí passou a ser definido como uma moeda de prata pesando 26 grãos de prata.  Com o tempo, ela também foi diluída e, por volta de meados do século XV, o maravedí possuía apenas 1,5 grão de prata — e, mais uma vez, pequena demais para circular.[7]

 

  1. A Lei de Gresham e a cunhagem

 

  1. Bimetalismo

O governo impõe controles de preços principalmente para desviar a atenção do público.  Em vez de permitir que o público perceba que a inflação é culpa exclusiva do governo, este faz de tudo para atribuir a inflação aos supostos malefícios do livre mercado.

Como já vimos, a “Lei de Gresham” — que afirma que uma moeda artificialmente sobrevalorizada tende a tirar de circulação uma moeda artificialmente subvalorizada — é um exemplo das consequências gerais do controle de preços.  O governo estabelece um preço máximo para uma moeda em termos da outra moeda.  Isso gera uma escassez da moeda sobre a qual o governo estipulou o preço máximo — ela está artificialmente subvalorizada e, consequentemente, será entesourada ou exportada em troca de bens — e faz com que sua circulação seja substituída pela moeda sobrevalorizada.  Vimos como isso funciona também no caso de moedas novas em relação a moedas desgastadas, um dos exemplos mais antigos da Lei de Gresham.

 

Ao desvincular de sua massa a denominação da moeda, e ao padronizar as denominações de acordo com seus próprios interesses em vez de fazê-lo pela conveniência do público, os governos passaram a denominar as moedas novas e as antigas pelo mesmo nome, embora elas apresentassem uma massa distinta.  Como resultado, as pessoas entesouraram ou exportaram as moedas de massa integral e passaram a circular apenas as moedas desgastadas.  Isso fez com que os governos dirigissem vários impropérios e maldições aos “especuladores”, aos estrangeiros ou ao livre mercado em geral — e tudo por causa de uma situação causada pelo próprio governo.

Um caso particularmente importante da Lei de Gresham era o eterno problema do “padrão”.  Vimos que o livre mercado estabeleceu “padrões paralelos” de ouro e prata, com um metal flutuando livremente em relação ao outro de acordo com as condições de oferta e a demanda do mercado.  Mas os governos decidiram que iriam ajudar o mercado intervindo para “simplificar” o assunto.  As coisas ficariam muito mais claras, pensavam eles, se o ouro e a prata fossem fixados em um preço definido, digamos: vinte onças de prata para uma onça de ouro!  Sendo assim, ambas as moedas poderiam circular sempre em uma razão fixa — e, muito mais importante, o governo poderia finalmente se livrar do fardo de ter de tratar o dinheiro de acordo com sua massa; finalmente seria possível ter um nome desvinculado de tudo.

Imaginemos uma unidade monetária da Ruritânia[8], o “rur“, definido pelos ruritânios como 1/20 de uma onça de ouro.  Vimos quão vital é para o governo induzir o público a considerar o “rur” como uma unidade abstrata, apenas muito vagamente relacionada ao ouro.  Não há melhor maneira de fazer isso do que estipulando um valor fixo para a relação ouro/prata.  Sendo assim, um “rur” passaria a ser não somente 1/20 da onça de ouro,mas também uma onça de prata.   O significado exato da palavra “rur” — um nome para uma medida de ouro — está agora perdido, e as pessoas começam a pensar no “rur” como algo tangível por si mesmo, algo que foi, de alguma forma, criado pelo governo para propósitos bons e eficazes sendo igual a uma determinada massa de ouro e de prata, simultaneamente.

Agora é possível perceber a importância de se abster de certas denominações patrióticas e nacionais para onças ou grãos de ouro.  Tão logo estas denominações substituem unidades de medida mundialmente reconhecidas, torna-se muito mais fácil para os governos manipularem a unidade monetária e darem a ela uma aparente vida própria.  A razão ouro-prata a um preço fixo, conhecida como bimetalismo, cumpriu essa tarefa primorosamente.  No entanto, não cumpriu sua outra missão, que era a de simplificar a moeda corrente do país.  Neste caso, novamente, a Lei de Gresham entrou em ação.

O governo normalmente estabelece o valor da razão bimetálica (digamos, 20/1) ao preço vigente no livre mercado.  Mas este valor de mercado, como os preços de mercado, inevitavelmente se altera ao longo do tempo, à medida que as condições de oferta e demanda se alteram.  Na medida em que as mudanças ocorrem, o valor da razão bimetálica anteriormente fixado inevitavelmente se torna obsoleto.  A mudança faz com que ou o ouro ou a prata se tornem sobrevalorizados.  Ato contínuo, o ouro desaparece — é entesourado ou vai para o mercado negro ou é exportado em troca de bens — quando aumenta a oferta de prata.  Tal situação faz o governo alterar o valor da razão bimetálica, o que com que o ouro volte a ser o único meio circulante na Ruritânia.

Por séculos, todos os países sofreram com os calamitosos efeitos destas súbitas alternâncias nos meios circulantes metálicos.  Primeiro, o fluxo de prata aumentava e o ouro desaparecia; depois, à medida que os relativos valores de mercado se alteravam, o ouro voltava a circular e a prata desaparecia.[9]

Finalmente, após penosos séculos de distúrbios causados pelo bimetalismo, os governos decidiram escolher apenas um metal para ser o padrão monetário, geralmente o ouro.  A prata foi relegada à condição de “moedinhas metálicas de pequeno valor”, de pequenas denominações, as quais desconsideravam sua massa total.  (A cunhagem destas moedas também foi monopolizada pelo governo, e, dado que não havia um lastro de 100% em ouro, tal medida foi mais um meio de expandir a oferta monetária).  A erradicação da prata como moeda certamente prejudicou várias pessoas que preferiam usar a prata para várias transações.  Há uma verdade na gritaria dos bimetalistas de que foi cometido um “crime contra a prata”; mas o crime realmente cometido foi a imposição original do bimetalismo no lugar de padrões paralelos.  O bimetalismo criou uma situação extremamente difícil, a qual o governo poderia remediar de duas maneiras: ou retornando à plena liberdade monetária (padrões paralelos) ou escolhendo um dos dois metais como dinheiro corrente (padrão-ouro ou prata).  A plena liberdade monetária, após todo esse tempo, passou a ser considerada absurda e quixotesca; logo, o padrão-ouro foi a escolha dos governos.

