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A Tragédia do Euro

6. Por que a Alemanha abriu mão do marco alemão
Se o euro implicava várias desvantagens para a Alemanha, como é possível que o país tenha concordado com sua introdução? O fato é que a maioria da população da Alemanha queria manter o marco alemão (algumas pesquisas mostravam que aproximadamente 70% dos alemães queriam manter o marco). Por que então os políticos não deram ouvidos à opinião majoritária?
A explicação mais factível é que o governo alemão sacrificou o marco com o objetivo de abrir caminho para a reunificação do país em 1990. Imediatamente após a derrubada do muro de Berlim, começaram as negociações para a reunificação. Os negociadores eram compostos pelas duas Alemanhas e pelos aliados vencedores da Segunda Guerra Mundial: o Reino Unido, os Estados Unidos, a França e a União Soviética.

A Alemanha ainda estava sujeita à dominação. Nenhum tratado de paz havia sido assinado com a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. O Acordo de Potsdam, de 1945, estipulava que um tratado de paz seria assinado quando um governo adequado fosse estabelecido. Porém, tal tratado nunca foi assinado. A Alemanha não usufruía soberania plena porque os aliados exerciam direitos especiais de controle sobre o país até o início do Tratado Dois Mais Quatro em 1991.[1]

Em 1990, a União Soviética ainda tinha tropas posicionadas na Alemanha Oriental, enquanto EUA, França e Grã-Bretanha comandavam tropas na parte ocidental. Todas as quatro forças ocupantes eram potências atômicas cujas forças armadas eram vastamente superiores às da Alemanha. Sem a autorização destas quatro potências, a unificação da Alemanha não teria sido possível. Em particular, os governos francês e britânico temiam a força de uma Alemanha unificada, a qual poderia facilmente exigir seu lugar natural dentro da estrutura de poder europeia: trata-se da nação mais populosa, a mais forte economicamente e está localizada no centro estratégico da Europa.[2]

Para reprimir este poder, o Tratado Dois Mais Quatro, ou Tratado sobre a Regulamentação Definitiva Referente à Alemanha, especificou que o governo alemão teria de abrir mão de todas as reivindicações sobre os territórios que haviam sido tomados da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Além disso, a Alemanha teria de pagar vinte e um bilhões de marcos alemães para a União Soviética para que ela retirasse suas tropas da região oriental do país.[3] O governo alemão tinha de reduzir o tamanho do seu efetivo militar e reiterar sua renúncia à posse ou ao controle de armas nucleares, biológica e químicas.

Muito mais temido do que as forças armadas alemãs — formadas primordialmente por uma infantaria destinada a conter um ataque soviético à OTAN — era o Bundesbank. O Bundesbank repetidamente forçava as outras nações a adotar políticas monetárias mais austeras — isto é, a reduzir sua velocidade de impressão de dinheiro —, ou a realinhar suas taxas de câmbio. Parece possível, se não plausível, que a Alemanha tenha aberto mão do marco alemão e de sua soberania monetária em troca da reunificação.[4] O ex-presidente da Alemanha, Richard von Weizsäcker, alegou que o euro seria “nada mais do que o preço da reunificação”.[5] O ex-secretário das relações exteriores, Hans-Dietrich Genscher, afirmou, a respeito da introdução do euro, que os eventos faziam parte do pagamento de promessas feitas por ele durante o processo da reunificação alemã.[6] Similarmente, o político alemão Norbert Blüm declarara que a Alemanha teria de fazer sacrifícios — no caso, o marco alemão — em prol do novo formato europeu.[7] Horst Teltschik,[8] conselheiro de política externa do chanceler Helmut Kohl, citou a si próprio ao dizer a um jornalista francês (três semanas após a queda do Muro de Berlim em 1989) que “o governo federal alemão estava agora em uma posição na qual teria de aceitar praticamente qualquer iniciativa francesa para a Europa”.[9]

Kohl considerava o euro uma questão de guerra e paz. Após a reunificação, Kohl queria construir uma Europa politicamente unificada em torno da França e da Alemanha. Kohl queria conquistar seu lugar nos livros de história como o construtor da reunificação alemã e da união política da Europa.[10] Para ter êxito, ele precisava da colaboração do presidente francês, Mitterrand.

