As questões envolvendo igreja e estado continuam a ser fonte de muitos conflitos entre cristãos, o que resulta em uma grande confusão sobre o que exatamente uma teologia bíblica do estado e das políticas públicas deveria tratar.
A confusão frequentemente induz a respostas inadequadas sobre questões importantes que dizem respeito à relação dos cristãos com o governo, tais como 1) qual tipo de governo um cristão deveria apoiar?, 2) qual política pública deveria ser obedecida?, 3) o que significa a submissão ao governo?
São muitos os cristãos que tentam justificar sua filosofia política citando Romanos 13 ou suas variações. À primeira vista, essa parece ser uma solução aceitável — Paulo aparentemente apoia a submissão ao governo. Mas como reconciliamos essa passagem com o inegável fato de que indivíduos que agiram dentro das estruturas coercivas dos estados foram os culpados pelas maiores ações criminosas e violentas na história da humanidade?
Na Alemanha, durante as décadas de 1930 e 1940, por exemplo, teólogos utilizaram Romanos 13 para encorajar a submissão ao regime nazista, especialmente por ele ter sido democraticamente eleito. Recentemente, um membro do parlamento do Zimbábue declarou que o corrupto ditador-presidente Robert Mugabe foi enviado por Deus e que, por isso, “não deveria ser desafiado nas próximas eleições”.
Obviamente, essas são maneiras inapropriadas de se usar as escrituras. Mas a questão para os cristãos é: como saber as diferenças? Devemos simplesmente concordar com o governo porque a Bíblia assim diz, ou há mais coisas em jogo?
Claramente, a igreja necessita de um arcabouço mais sólido para avaliar a natureza do estado e as consequências das políticas públicas. Proponho começar esse processo com uma análise de algumas passagens do Novo Testamento que parecem abordar a relação dos cristãos com o governo civil. Especificamente, comecemos por aquilo que encontramos nos Evangelhos e em Romanos 13.
Os Evangelhos e o estado
Para desenvolver uma teologia bíblica sobre o governo, o primeiro passo deveria ser o exame dos ensinamentos de Jesus. Quais são as palavras e as atitudes de Jesus que nos ajudam a entender quais deveriam ser nossa reação ao governo?
Frequentemente, aqueles que desejam derivar dos Evangelhos princípios bíblicos sobre o governo recorrem às famosas passagens do “Dai a Cesar”, um evento registrado em todos os Evangelhos Sinópticos (Mateus 22:15-22, Marcos 12:13-17, Lucas 20:20-26).
Mas seriam esses os únicos textos dos Evangelhos que merecem ser abordados no que diz respeito ao governo civil? Em minha opinião, não. Também é possível obter informações importantes sobre a natureza do estado por meio das tentações de Jesus e uma breve comparação entre o Reino do Homem e o Reino de Deus.
Comecemos com uma análise das passagens do “Dai a César”, examinando primeiro o texto de Mateus 22:15-22:
Então os fariseus saíram e começaram a planejar um meio de enredá-lo em suas próprias palavras.
Enviaram-lhe seus discípulos juntamente com os herodianos que lhe disseram: “Mestre, sabemos que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. Tu não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens. Dize-nos, pois: Qual é a tua opinião? É certo pagar imposto a César ou não?”
Mas Jesus, percebendo a má intenção deles, perguntou: “Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à prova?
Mostrem-me a moeda usada para pagar o imposto”.
Eles lhe mostraram um denário, e ele lhes perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?”
“De César”, responderam eles.
E ele lhes disse: “Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Ao ouvirem isso, eles ficaram admirados; e, deixando-o, retiraram-se.
Em Mateus, os fariseus enviaram alguns dos seus discípulos ao templo junto aos herodianos até Jesus com o intuito de “enredá-lo em suas próprias palavras” no templo. O Evangelho de Marcos diz que eles enviaram alguns dos fariseus e herodianos até Jesus, provavelmente os sumos sacerdotes, mestres da lei, e anciãos mencionadas em Marcos 11:27. Estranhamente, Lucas identifica os questionadores como “espiões” enviados pelos sacerdotes, mestres e anciãos. A identidade desses interrogadores não é trivial. Com efeito, existiam diferenças filosóficas marcantes entre fariseus e herodianos. Os herodianos apoiavam o poder romano, já que por meio dele obtinham benefícios. Os fariseus, por outro lado, eram mais ambivalentes com relação aos romanos; os fariseus geralmente os toleravam desde que eles não se intrometessem nas práticas religiosas judaicas. Contudo, fariseus e herodianos uniram-se por causa de sua oposição conjunta a Jesus.
Em cada Evangelho, a pergunta é introduzida de forma diferente, mas o conteúdo da pergunta em si é sempre o mesmo: “é certo pagar impostos a César ou não?”. A pergunta é muito inteligente. Os herodianos defendiam o pagamento de tributos; se Jesus respondesse “não”, eles teriam motivos para prendê-lo por rebelião contra César. Por outro lado, de modo geral, os fariseus não gostavam de pagar tributos (embora fossem forçados a fazê-lo), e uma resposta “sim” resultaria em uma perda de apoio popular a Jesus.
