Em tempos de PLN 36 (Projeto de Lei do Congresso Nacional nº 36 de 2014), muito terrorismo político se escutou de parlamentares e burocratas.
Coisas do tipo “é preciso aprovar o PLN 36 para não haver recessão!”; “Haverá desemprego e redução da atividade do país se o PLN 36 não for aprovado!”; foram muito noticiadas. O PLN 36 foi votado e aprovado. Um grande erro. Explico.
Tudo gira em torno da equação[1] PIB = C + I + G + (X-M) que muita gente conhece. Particularmente, há uma falácia que se centra em “gastos do governo” (G). Se “G” diminui, cai o PIB e há recessão. Mas o que não está claro é que, se o PIB caísse em decorrência da diminuição de “G”, as consequências seriam amplamente positivas.
O raciocínio para explicar essa falácia começa com uma pergunta: de onde vem o financiamento do governo? Dos impostos, da inflação monetária e do endividamento do próprio governo. Mas, dado que o endividamento será pago com impostos e inflação monetária, então em última instância todo o financiamento do governo advém de impostos e de inflação monetária.
Ou seja, é algo simples e direto: todo governo se financia perante o setor privado da economia. Quando o governo drena recursos para si, ele reduz a capacidade de investimento do setor privado.
De imediato, poderíamos até pensar que, se os recursos migram de um ente privado para um ente público via impostos ou inflação monetária, então não há problemas. O que o privado gastaria será o público que gastará. Mas esse argumento é facilmente rejeitável dada a natureza coerciva da tributação: as fontes de financiamento são uma usurpação às propriedades dos cidadãos. E essa usurpação é igual a quase metade do seu tempo dedicado à produção.
Em suma, um turno de trabalho é do governo, o outro do cidadão.
No entanto, dado que o confisco não cessará e o gasto continuará existindo, deixemos de lado o argumento moral e concentremo-nos nos argumentos econômicos. Dizer que o ente público gastará o mesmo que o privado gastaria é ilógico porque os gastos públicos não se orientam pelo mercado e para o mercado; eles se orientam para a perpetuação do poder dos defensores da ideologia de plantão. E aí já temos uma diferença intransponível: ao passo que os cidadãos privados gastariam (ou investiriam) seguindo suas preferências subjetivas e a lógica de mercado, o governo gastará seguindo lógicas político-eleitoreiras.
No âmbito político, os projetos mais viáveis nem sempre são os prioritários e o gasto não é eficiente. No que mais, e paradoxalmente, o próprio governo tem de incorrer em gastos extras para fiscalizar o gasto público e se certificar de que este esteja em parâmetros mais ou menos de acordo com o mercado! Fiscalização essa que, por si só, é um consumo de recursos.[2]
Economia não é uma ciência exata, mas podemos associar esses dois fatores e concluir que há perdas. E essas perdas no Brasil vão além do aceitável. A conta é mais ou menos a seguinte: o tudo o que o governo arrecada via impostos, ele gasta; e tudo aquilo que ele arrecada via endividamento, ele investe[3].
Lembra-se da usurpação da metade do trabalho do cidadão? Toda ela é gasta pelo governo em algo não-produtivo. Mais ainda: parte da poupança que o setor privado faz não é reinvestida, mas sim desviada para financiar o governo.
E se você ainda não está convencido do argumento, vamos aos números.
Há algum tempo, escrevi um ensaio sobre a desindustrialização brasileira[4][5] evidenciando que o câmbio não era o culpado pelo que ocorria na época, e sim os fatores internos da economia. O consumo intermediário (isto é, o consumo de bens que são utilizados na produção de outros bens; o vidro é utilizado na fabricação de um copo, o papel é utilizado na impressão de um livro) e a alta drenagem de recursos do setor privado pelo governo estavam entre os principais fatores da desindustrialização, além do alto consumo das famílias. O resultado era uma despoupança em relação à produção total, um efetivo consumo de capital, o que prejudicava o crescimento econômico sustentável.
De lá pra cá, algo mudou? Estamos melhores? Piores? Para onde estamos indo? Eis as evidências atualizadas.[6]
Comecemos a analisar os recursos drenados do setor privado pelo setor público, em relação ao PIB. Assim, para 100% de PIB, temos o seguinte:
O setor público drena do setor privado, sob forma de impostos e endividamento, de 35% a quase 40% do PIB, o que deixa para o setor privado uma quantidade de recursos para consumir e poupar na ordem de 60% a 64% do PIB. O consumo das famílias fica na ordem de 62% do PIB, mais ou menos constante ao longo da série. Logo, sobram recursos privados para consumir ou poupar na ordem de 2% ao ano, em taxa decrescente nos últimos anos e sendo negativa em 2012 e 2013.
Se considerarmos que a indústria de um modo geral deprecia (perde sua capacidade de produção em virtude do desgaste e obsolescência) na ordem de 5% ao ano[7], isso significa que ela não é capaz nem sequer de repor a sua capacidade produtiva.
E as coisas ainda pioram. Como seguimos o raciocínio do Produto Privado Remanescente explicado neste artigo (até porque somos economistas e economistas jamais podem violar o principio número 1 da economia, que é o princípio da escassez, sob pena de invalidez lógica ou desonestidade intelectual), temos de visualizar as coisas sob a ótica do valor adicionado, que é o quanto a economia realmente produz de riqueza no ano. Assim temos o seguinte:
O setor público drena de 40% a quase 47% (quase metade!) do valor adicionado. Daí a conclusão, afirmada anteriormente, que um turno de seu trabalho é confiscado pelo governo e o outro turno é para si próprio. Consequentemente, sobra para o setor privado consumir ou poupar (o trade-off em obediência ao princípio da escassez) em torno de 53% a 60% do valor adicionado.