  1. Curso forçado

 

Como o governo conseguiu impor seu controle de preço sobre as taxas de câmbio monetárias?  Por um artifício conhecido como leis de curso forçado.  O dinheiro é utilizado tanto para o pagamento de dívidas passadas quanto para transações atuais “em espécie”.  Com a contabilidade das empresas agora exibindo proeminentemente o nome da moeda do país em vez de sua massa, os contratos começaram a requerer o pagamento de determinadas quantias em “dinheiro”.  As leis de curso forçado ditaram qual deveria ser este “dinheiro”.

Quando o ouro e a prata adquiriram o status de “curso forçado”, as pessoas consideraram tal imposição inofensiva; no entanto, elas deveriam ter percebido que um precedente perigoso havia sido criado para o controle governamental do dinheiro.  Se o governo se mantivesse fiel a este dinheiro original, as leis de curso forçado seriam supérfluas e desnecessárias.[10]  No entanto, uma vez aberto este precedente, o governo poderia a qualquer momento declarar como sendo de curso forçado um dinheiro de baixa qualidade em paralelo à moeda original.  Igualmente, o governo poderia decretar que moedas desgastadas são tão válidas quanto moedas novas para se quitar uma dívida, ou decretar que ouro e prata são equivalentes entre si a um dado valor fixo.  E foi exatamente isso o que ocorreu.  Ato contínuo, as leis de curso forçado produziram os efeitos da Lei de Gresham.

Quando as leis de curso forçado consagram uma moeda sobrevalorizada, elas também geram outro efeito: favorecem os devedores à custa dos credores, pois permitem que os devedores paguem suas dívidas com uma moeda de menor qualidade do que aquela em que foi concedido o empréstimo, fazendo com que os credores sejam ludibriados e não recebam o que lhes é de direito.  O confisco da propriedade dos credores, no entanto, beneficia apenas os devedores atuais; os futuros devedores arcarão com o ônus da escassez de crédito gerada pela memória dessa espoliação dos credores patrocinada pelo governo.

 

  1. Resumo: o governo e a cunhagem

 

O monopólio compulsório da cunhagem e a legislação do curso forçado da moeda foram os pontos cruciais na sanha dos governos em obter o controle da moeda de seus países.  Para reforçar tais medidas, cada governo se empenhou em abolir a circulação de todas as moedas cunhadas por governos rivais.[11] Dentro de cada país, somente a moeda de seu próprio soberano poderia ser usada agora; no comércio entre os países, barras de ouro e prata, sem nenhuma estampagem, eram utilizadas nas transações.  Isso acentuou o rompimento dos laços entre as várias partes do mercado mundial, separando ainda mais um país do outro e abalando a divisão internacional do trabalho.

No entanto, a utilização de um sistema monetário sólido, baseado em moedas de ouro e prata, não cedia muito espaço para a inflação governamental.  Havia limites às adulterações que os governos podiam impor à moeda, e o fato de que todos os países utilizavam ouro e prata impunha restrições definitivas ao controle de cada governo sobre seu próprio território.  Os governantes ainda estavam restringidos pela disciplina imposta por uma moeda metálica internacional.

O controle governamental do dinheiro só se tornou absoluto e suas medidas de adulteração e depreciação monetárias só se tornaram incontestadas quando, nos últimos séculos, começaram a surgir os substitutos monetários.  O advento do papel-moeda e dos depósitos bancários — os quais são uma dádiva econômica quando totalmente lastreados por ouro ou prata — representou o “abre-te, Sésamo” da tomada governamental do controle da moeda e, por conseguinte, de todo o sistema econômico.

  1. Permitindo aos bancos se recusarem a restituir em espécie

 

A economia moderna, a qual utiliza de maneira extremamente ampla bancos e substitutos monetários, oferece uma oportunidade irresistível para o governo firmar seu controle sobre a oferta monetária e permitir que haja uma inflação de acordo com seus próprios critérios.  Vimos na seção 12 que existem três grandes limites ao poder de qualquer banco inflacionar sob um sistema bancário de livre concorrência: (1) a amplitude da clientela de cada banco; (2) a amplitude da clientela de todo o sistema bancário, isto é, a amplitude em que as pessoas utilizam substitutos monetários; e (3) a confiança dos clientes em seus respectivos bancos.  Quanto menor a clientela de cada banco, e do sistema bancário como um todo, ou quanto mais abalada estiver a confiança das pessoas em relação aos bancos, mais rigorosos serão os limites sobre a inflação na economia.

Entretanto, privilégios concedidos pelo governo aos bancos, bem como o controle do sistema bancário pelo governo, atuaram para suspender estes limites.

Todos esses limites estão baseados em uma obrigação fundamental: a obrigação dos bancos de restituir seus passivos — o ouro que lhes foi confiado — sempre que demandados.  Porém, como vimos, nenhum banco que opera com reserva fracionada é capaz de restituir todo o seu passivo; e vimos também que essa é a aposta que todos os bancos fazem.  Em qualquer sistema baseado na propriedade privada, é essencial que as obrigações contratuais sejam cumpridas.  Sendo assim, a maneira mais franca de o governo estimular a inflação é concedendo aos bancos o privilégio especial de poderem se recusar a cumprir com suas obrigações e ao mesmo tempo garantir que eles possam continuar normalmente suas operações.

Ao passo que todos os demais agentes econômicos têm de pagar suas dívidas — caso contrário, irão à falência —, aos bancos não apenas é permitido recusar a restituição dos recibos que eles próprios emitiram, como eles ainda podem continuar obrigando seus devedores a pagarem seus empréstimos na data aprazada.  O nome comum para essa prática de recusa é “suspensão da restituição em espécie”.  Um nome mais acurado seria “licença para roubar”, pois de que mais podemos chamar uma permissão governamental para continuar operando sem cumprir os contratos?

Nos Estados Unidos, a suspensão em massa da restituição em espécie durante épocas problemáticas para os bancos se tornou quase que uma tradição.  Isso começou na guerra de 1812.  A maioria dos bancos do país estava localizada na Nova Inglaterra, uma região contrária aos Estados Unidos entrarem em guerra.  Esses bancos se recusaram a emprestar dinheiro para financiar o esforço de guerra, o que obrigou o governo a tomar empréstimos junto a bancos recém-criados em outros estados.  Esses bancos recém-criados simplesmente emitiram dinheiro de papel para poder conceder os empréstimos.  A inflação foi tão grande, que os pedidos de restituição inundaram estes novos bancos, especialmente pedidos vindos dos bancos da Nova Inglaterra, mais conservadores e que não inflacionavam, região onde o governo havia gasto grande parte deste dinheiro adquirindo bens para a guerra.  Como resultado, houve uma maciça “suspensão” em 1814, que durou mais de dois anos (muito além do fim da guerra).  Durante esse período, vários novos bancos surgiram, emitindo cédulas sem a concomitante necessidade de restituir em ouro ou prata.