Além disso, existe uma sutil expressão jurídica na pergunta: “é certo” ou, em algumas traduções, “é lícito”. Em outras palavras, os fariseus estão perguntando: “é consistente com a Torá pagar tributos a César?” Todos os presentes estavam cientes da lei e das palavras de Levítico 25:23. “A terra [de Israel] não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas estrangeiros e imigrantes”.
A pergunta agora é mais complexa porque a Torá pode estar em jogo. Dado que César está tentando tomar a terra de Deus, não seria uma desobediência à Torá o pagamento de tributos a César?
Jesus percebeu a malícia da pergunta, é claro, e respondeu de forma astuta. Quando pede aos fariseus que mostrem a moeda, eles involuntariamente apresentam a evidência que expõe sua própria hipocrisia. Jesus lhes pergunta qual imagem e inscrição está na moeda. Eles respondem, provavelmente relutantes: “de César”. Mas eles, e todos que ali estavam, perceberam seu erro, pois as inscrições dessas moedas sempre leriam, “Tibério Claudio César Augusto, filho do deificado Augusto, sumo sacerdote”.
Os fariseus, dos quais se esperava a defesa da lei de Deus, trouxeram ao templo um item que efetivamente desobedece ao segundo mandamento: não terás nenhuma imagem ou ídolo, mostrando que, em seus corações, desobedecem também ao primeiro mandamento. Eles, não Jesus, são os hipócritas. Eles são os que aderiram ao sistema pagão romano.
Na estimativa do teólogo Thomas Long, a resposta de Jesus significa que “todo mundo tem de decidir entre César e Deus. Nenhum homem pode servir a dois mestres (Mateus 6:24). Você parece ter tomado sua decisão, forjado seu conveniente acordo. Mas e sua obrigação a Deus? Dar a Deus o que pertence a Deus. Escolha hoje a quem você servirá”.
Se essa interpretação estiver correta, então não há uma diretriz clara para a resolução das questões igreja x estado. De nenhuma forma as práticas do estado são aqui legitimadas. Ao contrário, Jesus diz que quaisquer esquemas de divisão em vida que criamos devem ser terminados, e desencoraja o nacionalismo ou o jingoísmo como uma prática legítima da Igreja. Podemos até viver sob um estado, mas pertencemos por inteiro a Deus que está acima de todos os estados. Sempre devemos dar a Deus o que é de Deus.
Uma dica interessante sobre a natureza do estado pode ser vista nas tentações de Jesus (Mateus 4:1-11, Lucas 4:1-13), pouco exploradas pela maioria dos estudiosos. Em Mateus, a terceira tentação de Cristo são “os reinos do mundo e seu esplendor”, os quais Satã promete dar a Jesus caso ele seja subserviente a Satã. Estranhamente, mesmo Satã sendo considerado o “príncipe [regente] desse mundo” (João 12:31, 14:30, 16:11), frequentemente não consideramos de forma sensata o que significa tal oferta. Creio que Satã foi muito sincero em sua proposta: Jesus não considerou isso impossível. Jesus parece entender que os reinos do mundo realmente pertencem ao Satã, e nós não deveríamos pensar diferente. Logicamente, isso significa que os reinos do mundo estão em inimizade com Deus. Com efeito, você consegue encontrar comprovações disso de forma direta e indireta nas escrituras, em diversos textos.
O Antigo Testamento indica claramente que as religiões pagãs, frequentemente encorajadas por Satã por meio de suas feitiçarias e bruxarias, eram intimamente ligadas à liderança política nacional. G.K. Chesterton concorda com essa interpretação e nos mostra evidências da história em seu livro o The Everlasting Man. Herodes compreende que a criança Jesus é uma ameaça ao seu poder, e por isso ordena a morte de centenas, se não milhares de crianças, em uma tentativa de impedir essa insurreição (Mateus 2).
Além disso, o tema da Babilônia como um estado maligno sobre a influência de Satã permeia o livro do Apocalipse. Em Apocalipse 18:4, por exemplo, Deus exorta Sua Igreja: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas”.
Discutir brevemente as diferenças entre o reino dos homens e o Reino de Deus é um exercício ilustrativo. Um dos temas recorrentes nos Evangelhos, especialmente Mateus, é que Jesus é um rei que irá criar o Reino de Deus. Mas Jesus afirma explicitamente que “meu reino não é deste mundo… meu reino não é daqui (João 18:36). As “regras / leis do reino” como explicadas no sermão da montanha são diferentes de qualquer tipo de lei estatal que já existiu.
Além disso, não é função do cristão usar a força bruta para a vinda do Seu reino, mas sim “buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça” (Mateus 6:33). Os reinos do homem são fundados no poder e na violência, mas o Reino de Deus é fundado na humildade (Mateus 18:4), serviço (Mateus 20:26) e amor (João 13:35). Enquanto não podemos nos desvincular totalmente dos governos desse mundo, somos lembrados, mais uma vez, que “nossa cidadania, porém, está nos céus” (Filipenses 3:20).
Em suma, os ensinamentos práticos de Jesus sobre o governo civil são virtualmente inexistentes, mas os evangelhos fazem algumas colocações fortes sobre a natureza do estado que podem nos surpreender. O estado parece ter uma forte conexão com Satã e seu reino, e é antitético ao Reino de Deus, o qual condena o uso do poder para o ganho pessoal.