As famílias, em decorrência dos estímulos ao consumo dados pelo governo, não dão folga e consomem algo em torno de 70% de todo valor adicionado, restando recursos privados para repor ou expandir a capacidade produtiva da economia na ordem de -12% (menos 12 por cento) em 2012, deteriorando-se recentemente e chegando a -20% (menos vinte por cento) em 2013.
E como é possível consumir além do que se produz? Essa conta parece não fechar, certo? Errado. Se estivermos consumindo além do valor adicionado, isso significa que estamos consumindo o estoque daquilo que foi produzido no passado.
Notem que a lógica é perversa. O estoque do passado deve servir para expandir a capacidade de produção da economia (liberação de recursos reais). O governo está promovendo exatamente o contrário: a alta drenagem de recursos do setor privado pelo setor público acaba sendo um fator determinante na incapacidade de restabelecimento — ou mesmo de aumento — da capacidade produtiva do setor privado.
A análise evidencia que uma política estatal de estado empreendedor, nacional-desenvolvimentista, definidor de empresas campeãs nacionais, e defensor de políticas de crédito fácil (não-lastreado por poupança real) e de estímulo ao consumo (todas elas ativas e defendidas na era contemporânea da nossa economia) não somente não é eficaz, como na verdade é danosa à economia.
Infelizmente, não há perspectivas de uma retomada em um horizonte breve, pois são necessárias reformas que dependem dos governantes. A aprovação do PLN 36 acabou de mostrar o repúdio do governo às reformas necessárias. “G” vai aumentar e o PIB vai junto apresentar crescimento. Nada bom. Um número positivo, mas que esconde inexoráveis leis econômicas que, mais cedo ou mais tarde, aparecerão.
Como seria bom se fosse o contrário: um “G” caindo vertiginosamente para restaurar a capacidade de investimento do setor privado. Haveria PIBs negativos no intervalo de recuperação. Seria um número negativo, mas que ocultaria a verdadeira retomada do crescimento econômico. Mas que político consegue ou quer explicar isso para os seus eleitores?
Ah, como seria bom se esse PIB caísse…
[1] Já foram escritos vários artigos sobre a falácia do PIB aqui no site do IMB , e seus argumentos contribuem para a explicação desse artigo.
[2] Lembrei-me agora de uma passagem de um episódio dos Simpsons que retrata bem essa situação. Springfield recebera um dinheiro extra proveniente de impostos e decidiram alocá-lo para a educação. Ao receber o cheque, disse a autoridade na cerimônia de entrega: “Esse dinheiro dos impostos irá para as crianças para que elas, no futuro, aprendam como alocar de forma mais eficiente os impostos”.
[3] Consome por volta de 40% % do PIB, investe por volta de 2% e se endivida em mais 2%.
[4]O entendimento tradicional de desindustrialização se trata da participação da indústria no PIB. No entanto, esta visão é incompleta. Indústria é a conjugação do capital e do trabalho para transformar a matéria-prima em bens de produção e bens consumo. Uma simples padaria é uma indústria.
Com esse pensamento, deduzimos que uma economia mais industrial é a que apresenta uma maior conjugação entre capital e trabalho; é mais capital intensiva e apresenta, consequentemente, maior produtividade do trabalho (maior geração de riqueza por unidade de tempo). O contrário também é verdadeiro: menos industrial significa menor conjugação entre capital e trabalho; é menos capital intensiva e apresenta, consequentemente, menor produtividade do trabalho (menor geração de riqueza por unidade de tempo).
[5] Seguindo o conceito acima, podemos diferenciar economias desenvolvidas e subdesenvolvidas. As primeiras são mais produtivas porque só podem conseguir isso apresentando elevado estoque de capital empregado (que teve de ser poupado por gerações anteriores), o que proporciona alta produtividade; as segundas possuem baixo capital empregado (não houve poupança suficiente nos anos ou gerações anteriores), o que explica a sua baixa produtividade e atraso econômico. Se acrescentarmos ao conceito a teoria austríaca do capital, a qual explica como se ocorre o crescimento sustentável e o insustentável, podemos classificar as economias em 4 classes: desenvolvidas se industrializando; desenvolvidas desindustrializado; subdesenvolvidas industrializando e subdesenvolvidas desindustrializando. O quadro a seguir evidencia melhor essa classificação:
[6] Os dados-base da pesquisa são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém há uma ressalva a fazer. A partir do ano de 2010, o IBGE apresenta em suas contas nacionais trimestrais dados de recursos e usos a partir do Produto Interno Bruto (PIB), não sendo possível analisar a relação entre produção total, consumo intermediário e PIB (isso porque solicitei ao IBGE os dois primeiros). Entretanto, é possível fazer uma análise sem esses dados. Do mesmo modo que no primeiro ensaio, este segue a mesma lógica do Produto Privado Remanescente (PPR). Veremos duas análises: uma em relação ao PIB e outra em relação ao valor adicionado. São apresentados de forma relativa, pois esse tipo de análise dispensa qualquer método de deflação da série temporal, proporcionando uma análise mais realista e não-distorcida.
[7] Não é nada absurdo estimar uma taxa de depreciação de bens de capital na ordem de 5% ao ano de um modo geral. Significa uma vida útil de 20 anos.