Esta suspensão criou um precedente para sucessivas crises econômicas: 1819, 1837, 1857 e várias outras até o início do século XX.  Como consequência dessa tradição, os bancos perceberam que não mais precisavam temer a bancarrota após uma inflação — percepção essa que, é claro, estimulou mais inflação e operações bancárias temerárias e especulativas.  Aqueles autores que ressaltam os Estados Unidos do século XIX como sendo um péssimo exemplo de “sistema bancário livre” (free banking) são incapazes de perceber a importância deste explícito privilégio estatal que protegia os bancos e os eximia da obrigação de restituir em espécie seus recibos bancários.

Os governos e os bancos conseguiram persuadir o público a respeito da justiça de tais atos.  Com efeito, qualquer um que tentasse retirar seu dinheiro do banco durante uma crise era considerado “antipatriota” e um espoliador de seus semelhantes, ao passo que os bancos eram frequentemente elogiados por patrioticamente ‘socorrerem a economia’ em tempos difíceis.  Muitas pessoas, no entanto, estavam desgostosas com todo aquele procedimento e foi desse sentimento que surgiu o famoso movimento jacksoniano em prol de uma moeda forte, o qual floresceu antes da Guerra Civil.[12]

Não obstante seu uso nos Estados Unidos, estes privilégios periódicos concedidos aos bancos não se transformaram em uma política generalizada no mundo moderno.  Era um instrumento muito rudimentar, a ser utilizado muito esporadicamente (não poderia ser permanente, já que poucas pessoas se tornariam clientes de bancos que nunca cumpriam com suas obrigações) — e, além disso, tal instrumento não oferecia nenhum meio de controle governamental sobre o sistema bancário.

O que os governos querem, afinal, não é simplesmente inflação, mas sim uma inflação totalmente controlada e dirigida por eles próprios.  Não pode haver nenhum risco de os bancos comandarem, sozinhos, o espetáculo.  Sendo assim, um método mais sutil, mais suave, mais polido e mais permanente foi planejado, implantado e vendido ao público como sendo uma conquista da própria civilização — um Banco Central.

 

  1. O Banco Central: removendo as restrições sobre a inflação

 

Um Banco Central é hoje uma instituição vista como sendo da mesma classe do sistema de saneamento básico e das boas rodovias: qualquer economia que não possua um é considerada “retrógrada”, “primitiva” e irremediavelmente fora da realidade.  A criação de um Banco Central nos Estados Unidos — o Federal Reserve System — em 1913 foi saudada como algo que finalmente colocava o país na classe das nações “avançadas”.

 

Os Bancos Centrais surgiram como instituições privadas.  Mais tarde, como ocorreu nos Estados Unidos, eles passaram a ser uma propriedade conjunta dos bancos privados; mas eles sempre foram governados por funcionários indicados pelo governo, e sempre atuaram explicitamente como um braço do governo.  Quando eles são instituições privadas — como ocorreu com o Banco da Inglaterra original ou com o Second Bank of the United States[13] —, a busca por lucros operacionais se junta ao desejo inflacionário normal do governo.

Um Banco Central é alçado à sua posição de comando porque o governo lhe concede o monopólio de emissão de cédulas monetárias.  Este é o segredo quase nunca mencionado explicitamente, e que lhe garante todo o seu poder.  Atualmente, os bancos privados são proibidos de emitir cédulas, pois tal privilégio é reservado ao Banco Central.  Os bancos privados podem apenas receber depósitos e criar depósitos nominais via empréstimos.  Caso seus clientes desejem sacar seus depósitos, convertendo-os em cédulas, os bancos têm de ir ao Banco Central para obter estas cédulas.  Daí a elevada e pomposa posição do Banco Central como sendo o “banco dos banqueiros”.  Ele é o banco dos banqueiros porque os banqueiros são obrigados a negociar com ele.  Como resultado, os depósitos bancários passaram a ser não apenas em ouro, mas também em cédulas criadas pelo Banco Central.  E essas novas cédulas não eram apenas meras notas de papel; elas eram um passivo do Banco Central, uma instituição envolta em toda aquela majestosa aura de quem é uma extensão do próprio governo.  O governo, afinal, nomeia os funcionários do Banco Central e coordena a política do Banco de acordo outras políticas estatais.  Ele coleta via impostos as cédulas criadas pelo Banco Central e as declara como sendo de curso forçado.

Como consequência dessas medidas, todos os bancos do país se tornaram clientes do Banco Central.[14] O ouro depositado nos bancos foi entregue ao Banco Central e, em troca, o público recebeu as cédulas criadas pelo Banco Central e a descontinuação do uso de moedas de ouro.  As moedas de ouro foram escarnecidas pela opinião “oficial” como sendo incômodas, fora de moda e ineficientes — um “fetiche” antigo, útil talvez para serem colocadas nas meias das crianças no Natal, e somente para isso.  “É muito mais seguro, mais conveniente e mais eficiente ter o ouro guardado nos poderosos cofres do Banco Central!”, dizia a propaganda oficial.  Inundados por essa propaganda e influenciados pela conveniência das cédulas do Banco Central e pelo endosso governamental a elas, o público foi cada vez mais deixando de usar as moedas de ouro no dia a dia.  Inexoravelmente, o ouro fluiu para os cofres do Banco Central; e estando parado ali, mais “centralizadamente”, ele permitia um grau muito maior de inflação dos substitutos monetários.

Nos Estados Unidos, a lei que criou o Federal Reserve obriga os bancos a manterem uma quantidade mínima de reservas em relação aos depósitos à vista; e, desde 1917, estas reservas podem ser formadas apenas por depósitos no Federal Reserve.  O ouro não mais podia ser contabilizado como parte das reservas legais de um banco; ele teria de ser depositado no Federal Reserve.

Além de ter acabado com o hábito de utilizar o ouro, esse processo retirou o ouro do alcance das pessoas e o depositou sob os cuidados nem sempre tão diligentes do estado — onde ele poderia ser confiscado de maneira quase indolor.  Os comerciantes internacionais ainda utilizavam barras de ouro nas transações de grande escala, mas eles eram uma fatia insignificante do eleitorado.