Uma ex-tradutora de Mitterrand, Brigitte Sauzay, escreveu em seu livro de memórias que Mitterrand só iria concordar com a reunificação alemã “se o chanceler da Alemanha sacrificasse o marco em prol do euro.”[11] Jacques Attali, conselheiro de Mitterrand, fez comentários semelhantes em uma entrevista televisiva em 1998:

É graças à reticência francesa em relação a uma reunificação incondicional [da Alemanha] que temos a moeda comum …. A moeda comum não teria sido criada sem a relutância de François Mitterrand à unificação alemã.

Outra confirmação destes eventos foi fornecida por Hubert Védrine, também um antigo conselheiro de Mitterrand e posteriormente seu ministro de relações exteriores:

O presidente soube aproveitar a oportunidade, ao final de 1989, para obter um comprometimento de [o chanceler alemão Helmut] Kohl. […] Seis meses depois, teria sido muito tarde: nenhum presidente francês estaria na posição de obter do chanceler alemão o comprometimento de introduzir a moeda única.[12]

François Mitterrand e Margaret Thatcher estavam atemorizados com a ideia de uma Alemanha unificada e “forte”. A Alemanha, portanto, tinha de perder sua arma mais temida. Os países vizinhos estavam preocupados com uma renovada agressão alemã. A união monetária era a solução para esta ameaça, como Mitterrand havia dito para Thatcher após a reunificação alemã: “Sem uma moeda única, todos nós — vocês e nós — estaremos sob domínio alemão. Quando eles elevarem as taxas de juros lá, nós termos de fazer o mesmo, e vocês também, mesmo que não participem do nosso sistema monetário. Somente poderemos ter voz ativa se houver um Banco Central Europeu no qual possamos tomar decisões conjuntas.”[13]

O papel do governo francês

A França era militar e politicamente a nação mais poderosa do continente europeu a oeste da cortina de ferro desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Os líderes franceses utilizaram esse poder para obter influência sobre as instituições europeias e para reduzir a influência política de seus eternos rivais, a Alemanha. De fato, a França está sobrerrepresentada na União Europeia em termos do tamanho da sua população e do seu PIB em relação à Alemanha.[14] O governo francês sempre quis se livrar da influência do Bundesbank.[15] Uma moeda única era vista como uma oportunidade de reforçar sua posição na Europa e induzir o continente rumo a um império a ser liderado pela classe dominante francesa. O próprio banco central da França estava sob controle direto do governo até 1993 e era utilizado como instrumento para financiar os gastos governamentais. O Bundesbank representava uma obstrução a estes esforços. O Banco da França queria estimular o crescimento via expansão do crédito. Porém, dado que o mais independente Bundesbank não inflacionava na mesma intensidade, a França teve de desvalorizar sua moeda em relação ao marco alemão repetidas vezes.

O Bundesbank impunha um freio à inflação francesa. O marco alemão representava, de certa forma, um novo padrão surgido após a abolição do padrão-ouro. Seu poder advinha de sua postura menos inflacionária quando comparado à maioria dos outros bancos centrais europeus. Advinha também de sua independência e de sua resistência aos clamores de mais inflação por parte do governo alemão. Quando o Bundesbank elevava as taxas de juros, o Banco da França tinha de fazer o mesmo; caso contrário, o franco se depreciaria em relação ao marco e o câmbio teria de ser alterado.

Do ponto de vista francês, no entanto, as políticas alemãs não eram suficientemente inflacionárias; os políticos franceses se opunham à liderança do Bundesbank. Embora militarmente debilitada e tendo saído derrotada da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha havia se tornado capaz de ditar as taxas de juros da Europa e de indiretamente restringir os gastos do governo francês: um enorme triunfo.[16] Mitterrand declarou ao seu Conselho de Ministros em 1988: “A Alemanha é uma grande nação carente de algumas características de soberania e que goza de um reduzido prestígio diplomático. Mas compensa essas suas fraquezas com uma robustez econômica. O marco alemão representa, de certa forma, seu poderio atômico.”[17]

Ademais, o governo francês mantinha a ideia de que a função de um banco central era dar suporte às políticas de seu governo. Caso haja um alto desemprego, por exemplo, o banco central deveria reduzir os juros independentemente de pressões inflacionárias. Sob um banco central comum, que abrangesse também os países mediterrâneos, a Alemanha estaria em minoria e, assim, os políticos franceses poderiam determinar suas ações. Malta, por exemplo, possui o mesmo número de votos no Banco Central Europeu que a Alemanha, ainda que a Alemanha possua um PIB 500 vezes maior que o de Malta. Uma moeda comum gerida por um banco central comum era um objetivo de longo prazo do governo francês, pelo qual ele estava disposto a fazer sacrifícios de curto prazo.[18]