Um dos motivos utilizados para convencer o público a abandonar o ouro e migrar para as cédulas foi a grande confiança que todos tinham no Banco Central.  Certamente, o Banco Central, em posse de quase todo o ouro do país e endossado pelo poder e prestígio do governo, não poderia cometer erros e ir à falência!  E de fato é verdade que nenhum Banco Central na história do mundo jamais faliu.  Mas por que não?  Por causa de uma regra subentendida, mas muito clara, que diz que não se pode deixar que um Banco Central quebre.  Se os governos já permitiam que os bancos privados suspendessem a restituição, quão mais prontamente eles permitiriam que o Banco Central — seu próprio órgão — fizesse o mesmo quando estivesse com problemas?  O precedente já havia sido estabelecido na história dos Bancos Centrais quando a Inglaterra permitiu, no final do século XVIII, que o Banco da Inglaterra suspendesse suas restituições em ouro e as mantivesse suspensas por mais de vinte anos.

O Banco Central, portanto, adquiriu a confiança quase que ilimitada do público.  Naquela época, o público não havia entendido que o Banco Central havia ganhado a permissão para imprimir dinheiro à vontade e permanecer imune a qualquer responsabilidade caso suas credenciais fossem questionadas.  Elas viam o Banco Central como simplesmente um grande banco nacional que realizava um serviço público e que era protegido da falência por ser um braço virtual do governo.

Com o tempo, o Banco Central foi transferindo aos bancos essa mesma confiança que ele usufruía junto ao público.  Mas essa era uma tarefa mais difícil.  Para facilitar, o Banco Central deixou claro que sempre atuaria como um “emprestador de última instância” para os bancos — isto é, que o Banco Central estaria sempre pronto para emprestar dinheiro para qualquer banco que enfrentasse problemas, especialmente quando vários bancos estivessem com problemas de liquidez e fossem instados a quitar seus passivos.

Os governos também continuaram amparando os bancos ao desencorajar as “corridas” bancárias (ou seja, nos casos em que vários clientes suspeitam que há algo de errado com a saúde do banco e correm para sacar sua propriedade).  Sempre haverá aqueles períodos em que o governo permitirá que os bancos suspendam a restituição, como ocorreu nos Estados Unidos com os “feriados” bancários compulsórios de 1933.  Adicionalmente, foram também aprovadas leis que proibiam qualquer tipo de incitação pública a corridas bancárias.  Na depressão americana de 1929, o governo fez campanhas contra as pessoas “egoístas” e “antipatrióticas” que estavam “entesourando” ouro.

Os Estados Unidos finalmente “resolveram” o incômodo problema das falências bancárias quando o governo adotou o Seguro Federal de Depósitos (Federal Deposit Insurance) em 1933.  A Federal Deposit Insurance Corporation possui apenas uma proporção ínfima de dinheiro “lastreando” todos os depósitos bancários que ela “garante”.  No entanto, o público tem a impressão (a qual pode muito bem ser verdadeira) de que o governo federal sempre estará de prontidão para imprimir uma quantidade de dinheiro suficiente para restituir todos os depósitos segurados.  Como resultado, o governo conseguiu transferir para todo o sistema bancário, bem como para o Banco Central, toda a grande confiança que ele usufruía junto ao público.

Vimos que, ao criar um Banco Central, os governos ampliaram enormemente, se não aboliram por completo, dois dos três principais limites à inflação creditícia criada pelos bancos.  Mas e o terceiro limite — o problema da limitação da clientela de cada banco?  A remoção deste limite é uma das principais razões para a existência de um Banco Central.  Em um sistema bancário livre, a inflação gerada por um determinado banco rapidamente levaria os outros bancos a exigirem a restituição deste dinheiro fictício em espécie, uma vez que a clientela deste banco é extremamente limitada.  Porém, o Banco Central, ao injetar reservas em todos os bancos ao mesmo tempo, consegue garantir que todos possam expandir conjuntamente, a uma taxa uniforme.  Se todos os bancos estão expandindo conjuntamente, então não há problema de restituição de banco para banco; aquele dinheiro que o Banco A criou e foi parar na conta-corrente de um cliente do Banco B é contrabalançado pelo dinheiro que os Bancos B, C, D etc. criaram e que foi parar na conta do Banco A. Assim, cada banco percebe que sua clientela é na realidade todo o país.

Em suma, os limites da expansão bancária são incomensuravelmente ampliados da clientela de cada banco para a clientela de todo o sistema bancário.  (Obviamente, isso significa que nenhum banco poderá expandir além daquilo que o Banco Central desejar).

Desta forma, o governo finalmente alcançou o poder de controlar e conduzir a inflação do sistema bancário.

Além de remover os limites naturais sobre a inflação, o ato de instituir um Banco Central possui um impacto inflacionário direto.  Antes do surgimento do Banco Central, os bancos mantinham suas reservas em ouro; após o surgimento, o ouro flui para o Banco Central em troca de depósitos em dinheiro feito pelo Banco Central nestes bancos, os quais formam as reservas dos bancos comerciais.  Porém, o próprio Banco Central mantém somente uma fração de reserva de ouro em relação a todo o seu passivo!  Por isso, a instituição de um Banco Central multiplica imensamente o potencial inflacionário do país.[15]

 

  1. O Banco Central: dirigindo a inflação

 

Exatamente como o Banco Central realiza sua tarefa de regular os bancos?  Controlando as “reservas bancárias” — o dinheiro que os bancos possuem depositado junto ao Banco Central.  Os bancos tendem a manter em caixa uma determinada proporção de reservas em relação ao total de depósitos bancários.  O controle governamental sobre o setor tornou mais fácil a imposição de um percentual mínimo a ser mantido pelos bancos — chamado popularmente de compulsório.

O Banco Central, desta forma, pode estimular a inflação injetando reservas no sistema bancário.  Pode também reduzir a taxa do compulsório, permitindo assim uma maior expansão creditícia dos bancos.  Se os bancos são requeridos a manter um compulsório de 10% (o que significa que para cada $100.000.000 em depósitos bancários há apenas $10.000.000 em reservas bancárias; todo o resto é dinheiro puramente eletrônico, sem nenhum lastro), então qualquer valor em reservas que exceda estes 10% permitirá uma nova rodada de inflação monetária.  Se houver, por exemplo, uma quantia excedente de $1.000.000 nas reservas bancárias, tal valor permitirá a criação de empréstimos (inflação monetária) no valor de $10.000.000.

Dado que os bancos lucram com a expansão de crédito, e dado que o governo os tornou quase imunes à falência, eles estarão sempre se esforçando para criar crédito até o limite máximo permitido.