Mitterrand, presidente da França de 1981 a 1995, odiava a Alemanha durante sua juventude e desprezava o capitalismo.[19] Este patriota francês era um convicto defensor do ideal socialista para a Europa e montou suas políticas de modo a defender a França contra a superioridade econômica de seu vizinho do leste. A superioridade alemã baseava-se em sua moeda forte. A intenção de Mitterrand era utilizar o poderio monetário da Alemanha em prol do governo francês.[20] O governo francês daria à Alemanha garantias de segurança em troca de uma participação no poderio monetário da Alemanha. No final da década de 1980, ao falar sobre as bombas atômicas francesas de curto alcance, as quais tinham autonomia para, no máximo, explodir dentro da Alemanha, o conselheiro de assuntos externos de Mitterrand, Jacques Attali, para a surpresa dos negociadores alemães, fez alusão a uma bomba atômica alemã: o marco.[21] O governo francês utilizava sua força militar superior para obter concessões monetárias.[22]

Com a unificação da Alemanha, os oponentes do marco poderiam pressionar o governo alemão a abrir mão de sua moeda. Primeiro, Mitterrand queria impedir por completo a reunificação alemã: “Não preciso fazer nada para impedir isso; os soviéticos o farão por mim. Eles jamais permitirão a existência dessa maior e mais importante Alemanha se opondo a eles.”[23] Quando a União Soviética nada fez para impedir a reunificação, Mitterrand aproveitou a oportunidade e viu em Kohl um aliado para seu projeto do euro.[24] Ele temia que, assim que Kohl saísse do poder, o governo alemão pudesse ameaçar novamente a paz na Europa. Ambos os políticos consideravam a moeda única um meio para restaurar o equilíbrio político da Europa após a reunificação. Os políticos europeus em geral achavam que uma união monetária controlaria o crescente poder de uma Alemanha unificada. Giscard d’Estaing alegava que um fracasso da união monetária levaria a uma hegemonia alemã sobre a Europa.[25]

As tensões se intensificaram quando Kohl não reconheceu as fronteiras entre a Alemanha reunificada e a Polônia, a qual havia se apossado de um substancial território da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Mitterrand reivindicava uma moeda única temendo que, caso contrário, o mundo retornasse à situação de 1913.[26] Em resposta a esta maciça ameaça e ao temerosamente crescente isolamento em meio a uma aliança entre França, Grã-Bretanha e União Soviética, Kohl concordou em estipular uma data para uma conferência sobre uma moeda comum na segunda metade de 1990. Ele chegou até mesmo a declarar que a moeda única era uma questão de guerra e paz. A concordância de Kohl com a criação de um plano para a introdução de uma moeda única enfim aplacou os temores da França acerca de uma Alemanha unificada.

Vantagens para as classes dominantes alemãs

O sacrifício do marco alemão foi bem a gosto das elites políticas e estatais da Alemanha, bem como dos interesses especiais que possuem poderosas ligações com o estado. Como Hans-Hermann Hoppe explicou, há uma elite dominante em todas as sociedades, a qual utiliza o estado como um instrumento para explorar o resto da população.[27] O estado detém o monopólio da coerção e da tomada suprema de decisões judiciais de todos os conflitos que ocorram dentro de um dado território. Ele detém o poder de tributar e de incorrer em todos os tipos de intervenções.

A classe dominante é exploradora, parasítica, improdutiva e possui uma forte consciência de classe. Ela precisa de uma ideologia que justifique suas ações e que, por isso, impeça a rebelião da classe explorada. A classe explorada é formada pela maioria da população. É ela quem produz riqueza e é doutrinada para prestar obediência e servilismo à classe dominante, não possuindo nenhuma consciência de classe especial.

Cada nação possui sua própria classe dominante e seus próprios grupos de interesse, os quais têm profundas ligações com esta elite. Consequentemente, a classe dominante na Alemanha e a classe dominante na França têm muito mais em comum entre si do que a classe dominante alemã tem em comum com a classe explorada na Alemanha. Com efeito, as classes dominante e explorada possuem interesses opostos. Há várias áreas em que as classes dominantes alemã e francesa não apenas não são concorrentes, como na realidade se beneficiam mutuamente ao atuarem em conjunto. Ambas as classes dominantes querem poder: elas querem expandir seu poder sobre os cidadãos. Elas querem que prevaleça uma ideologia que defenda o estado e aumente o poder estatal.

Dadas essas considerações, é fácil entender por que a classe dominante alemã — isto é, políticos, bancos e indústrias com fortes conexões políticas, principalmente o setor exportador — defendia a introdução do euro. Há várias maneiras pelas quais essa classe poderia se beneficiar com a criação de uma moeda única.

1. É altamente provável que a classe dominante alemã não tenha se lamentado por ter se livrado de um Bundesbank muito conservador. O Bundesbank, por várias vezes, havia atuado contra os interesses e pedidos dos políticos. Ele, por exemplo, elevou os juros antes das eleições de 1969, aumentando sua reputação mundial de banco central anti-inflacionista. Adicionalmente, o Bundesbank não queria seguir as taxas de inflação americanas e, por isso, parou de intervir no mercado de câmbio em favor do dólar em março de 1973. Isso levou ao colapso final do Sistema de Bretton Woods e às taxas de câmbio flutuantes. Ele também resistia aos reiterados pedidos do establishment para intervir no Sistema Monetário Europeu. Os dirigentes do Bundesbank repetidamente se opunham às demandas de políticos alemães e estrangeiros para que reduzisse as taxas de juros. Alguns desses dirigentes também eram céticos quanto à introdução do euro como instrumento de integração econômica. Proeminentes políticos alemães frequentemente tinham de aguentar o fardo de ter de lidar com o descontentamento dos países vizinhos e com a intransigente postura monetária do Bundesbank.[28]

O euro possibilitou aos políticos alemães se livrar desta teimosa instituição, prometendo um fim à “tirania” do Banco. Mais inflação significaria mais poder para a classe dominante. Políticos alemães poderiam agora se esconder atrás do Banco Central Europeu e evadir-se da responsabilidade pelas consequências geradas por altos níveis de gastos e endividamentos.

O euro era um passo rumo à criação de uma moeda mundial. Com a concorrência entre moedas eliminada, os políticos teriam agora poderes ilimitados.[29] Adicionalmente, é mais fácil implantar uma cooperação monetária internacional entre o Fed e o BCE do que entre o Fed e vários bancos centrais europeus.

2. Certos grupos de interesse alemães tinham muito a ganhar com esse novo arranjo — a saber, o aprofundamento do processo de integração europeia, o qual incluía a harmonização os padrões trabalhistas, ambientalistas e tecnológicos.[30] Com efeito, a introdução do euro reavivou o projeto europeu de um poder estatal centralizado.

A harmonização dos padrões trabalhistas beneficiou os trabalhadores alemães sindicalizados. As generosas leis trabalhistas alemãs — e seus concomitantes custos — só eram possíveis de ser mantidos por causa da alta produtividade dos trabalhadores alemães. Trabalhadores de outros países, como Portugal ou Grécia, tinham menos capital com o qual trabalhar, o que os tornava menos produtivos. Para poder competir com o trabalhador alemão, o português tinha de se contentar com leis trabalhistas mais brandas, o que reduziria o custo de sua mão-de-obra. Essa redução dos padrões trabalhistas — amplamente propagadas com o temeroso rótulo de “corrida ao fundo do poço” — ameaçava os altos padrões trabalhistas dos trabalhadores alemães. Trabalhadores alemães sindicalizados, acostumados aos seus altos padrões, não queriam concorrer com trabalhadores portugueses, para os quais tais padrões não se aplicavam. A vantagem competitiva obtida com a harmonização dos padrões daria aos alemães uma maior margem para ampliar seus poderes e privilégios.

A harmonização os padrões ambientalistas também beneficiou as empresas alemãs, pois elas já eram as mais ambientalmente eficientes. Empresas concorrentes de outros países, até então sujeitas a padrões menos rigorosos, tiveram de se adaptar a estes padrões mais custosos. Fora isso, os interesses do movimento ambientalista foram satisfeitos pela imposição dos padrões ambientais alemães sobre todo o resto da União Europeia. Como as empresas alemãs estavam na dianteira tanto em termos de cumprimento a imposições ambientais quanto em termos de tecnologia, essa regulação lhes trouxe enormes benefícios. A concorrência estrangeira foi suprimida. A imposição de padrões tecnológicos alemães à União Europeia deu aos exportadores alemães uma grande vantagem competitiva.