O Banco Central aumenta a quantidade de reservas bancárias comprando ativos no mercado.  O que acontece, por exemplo, se o Banco Central comprar um ativo (qualquer ativo) do senhor Ricardo no valor de $ 1.000?  O Banco Central enviará um cheque de $1.000 para o senhor Ricardo em troca do ativo.  Mas como o Banco Central não trabalha com conta-corrente de indivíduos, o senhor Ricardo pegará este cheque e o depositará em seu banco.  O banco de Ricardo, por conseguinte, irá creditar em sua conta um depósito de $1.000 e em seguida apresentará o cheque ao Banco Central para receber a restituição deste — ou seja, o Banco Central terá de creditar $1.000 nas reservas deste banco.  De onde virão estes $1.000?  De lugar nenhum.  O Banco Central simplesmente cria esse dinheiro do nada.[16]

Esses $1.000 em reservas permitirão uma expansão múltipla do crédito bancário, especialmente se as reservas acrescentadas desta forma estiverem difundidas por vários bancos ao redor de todo o país.

Se o Banco Central compra um ativo diretamente de um banco, então o resultado é ainda mais claro; o banco tem as suas reservas imediatamente elevadas, o que cria uma base para uma expansão múltipla do crédito.

Indubitavelmente, o ativo que o Banco Central mais compra são os títulos da dívida do governo.  Agindo assim, o Banco Central garante que sempre haverá liquidez para este mercado.  Mais ainda: o governo garante que sempre haverá um mercado para seus próprios títulos.  O governo pode facilmente inflacionar a oferta monetária ao emitir novos títulos da dívida pública: com o Banco Central deixando claro que irá sempre comprar tais títulos, o sistema bancário irá criar dinheiro para adquirir estes títulos e em seguida irá revendê-los para o Banco Central.  Muitas vezes, a função do Banco Central será justamente a de sustentar o preço dos títulos da dívida pública em um determinado nível, comprando maciçamente estes títulos em posse dos bancos.  Isso irá gerar um aumento substancial das reservas bancárias.  E caso os bancos decidam expandir o crédito tendo por base estas reservas, o resultado será uma hiperinflação.

Além de comprar ativos, o Banco Central pode criar novas reservas bancárias de outra maneira: emprestando dinheiro aos bancos.  A taxa que o Banco Central cobra dos bancos por esse serviço é a “taxa de redesconto”.  É claro que reservas emprestadas não são tão satisfatórias aos bancos quanto as que lhes pertencem totalmente, uma vez que estas últimas não exigem uma quitação.  Empréstimos feitos pela janela de redesconto têm de ser quitados.  Alterações na taxa de redesconto costumam ser muito alardeadas, mas elas certamente são de menor importância se comparadas às alterações nas quantidades de reservas bancárias e no compulsório.

Quando o Banco Central vende ativos para os bancos ou para o público, as reservas bancárias diminuem e isso gera pressão para uma contração no crédito e uma deflação da oferta monetária.  Vimos, no entanto, que os governos são inerentemente inflacionários; historicamente, ações deflacionárias dos governos são insignificantes e passageiras.  E há algo que sempre é esquecido: uma deflação só pode acontecer após ter havido uma inflação prévia; somente pseudo-recibos [ou dinheiro eletrônico], e não moedas de ouro, podem ser retirados da economia e liquidados.

 

  1. A saída do padrão-ouro

 

A criação de um Banco Central remove os limites sobre a expansão creditícia dos bancos, e desencadeia a máquina inflacionária.  No entanto, ele não remove todas as restrições.  Ainda existe um problema com o próprio Banco Central.  Os cidadãos podem perfeitamente fazer uma corrida ao Banco Central, mas isso é bastante improvável.  Uma ameaça mais plausível é a perda de ouro para nações estrangeiras.  Assim como a expansão creditícia de um banco gera a perda de ouro de suas reservas para os clientes de outros bancos não tão expansionistas, a expansão monetária de um país leva a uma perda de ouro para cidadãos de outros países.

Países que expandem sua oferta monetária mais intensamente correm o risco de sofrer perdas de ouro, com seu sistema bancário recebendo requisições para restituir em ouro todo o dinheiro que criaram.  Era assim que ocorria o clássico padrão cíclico do século XIX: o Banco Central de um determinado país estimulava uma expansão do crédito bancário; os preços subiam; e quando este dinheiro recém-criado se espalhava além-fronteiras, indo para uma clientela estrangeira, estes estrangeiros tentavam continuamente restituir este dinheiro em ouro.  No final, o Banco Central era obrigado a interromper essa expansão creditícia e gerar uma contração no crédito para salvar o padrão monetário.

Há, no entanto, uma maneira de evitar estas restituições estrangeiras: coordenar uma cooperação entre os Bancos Centrais.  Se todos os Bancos Centrais concordarem em inflacionar aproximadamente à mesma taxa, nenhum país perderia ouro para outros, e todo o mundo poderia inflacionar conjuntamente, de maneira quase ilimitada.  No entanto, dado que todos os governos são ciosos do próprio poder e suscetíveis a diferentes pressões, tal cooperação coordenada até agora vem se mostrando impossível.  Um dos arranjos que mais perto chegou desse ideal foi quando o Federal Reserve concordou em gerar uma inflação doméstica na década de 1920 para auxiliar a Grã-Bretanha e evitar que ela perdesse ouro para os Estados Unidos.

Ao longo da primeira metade do século XX, os governos, em vez de deflacionar ou de limitar as próprias inflações, simplesmente optaram por “sair do padrão-ouro” quando confrontados com grandes demandas pelo metal.  Tal medida, obviamente, assegurou que o Banco Central jamais irá falir, já que agora suas cédulas se tornaram a moeda padrão.  Em suma, o governo finalmente se recusou de maneira franca e direta a pagar suas dívidas, e praticamente absolveu o sistema bancário desta onerosa obrigação.  Pseudo-recibos de ouro foram inicialmente lançados sem lastro, e então, quando o dia do ajuste de contas se aproximou, a falência foi descaradamente abolida pela simples eliminação da restituição em ouro.  A separação definitiva entre os vários nomes das moedas nacionais (dólar, libra, marco, etc.) e o ouro e a prata estava agora completa.

De início, os governos se recusaram a admitir que tal medida fosse permanente.  Eles diziam que tal medida era meramente de rotina, e citavam a “suspensão dos pagamentos em espécie” que sempre ocorria no século XIX.  O objetivo era fazer crer que, no final, depois que a guerra ou alguma outra “emergência” terminasse, o governo voltaria a restituir suas obrigações.  Quando o Banco da Inglaterra ficou sem ouro no final do século XVIII, ele ainda continuou nesta situação por mais vinte anos, mas sempre dando a entender que a restituição em ouro voltaria assim que as guerras francesas terminassem.

Contudo, “suspensões” temporárias são meros eufemismos para calote.  O padrão-ouro, afinal, não é uma torneira que pode ser aberta e fechada de acordo com os caprichos do governo.  Um certificado de ouro ou é restituível em ouro ou não é; uma vez que a restituição é suspensa, o padrão-ouro se transforma em um mero escárnio.

Outra medida tomada rumo à lenta extinção do ouro como moeda foi a criação do “padrão barra-ouro”.  Neste sistema, o dinheiro de papel não mais era restituível em moeda de ouro; ele só poderia ser restituído em enormes e extremamente valiosas barras de ouro.  Isso, com efeito, limitou a restituição em ouro a apenas um punhado de especialistas voltados para o comércio exterior.  Não mais havia um genuíno padrão-ouro, mas os governos ainda assim insistiam em afirmar sua adesão ao ouro.  Os “padrões-ouro” europeus da década de 1920 eram pseudopadrões deste tipo.[17]

No final, os governos “saíram do ouro” de maneira oficial e irreversível, sempre vociferando insultos contra os estrangeiros e os “antipatrióticos entesouradores de ouro”.  O dinheiro de papel emitido pelo governo se tornou a moeda padrão, de curso forçado.  Em algumas ocasiões, papéis emitidos pelo Tesouro e não pelo Banco Central foram a moeda fiduciária, especialmente antes da criação dos Bancos Centrais.  Os continentais norte-americanos[18], os “greenbacks”,[19] as cédulas dos confederados[20] do período da Guerra Civil Norte-Americana e os assignats franceses — todas eram moedas fiduciárias emitidas por seus respectivos Tesouros.  Mas seja do Tesouro ou do Banco Central, o efeito de uma emissão de dinheiro fiduciário é o mesmo: o padrão monetário fica totalmente à mercê do governo, e os depósitos bancários são restituíveis somente em cédulas de papel emitidas pelo próprio governo.

  1. A moeda fiduciária e o problema do ouro

 

Quando um país sai do padrão-ouro e vai para o padrão fiduciário, ele aumenta a quantidade de “dinheiros” existente.  Além do dinheiro metálico, ouro e prata, surgem outras moedas independentes e estatais, cada qual conduzida por seu respectivo governo, o qual impõe suas regras de curso forçado.

Assim como o ouro e a prata terão uma taxa de câmbio entre si no livre mercado, também o mercado estabelecerá taxas de câmbio para as diversas moedas agora existentes.  Em um mundo de moedas fiduciárias, cada moeda corrente, caso seus governos permitam, flutuará livremente em relação a todas as outras.

Vimos que, para quaisquer duas moedas, a taxa de câmbio entre elas é estabelecida de acordo com as respectivas paridades do poder de compra, sendo que tais paridades, por sua vez, são determinadas pelas respectivas ofertas e demandas das várias moedas correntes.  Quando uma determinada moeda deixa de funcionar tendo o ouro por base e passa a funcionar de forma puramente fiduciária, a confiança na sua estabilidade e na sua qualidade é abalada, e a demanda por ela diminui.  Adicionalmente, agora que ela foi totalmente separada do ouro, sua quantidade excessivamente maior em relação ao antigo lastro em ouro se torna evidente.  Com uma oferta maior do que o ouro e uma demanda menor, seu poder de compra e, consequentemente, a taxa de câmbio, rapidamente se depreciarão em relação ao ouro.  E, dado que o governo é uma instituição inerentemente inflacionária, ele continuamente depreciará a moeda ao longo do tempo.

Tal depreciação é altamente constrangedora para o governo — e prejudica aqueles cidadãos que tentam importar bens.  A existência de ouro na economia é um constante lembrete da péssima qualidade do dinheiro de papel fornecido pelo governo e sempre representa uma ameaça de que, a qualquer momento, ele pode vir a substituir o papel como dinheiro do país.  Mesmo com o governo fornecendo todo o suporte para o dinheiro fiduciário, com seu prestígio e suas leis de curso forçado, moedas de ouro nas mãos do público sempre representam uma permanente ameaça e reprovação ao poder governamental sobre o dinheiro da nação.

Na primeira depressão americana, de 1819 a 1821, quatro estados (Tennessee, Kentucky, Illinois e Missouri) instituíram bancos estatais, que emitiam papel-moeda fiduciário.  Esse dinheiro contava com disposições estaduais que garantiam seu curso forçado nestes estados; contava também, em algumas ocasiões, com proibições legais contra a depreciação das cédulas.  Mesmo assim, todos esses experimentos, nascidos com grandes esperanças, prontamente fracassaram, dado que o dinheiro de papel rapidamente se depreciava até chegar a um valor irrisório.  Os projetos tiveram de ser prontamente abandonados.  Posteriormente, os “greenbacks” circularam como papel fiduciário no norte do país durante e após a Guerra Civil.  Todavia, na Califórnia, as pessoas se recusaram a aceitar os “greenbacks” e continuaram a utilizar o ouro como moeda.  Como explicou um eminente economista:

Na Califórnia, assim como em outros estados, o papel-moeda era de curso forçado e recebível para dívidas públicas; não havia nenhuma desconfiança ou hostilidade em relação ao governo federal.  Mas havia um sentimento forte […] favorável ao ouro e contra o papel-moeda […] Cada devedor possuía o direito, dado por lei, de pagar suas dívidas em papel depreciado.  Mas, se o fizesse, ele estaria marcado (o credor provavelmente publicaria seu nome nos jornais) e seria praticamente boicotado.  Durante todo esse período, o dinheiro de papel não foi utilizado na Califórnia.  O povo do estado efetuava suas transações em ouro, enquanto todo o restante dos Estados Unidos utilizava o papel-moeda conversível.[21]

Ficou claro para os governos que eles não podiam se dar ao luxo de permitir que as pessoas portassem e utilizassem ouro.  O governo jamais seria capaz de consolidar seu poder sobre a moeda-corrente do país se o povo, quando necessário, pudesse repudiar a moeda fiduciária e voltar para o ouro como seu dinheiro.  Previsivelmente, os governos proibiram seus cidadãos de ter ouro.  Nos Estados Unidos, o ouro, a não ser em quantias insignificantes para propósitos industriais ou ornamentais, foi nacionalizado.  Pedir a devolução desta propriedade confiscada é, hoje, uma atitude considerada irremediavelmente retrógrada e antiquada.[22]

 

  1. A moeda fiduciária e a Lei de Gresham

 

Com a instituição do papel-moeda fiduciário e de curso forçado e com a proibição do ouro, o caminho estava sedimentado para uma inflação em grande escala conduzida pelo governo.  Restou apenas uma única restrição: a ameaça de uma hiperinflação e a consequente destruição da moeda.