3. O setor exportador alemão se beneficiou duplamente com a criação do inflacionário euro. Os outros países da zona do euro não mais podiam desvalorizar suas moedas com o intuito de dar competitividade ao seu setor exportador. Com efeito, as seguidas crises monetárias e as repentinas desvalorizações cambiais do período anterior ao euro ameaçavam os exportadores alemães. Uma crise monetária também colocava em risco a estabilidade do mercado comum. Com uma moeda única, desvalorizações não mais seriam possíveis. O primeiro-ministro italiano, Romano Prodi, utilizou o seguinte argumento para convencer os políticos alemães a permitir que a altamente endividada Itália também fizesse parte da união monetária: apóiem a nossa filiação e nós compraremos suas exportações.[31]

Adicionalmente, os seguidos déficits orçamentários e comerciais dos países do sul da Europa deixaram o euro consistentemente mais fraco do que seria o marco alemão. Isso estimulou as exportações alemãs. A elevação das exportações alemãs foi compensada pelos déficits comerciais das nações-membro pouco competitivas. Por conseguinte, os exportadores alemães adquiriram uma vantagem em relação aos países de fora da zona do euro. Aumentos na produtividade não mais se traduziriam em valorizações da moeda — pelo menos não em comparação ao marco alemão.

4. A classe política alemã queria evitar o colapso político e financeiro da região.[32]

Vários países da Europa estavam no limiar da falência na década de 1990. Como a classe dominante não queria perder seu poder, ela estava disposta a abrir mão de algum controle da impressora de dinheiro em troca da sua sobrevivência. Países menos endividados, com a Alemanha, assegurariam a confiança dos credores, de modo que todo o nível de endividamento europeu poderia ser mantido ou até mesmo ampliado. Isso certamente explica o interesse de países altamente endividados e à beira da falência em criar a integração europeia.

Há três maneiras de a classe dominante ampliar seu poder: aumentando impostos, utilizando a inflação ou aumentando a dívida governamental. Mas impostos são impopulares. A inflação é arriscada porque, a partir de um determinado momento, ela pode causar desordem e desconfiança, fazendo com que os cidadãos parem de utilizar a moeda corrente e corram para ativos reais com o intuito de proteger sua poupança e seu poder de compra. Isso pode levar todo o sistema financeiro ao colapso. O endividamento governamental, por sua vez, representa uma maneira alternativa de se financiar o aumento dos gastos e o subsequente aumento do poder estatal, e não é um método tão impopular quanto os impostos. Com efeito, o endividamento governamental pode gerar uma “ilusão de riqueza” momentânea. Os cidadãos podem se sentir mais ricos as os gastos governamentais forem financiados por meio da emissão de títulos em vez de mais impostos. Não obstante, em algum momento tais dívidas terão de ser quitadas, e o serão por meio ou de mais impostos ou de inflação monetária — caso contrário os credores ficarão desconfiados da solvência do governo, encerrarão seus empréstimos e farão com que o governo altamente endividado fique sem acesso a novos financiamentos.

Mas por que a Alemanha aceitaria o papel de garantidora das dívidas dos outros países?

A introdução do euro e a garantia implícita às dívidas das outras nações deu-se em conjunto com todos os tipos de transferências diretas e indiretas que um sistema de moeda única geraria. [33] A falência de estados europeus, algo que teria efeitos adversos sobre a classe dominante alemã, poderia ser evitada, pelo menos por algum tempo. Um colapso de um ou de vários países levaria a uma recessão. Por causa da divisão internacional do trabalho na Europa, uma recessão traria um impacto enorme aos exportadores e às empresas tradicionais da Alemanha. As receitas tributárias cairiam e o apoio da população se evaporaria.