A hiperinflação ocorre quando o público percebe que o governo está determinado a continuar inflacionando — quase sempre para financiar seus próprios gastos — e decide se esquivar do imposto inflacionário gastando o mais rapidamente possível seu dinheiro, enquanto ele ainda possui algum valor.  Entretanto, enquanto a hiperinflação não ocorre, o governo pode continuar gerenciando a moeda e a inflação sem maiores problemas.

Todavia, surgem novas dificuldades.  Como sempre, a intervenção governamental para sanar um problema acaba gerando uma série de outros novos e inesperados problemas.  Em um mundo de moedas fiduciárias, em que cada país possui seu próprio dinheiro, a divisão internacional do trabalho é gravemente afetada, e os países, que antes estavam unidos pela mesma moeda metálica, agora se fragmentam em unidades autárquicas.  A ausência de uma certeza monetária afeta ainda mais o comércio.  O padrão de vida de cada país fica aquém do potencial.  Cada país possui taxas de câmbio que flutuam em relação a todas as outras moedas.  Um país que inflacione muito mais do que os outros agora não mais tem de temer uma perda de ouro.  Mas ele sofrerá outras consequências desagradáveis: a taxa de câmbio de sua moeda cairá em relação às moedas estrangeiras.  Isso não apenas será constrangedor, como também será perturbador para seus cidadãos, que temerão uma desvalorização contínua.  Tal inflacionismo também aumenta enormemente o preço dos bens importados, o que afetará bastante aqueles países cuja economia depende do comércio internacional.

Exatamente por isso, a tendência é que os governos cada vez mais adotem políticas conjuntas visando à abolição, ou a limitação máxima, das taxas de câmbio flutuantes.  Taxas de câmbio fixadas arbitrariamente em relação a outras moedas já foram tentadas.  A Lei de Gresham nos informa exatamente qual será o resultado de qualquer controle de preço arbitrário desse tipo.  Qualquer que seja a taxa adotada, não será a do livre mercado, já que esta só pode ser determinada no dia a dia do mercado.  Consequentemente, uma moeda sempre estará artificialmente sobrevalorizada e a outra, subvalorizada.

Historicamente, e também ao longo do século XX, os governos sempre optaram por sobrevalorizar deliberadamente suas moedas — por razões de prestígio, e também por causa das consequências inerentes.  Quando uma moeda é sobrevalorizada por decreto, as pessoas correm para trocá-la pela moeda subvalorizada, cujo preço, obviamente, está artificialmente baixo.  Isso gera um excedente da moeda que está sobrevalorizada e uma escassez da moeda que está subvalorizada.  A taxa de câmbio, em suma, não tem a liberdade de se mover em direção a um valor que equilibre este mercado de câmbio.  Ao longo do século XX, as moedas estrangeiras geralmente foram artificialmente sobrevalorizadas em relação ao dólar.  O resultado foi o famoso fenômeno da “escassez de dólares” — outro exemplo prático da Lei de Gresham —, o que levou estes países a clamar por auxílio dos Estados Unidos para contornar este “problema”.

No presente, o mundo está mergulhado em uma caótica rede de controles cambiais, blocos monetários, restrições à conversibilidade e múltiplas taxas de câmbio.  Em alguns países, um “mercado negro” para o câmbio de moedas é legalmente estimulado para que a taxa de câmbio verdadeira possa ser determinada, e várias taxas discriminatórias são estipuladas para diferentes tipos de transações.

Já está claro que o sonho dos inflacionistas é algum tipo de papel-moeda mundial, manipulado por um governo e por um Banco Central mundiais, inflacionando a oferta monetária de todos os países a uma taxa comum.  No entanto, este é um sonho mais distante, para um futuro muito indefinido; ainda estamos longe de um governo mundial, e os problemas das moedas nacionais têm sido variados e conflitantes demais para permitirem que tudo seja mesclado em uma única unidade monetária.  Contudo, o mundo tem se movido a passos firmes para essa direção. O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, é uma instituição basicamente criada para estimular, em termos gerais, controles de câmbio e de capital.  O FMI requer que cada país membro contribua com o dinheiro de seus pagadores de impostos para um fundo destinado a socorrer governos que estejam com déficits em seus balanços de pagamento e que necessitem de dólares para manipular suas taxas de câmbio.

 

  1. O governo e o dinheiro

 

Muitas pessoas acreditam que o livre mercado, apesar de algumas admitidas vantagens, é um retrato da desordem e do caos.  Nada é “planejado”, tudo é fortuito.  Já os ditames governamentais, por outro lado, parecem ser simples e ordeiros; decretos e leis podem ser criados, aprovados, impingidos e obedecidos.  Em nenhuma área da economia esse mito é mais predominante do que no campo monetário.  Para estas pessoas, é inquestionável que pelo menos o dinheiro tem de estar submetido a um estrito e severo controle governamental.

Mas o dinheiro é o sangue de toda a economia; ele é o meio que possibilita todas as transações.  Se o governo passa a controlar o dinheiro, então ele já capturou um posto de comando vital sobre toda a economia, e assegurou um trampolim para o pleno socialismo.

Vimos também que um livre mercado monetário, contrariamente às pressuposições comuns, não seria caótico, e que, com efeito, poderia ser um modelo de ordem e eficiência.

E o que aprendemos a respeito do governo e do dinheiro?  Aprendemos que, ao longo dos séculos, os governos foram contínua e crescentemente se intrometendo no livre mercado até finalmente tomarem o total controle do sistema monetário.  Vimos que cada novo controle criado, muitas vezes aparentemente inócuo, dava ensejo a novos e mais profundos controles.  Vimos que os governos são inerentemente inflacionários, uma vez que a inflação é um mecanismo tentador para se adquirir receitas para o estado e para seus grupos de interesse favoritos.  A captura lenta, porém decisiva, das rédeas monetárias foi, portanto, utilizada para (a) inflacionar a economia a um ritmo estipulado pelo governo, e (b) criar uma tendência mais socialista para toda a economia.

Adicionalmente, a intromissão do governo no âmbito monetário não apenas trouxe ao mundo uma tirania nunca antes vista, como também gerou o caos em vez da ordem.  Essa intromissão fragmentou destrutivamente o pacífico e produtivo mercado mundial, fazendo com que o comércio e os investimentos fossem tolhidos e obstruídos por uma miríade de restrições, controles, taxas de câmbio artificiais, colapsos monetários etc. A intromissão ajudou a produzir guerras ao transformar um mundo de relações pacíficas em uma selva de blocos monetários em constantes desavenças e guerras cambiais, o que estimulou o protecionismo e dificultou o comércio mundial.

Em suma, descobrimos que a coerção, tanto no âmbito monetário quanto em outras áreas, produz não a ordem, mas sim o conflito e o caos.

 

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Notas

[1] O confisco direto de bens, portanto, não é agora tão amplo quanto a expropriação monetária.  Mas exemplos do primeiro caso ainda ocorrem na forma de desapropriação de terras de acordo com o “devido processo legal”, de aquartelamento de tropas em um país ocupado e, especialmente, de utilização coerciva de mão-de-obra (por exemplo, recrutamento para o serviço militar obrigatório, convocação compulsória para se ser jurado, e obrigatoriedade do comércio de manter o registro dos impostos e de reter impostos na fonte).

[2] Virou moda ridicularizar a preocupação demonstrada pelos “conservadores” para com “as viúvas e os órfãos” prejudicados pela inflação. E, no entanto, esse é exatamente um dos principais problemas que devem ser enfrentados. Será que é realmente “progressista” roubar viúvas e órfãos e utilizar os proventos para subsidiar fazendeiros ricos e empresários poderosos?

[3] Esse erro será maior naquelas empresas com equipamentos mais velhos e nas indústrias mais pesadamente capitalizadas. Um excessivo número de empresas, por conseguinte, irá fluir para essas indústrias durante uma inflação. Para aprofundar a discussão sobre este erro contábil gerado pela inflação, ver W, T. Baxter, “The Accountant’s Contribution to the Trade Cycle”, Economica, maio de 1955, p.99-112.

[4] Nesta época em que se dá atenção extasiada para “índices do custo de vida” (o que gera, por exemplo, contratos em que os salários variam de acordo com a inflação), há um forte incentivo para se aumentar preços de uma maneira que não seja explicitada pelo indicador.

[5] Sobre o exemplo alemão, ver Constantino Bresciani-Turroni, The Economics of Inflation, Londres, George Allen amd Unwin, 1937.

[6] Para discussões mais aprofundadas, ver Murray N. Rothbard. A Grande Depressão Americana, Instituto Rothbard, parte I.

[7] Sobre a adulteração da liga das moedas, ver Elgin Groseclose, Money and Man, Nova York, Frederick Ungar, 1961, p. 57-76.

[8] País imaginário, localizado em algum local da Europa germânica, regido por uma monarquia absolutista, com profundas divisões sociais, criado por Anthony Hope (1863-1933) nos romances O prisioneiro de Zenda(1894), O coração da princesa Osra (1896) e Rupert de Hentzau (1898). O país foi utilizado pela primeira vez como exemplo por Ludwig von Mises no capítulo 23 da obra The Theory of Money and Credit (1912), criando a unidade monetária “rur”. (N. do T.)

[9] Muitas depreciações aconteceram de maneira encoberta, com governos alegando que estavam meramente fazendo com que o valor oficial da razão ouro-prata se aproximasse mais do valor de mercado.

[10] Lord Farrer, Studies in Currency 1898, Londres, Macmillan, 1898, p.43.

A lei comum dos contratos produz tudo o que é necessário, sem lei nenhuma conferir funções especiais a determinadas formas de moeda corrente. Adotamos um soberano de ouro como nossa unidade […] Se eu prometo pagar 100 soberanos, não é necessária nenhuma lei especial de curso forçado para dizer que devo pagar 100 soberanos e que, estando eu obrigado a pagar 100 soberanos, não posso me desfazer desta obrigação pagando com uma moeda distinta.

Sobre leis de curso forçado, ver também Ludwig von Mises, Human Action, Yale University Press, 1949, p.432n. e 444.

[11] O uso de moedas estrangeiras era predominante na Idade Média e nos Estados Unidos até a metade do século XIX.

[12] Ver Horace White, Money and Banking, 4th ed., Boston, Ginn, 1911, p. 322-27.

[13] Segundo Banco dos Estados Unidos, criado em 1816 e abolido em 1836, foi um precursor do Federal Reserve. [N. do T.]

[14] Nos Estados Unidos, os bancos foram forçados por lei a se submeter ao Federal Reserve e a manter contas (reservas) junto ao Fed. (Os “bancos estaduais” que não são membros do arranjo comandado diretamente pelo Fed têm de manter reservas em bancos que são membros).

[15] A criação do Federal Reserve aumentou em três vezes o poder inflacionário do sistema bancário dos Estados Unidos. Adicionalmente, o Federal Reserve também reduziu o valor exigido de reservas (chamado de compulsório) de todos os bancos de aproximadamente 21% dos depósitos à vista em 1913 para 10% em 1917, duplicando o potencial inflacionário – essas duas medidas combinadas geraram um potencial inflacionário seis vezes maior. Ver Chester A. Phillips, T. F. McManus e R.W. Nelson, Banking and Business Cycle, Nova York, Macmillan, 1937, p. 23ss.

[16] No mundo atual, tudo é feito pela simples criação de dígitos eletrônicos em um computador. [N. do T.]

[17] Ver Melchior Palyi, “The Meaning of Gold Standard”, Journal of Business, Julho de 1941, p. 299-304.

[18] Papel-moeda emitido pelo Congresso Continental em 1775. (N. do T.)

[19] Papel-moeda emitido durante a Guerra Civil Norte-Americana.  Podiam ser de dois tipos: as Demand Notes (emitidas de 1861-1862) e as United State Notes (moeda corrente de 1862 a 1971). (N. do T.)

[20] Também chamadas de “greybacks“, foram emitidas pela então recém-formada Confederação de Estados do Sul um pouco antes do advento da guerra. Como não tinham lastro em grandes ativos, além de moeda corrente na Confederação, funcionariam também como um título ao portador ao fim da guerra, que poderia ser restituído no valor impresso na cédula, caso o Sul saísse vitorioso e se tornasse independente. As emissões foram de 1861 a 1864. (N.do T.)

[21] Frank W. Taussig, Principles of Economics, 2nd. Ed., Nova York, Macmillan, 1916, vol.I, p. 312. Ver também J. K. Upton, Money in Politics, 2nd. Ed. Boston, Lothrop Publishing, 1895, p. 69 ss.

[22] Para uma análise incisiva dos passos dados pelo governo norte-americano para confiscar o ouro das pessoas e sair do padrão-ouro em 1933, ver Garet Garrett, The People’s Pottage, Idaho, Caxton Printers, 1953, p. 15-41.

 

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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