Ademais, o calote de um país provavelmente afetaria negativamente o sistema bancário doméstico de outros países, gerando um efeito dominó sobre os bancos de toda a Europa, incluindo os da Alemanha. A conectividade do sistema financeiro internacional poderia levar ao colapso dos bancos alemães, aliados próximos da classe dominante alemã e resolutos defensores da criação de uma moeda única. Igualmente, uma quebradeira em forma de hiperinflação iria afetar negativamente o comércio internacional e todo o sistema financeiro. A falência de um país soberano poderia levar outros países junto.

Em suma, a introdução do euro não se tratou de um ideal europeu sobre liberdade e paz. Ao contrário: o euro não era necessário para a liberdade e a paz. Na realidade, o euro apenas gerou conflitos. Sua criação estava totalmente ligada a poder e dinheiro. O euro fez com que a mais importante e poderosa ferramenta econômica de um país, a unidade monetária, ficasse sob o controle de tecnocratas sediados em um outro país.
[1] A Carta da ONU ainda contém cláusulas para nações inimigas. As cláusulas permitem aos aliados imporem medidas contra nações como Alemanha ou Japão sem autorização do Conselho de Segurança. “[Os] aliados reservam a si próprios determinados poderes de intervenção e até mesmo o direito de reimpot um governo direto caso julguem necessário” (Judt, Postwar, p. 147).

[2] Como Margaret Thatcher declarou sobre ela própria e sobre Mitterrand, “Nós dois tivemos a determinação de coibir o rolo compressor alemão.” Citado in Judt, Postwar, p. 639.

[3] Fritjof Meyer, “Ein Marshall auf einem Sessel,” Der Spiegel 40 (1999): p. 99, http://www.spiegel.de. A Alemanha pagou sessenta e três bilhões de marcos alemães para União Soviética entre 1989 e 1991 (no total) para que pudesse receber tratamento favorável. Similarmente, Tony Judt, Postwar, p. 642, calcula que o governo alemão transferiu $71 bilhões para a União Soviética entre 1990 e 1994. Um adicional de $36 bilhões em “tributos” foram transferidos para outros ex-governos comunistas do Leste Europeu.

[4] Ver Kerstin Löffler, “Paris und London öffnen ihre Archive,” Ntv.de (November 6, 2010), http://n-tv.de. Ver também Wilhelm Nölling citado in Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 21: “Até onde sabemos, estes países, em troca do acordo de reunificação que eles não podiam impedir, exigiram que a Alemanha fosse atraída para um arranjo e, para isso, nada melhor do que, além da OTAN e da integração europeia, a unificação da moeda”. Em um discurso em agosto de 2010, o historiador Heinrich August Winkler, professor emérito da Humboldt University Berlin, argumentou que Mitterrand temia que a Comunidade Europeia se transformasse uma zona do marco, sugerindo uma hegemonia alemã no continente. O euro era o preço para a autorização da reunificação. Ver Henkel, Rettet unser Geld!; p. 56-58. Recentemente, um acesso aos protocolos secretos validou a tese de que Mitterrand exigiu a moeda única em troca do seu consentimento para a unificação. Ver Mik, “Mitterrand forderte Euro als Gegenleistung für die Einheit, Spiegel online (2010), http://www.spiegel.de.

[5] In Die Woche, 19.9.1997 citado in Das Weisse Pferd, “Die Risiken des Euro sind unübersehbar (1),” in Das Weisse Pferd – Urchristliche Zeitung für Gesellschaft, Religion, Politik und Wirtschaft (August, 1998), http://www.das-weisse-pferd.com.

[6] Ver Henkel, Rettet unser Geld!, p. 59.

[7] Ver Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe.

[8] Horst Teltschik, 329 Tage: Innenansichten der Einigung (Berlin: Siedler, 1991), p. 61,

[9] Vaubel, “The Euro and the German Veto,” p. 83.

[10] Ademais, Kohl já foi considerado candidato ao Nobel da Paz por várias vezes, a mais recente em 2010.

[11] Spiegel-Special Nr. 2/1998 citado in Das Weisse Pferd, “Die Risiken des Euro.” Para a visão de que o governo francês concordou com a reunificação em troca de um acordo com a Alemanha a respeito da introdução de uma moeda única, ver também Ginsberg, Demystifying the European Union, p. 249. Similarmente, Jonas Ljundberg, “Introduction,” in The Price of the Euro, ed. Jonas Ljundberg (New York: Palgrace MacMillan, 2004), p. 10, afirma: “Ao abrir mão da hegemonia do Bundesbank entre os bancos centrais, Kohl obteve a anuência de Mitterrand para a reunificação alemã.” Na mesma linha, James Foreman-Peck, “The UK and the Euro: Politics versus Economics in a Long-Run Perspective,” in The Price of the Euro, ed. Jonas Ljundberg (New York: Palgrace MacMillan, 2004), p. 102, declara: “A união monetária foi escolhida, na realidade, como parte de um acordo franco-alemão acerca da reunificação alemã. O marco alemão foi abolido em troca de um estado unificado. Essa Alemanha forte e reunificada tinha de ser aceita pela França, e a união monetária era o preço cobrado pelo governo francês.” E ele acrescenta (Foreman-Peck, p.114): “… o euro foi criado para permitir um maior controle francês sobre a política monetária europeia — em vez do domínio do Bundesbank — em troca da anuência francesa para com a reunificação alemã.” Larsson (“National Policy in Disguise,” p. 163) declara: “A UME se tornou uma oportunidade para os franceses adquirirem uma fatia do poderio econômico alemão. Para o chanceler alemão Kohl, a UME era um instrumento para fazer com que os outros membros da Comunidade Europeia aceitassem a reunificação alemã e, consequentemente, uma Alemanha maior e mais poderosa no coração da Europa”. Judt (Postwar, p. 640) afirma: “Os alemães poderiam reconquistar sua unidade, mas a um preço… Kohl deveria se comprometer a adotar o projeto europeu sob um domínio conjunto [Bonn pagando e Paris criando as políticas], e a Alemanha deveria ser amarrada a uma união ‘cada vez mais estrita’ — cujas cláusulas, notavelmente uma moeda europeia única, seriam consagradas em um novo tratado.”

[12] Ambas as citações foram retiradas de Vaubel, “The Euro and the German Veto,” pp. 82-83.

[13] Traduzido de uma citação em Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 22. Como escreveu Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 142: “Proeminentes figuras do Partido Socialista francês … deixaram implícito que somente o Tratado de Maastricht poderia manter os velhos demônios do caráter alemão sob controle.”

[14] Ver Larsson, “National Policy in Disguise.” A Alemanha está sub-representada não apenas em relação à França. No Conselho Europeu, a Alemanha tem direito a vinte e nove votos, a mesma quantidade do Reino Unido, da França e da Itália, os quais são substancialmente menores em população e PIB. Espanha e Polônia, com aproximadamente metade da população da Alemanha, têm direito a vinte e sete votos cada uma.

[15] Bernard Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 100 escreve: “Aos olhos franceses, o objetivo da UME, ao menos em termos monetários, era permitir o domínio francês do Bundesbank.”

[16] Como escreveu Connolly (The Rotten Heart of Europe, p. 30), comentando sobre os acontecimentos de 1983: “As políticas salariais e orçamentárias da França eram em última instancia determinadas pela Alemanha… A humilhação imposta ao governo socialista francês era quase total, um tipo de 1940 monetário.” Trichet vivenciaria outra humilhação mais tarde. (Ibid, p. 311)

[17] Citado in Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 22 and Marsh, Der Euro, p. 175. Da mesma forma, o predecessor de Mitterrand, Valéry Giscard d´Estaing, também temia uma hegemonia alemã. Ver Marsh, Der Euro, p. 99. Ver também Feldstein, “The Political Economy of the European Political and Monetary Union,” p. 28, que afirma que a França utilizou a UME para impulsionar sua influência vis-à-vis a Alemanha.

[18] Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 146, argumenta que os bancos centrais e os políticos do sul da Europa concordaram em adotar políticas monetárias restritivas com o intuito de alcançar o objetivo de longo prazo da implementação da moeda única e, com isso, adquirir um maior número de votos em relação ao Bundesbank: “O maior desejo deles [as elites do sul da Europa] era o de se alçarem a uma posição em que poderiam sobrepujar Schlesinger [ex-presidente do Bundesbank], ou seus sucessores; mas eles só poderiam chegar a essa situação se, durante esse meio tempo, os banqueiros centrais não exagerassem em suas políticas monetárias inflacionistas.”

[19] Ver Marsh, Der Euro, pp. 47-50. Ele afirma explicitamente que queria um rompimento suave, mas completo, com o capitalismo. (Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 24)

[20] Ver Marsh, Der Euro, p. 57. Em linguagem similar, Jacques Delors indignou-se com o Bundesbank quando este não reduziu as taxas de juros em 1993 para apoiar a França: “Por que eles declararam guerra a nós?” (Citado in Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 321)

[21] Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 22. Marsh, Der Euro, pp. 172-74

[22] Ameaças implícitas similares ocorrerem em 1992 durante uma crise do franco. Naquela ocasião, Trichet questionou a conciliação franco-germânica com o intuito de obter ajuda da Alemanha. Um dirigente do Bundesbank, quando perguntado por que não recorreram ao artifício de elevar o compulsório para combater as pressões inflacionárias, respondeu: “Porque, se fizéssemos isso, o céu ficaria negro, repleto de esquadrões de Mirages que cruzariam o Reno para nos bombardear” (Citado in Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 180.)

[23] Citado in Judt, Postwar, p. 637.

[24] Bandulet, Die letzten Jahre des Euro, p. 48. Mais provavelmente, Mitterrand estava apenas blefando. Ele não tinha condições de impedir a reunificação mesmo se Kohl não tivesse sacrificado o marco. Tampouco os EUA ou a URSS pressionaram o governo alemão a assinar o Tratado de Maastricht como condição para a reunificação.

[25] Ver Marsh, Der Euro, p. 263. O primeiro-ministro italiano, Andreotti, alertou para um novo pangermanismo. O primeiro-ministro da Holanda, Lubbers, era contra a reunificação, assim como Thatcher, que, durante um reunião de cúpula em Estrasburgo, sacou de sua bolsa dois mapas da Alemanha: em uma mapa, a Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial; no outro, a Alemanha após a guerra. Ela então afirmou que a Alemanha retomaria todos os territórios que havia perdido mais a Tchecoslováquia. Ver Marsh, Der Euro, p. 203. Sobre a preocupação francesa com a hegemonia alemã na Europa, ver também Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 88 or p. 384.

[26] Ver Marsh, Der Euro, p. 202.

[27] Ver Hans-Hermann Hoppe, “A análise de classe marxista vs. a análise de classe austríaca ,” Instituto Ludwig von Mises Brasil, http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=979

[28] Ver Vaubel, “A Critical Analysis of EMU and of Sweden Joining It.” Ver também, e extensivamente, Connolly, The Rotten Heart of Europe, por exemplo p. 205. O governo alemão tentou repetidamente influenciar o Bundesbank por motivos políticos.

[29] Para entender os interesses americanos na criação de um banco central mundial ver Murray Rothbard, Wall Street, Banks, and American Foreign Policy (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1995).

[30] Guido Hülsmann, “Political Unification: A Generalized Progression Theorem,” Journal of Libertarian Studies 13 (1, 1997): pp. 81-96.

[31] Ver James Neuger, “Euro Breakup Talk Increases as Germany Loses Proxy,” Bloomberg (May 14, 2010), http://www.bloomberg.com.

[32] Ver Hülsmann,”Political Unification,” para mais sobre o teorema da centralização política.

[33] Daniel K. Tarullo, “International Response to European Debt Problems,” Depoimento Perante o Subcomitê de Comércio e Política Monetária Internacional e o Subcomitê de Tecnologia e Política Monetária Doméstica, Comitê de Serviços Financeiros, Câmara dos Deputados dos EUA, Washington, D.C. (20 de maio de 2010), http://www.federalreserve.gov . Como disse Daniel Tarullo, membro do conselho do Federal Reserve: “Durante anos, vários participantes do mercado tomaram como certa a ideia de que uma implícita garantia protegia as dívidas dos países da zona do euro.” Para uma percepção similar a respeito da garantia de socorro implícita, ver John Browne, “Euro Fiasco Threatens the World,” Triblive (18 de julho de 2010), http://www.pittsburghlive.com, e Robert Samuelson, “Greece and the Welfare State in Ruins,” Real Clear Politics (22 de fevereiro de 2010), http://www.realclearpolitics.com. Esta percepção começou a mudar quando as dívidas dos governos da periferia da UME começou a disparar durante a crise. Políticos alemães evidenciaram os problemas ao criar um pacote de socorro. Neste ponto, a rentabilidade dos títulos da Grécia subiu em relação à rentabilidade dos títulos alemães, refletindo o verdadeiro risco de um calote.

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Philipp Bagus
Philipp Bagus
Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seu website.
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